Opinião

IA e automação: o bem-estar na prestação de serviço do Poder Judiciário

Autores

  • Paloma Mendes Saldanha

    é mestre e doutora em Direito e Tecnologias pela Universidade Católica de Pernambuco especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Ucam-RJ especialista em Jurisdição Constitucional e Tutela de Direitos Fundamentais pela Unipi/Itália pesquisadora pelo Logos e Direito e Inovação/Unicap-Capes professora da Unicap educadora certificada Google for Education fundadora diretora e consultora em Privacidade na PlacaMãe.Org_ advogada e membro da govDADOS e INPD.

  • Alexandre Henrique Tavares Saldanha

    é mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e da Universidade de Pernambuco (UPE) coordenador do LLM em Direito Digital da Católica Business School e diretor de conteúdo da PlacaMãe.Org_.

5 de agosto de 2022, 13h11

Ao pensarmos em bem-estar, tendemos a direcionar nosso pensamento a momentos de felicidade, prazer e saúde. A imagem surgida reflete-se em sorrisos, prazeres, tranquilidade, conforto, descanso ou até mesmo momentos de euforia, mas que resultam na satisfação completa das exigências de corpo, mente e/ou espírito. Desde 1947, estampada no preâmbulo de sua Constituição, a OMS entende que o bem-estar integra o conceito de saúde, considerando que esta representa, "um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença" [1].

Daí, uma questão que nos surge é: poderíamos, então, utilizar essa mesma definição e percepção de momentos e sensações quando o contexto de análise da existência ou não de bem-estar é a prestação de serviço do Poder Judiciário brasileiro ou as premissas a serem utilizadas seriam outras?

O processo judicial brasileiro, assim como o Judiciário propriamente dito, tem por essência a necessidade de atendimento a princípios e regras conhecidos e disponibilizados em documentos legais, como os Código de Processo Civil e de Processo Penal. Então, falar em fatores como transparência, ética, duração razoável do processo, eficiência e eficácia talvez funcione como referenciais para o que podemos entender por bem-estar em sua prestação de serviço, sob a perspectiva, inclusive, de três personas: Jurisdicionado/a, Advogado/a e Servidor/a Público. Para Marcella Bittencourt [2], por exemplo, é necessário pensar na sustentabilidade das pessoas que trabalham no Judiciário brasileiro como sinônimo de saúde física e mental, bem como entender a sustentabilidade funcional como o trabalhar de forma satisfatória. Para ela, falar de bem-estar do Magistrado/a, por exemplo, é "impactar mais de sete mil vidas" já que esse é o universo médio de partes processuais de cada gabinete. Ou seja, um Juiz/a saudável significa o desempenho da "função no mais alto grau de excelência" que resulta numa "prestação jurisdicional muito mais efetiva e eficiente".

Nesse sentido, podemos pensar que o fluxo de atos processuais, o exercício de direitos e garantias do processo, o resultado das decisões judiciais e seus impactos na realidade social (eficácia e efetividade), assim como o bem-estar dos Jurisdicionados/as impactados, depende diretamente do bem-estar daqueles que praticam tais atos.  Assim, em um contexto de hiperconectividade social, no qual as tecnologias digitais estão sendo utilizadas em prol do aprimoramento e facilitação das atividades judiciárias e do desenvolvimento da percepção do que é ser humano, a definição de bem-estar pode estar associada à automação de tarefas repetitivas e/ou ao uso de inteligência artificial em alguns processos decisórios.

De acordo com o painel do CNJ, sobre projetos de Inteligência Artificial no Poder Judiciário [3], 32 tribunais já estão no caminho da utilização de tecnologias emergentes no intuito de melhorar qualitativamente a prestação do serviço oferecido, uma vez que o uso de tais tecnologias:

— proporciona um aumento na qualidade geral das decisões judiciais;
— se apresentam como uma solução para a limitação humana de operação de procedimentos em um tempo considerado razoável;
— resolvem o problema do trabalho acumulado;
— bem como leva o Tribunal para uma posição de órgão disposto a investir em inovação em prol do desenvolvimento da sociedade.

São 41 projetos mapeados pelo CNJ que abrangem análise de texto, organização de dados, otimização de processos e automação de fluxos de trabalho, bem como modelagem e avaliação de risco e análise de fala. Exemplos demonstrados abaixo, poderiam ter como resultado o aumento de bem-estar do jurisdicionado, do Advogado/a e do Servidor/a Público caso fossem utilizadas ferramentas de tecnologias digitais, no intuito de designar para o algoritmo o que pode ser feito por ele com excelência superior ao realizado pelo ser humano.

Vejamos o exemplo de três ações de indenização por dano moral e material por uso não autorizado de conteúdo protegido por direitos autorais. Estes exemplos são reais, retirados de situações concretas, mas os detalhes serão omitidos para preservar informações privadas. Foram três processos, três Juízos, mesmo objeto, mesma causa de pedir, mesma situação, mesmo autor, três partes adversas e três sentenças diferentes.  Em uma sentença o Juízo deferiu a indenização por danos morais. Em outro Juízo, a sentença concedeu a indenização por danos materiais e em um terceiro Juízo, houve a concessão dos danos morais e dos danos materiais.

Num outro exemplo, situações envolvendo ações de levantamento de FGTS por morte ou por pensão alimentícia, a ação que tinha a morte como justificativa para a expedição e levantamento do alvará de FGTS foi distribuída em agosto/2021 e até o momento não foi finalizada por espera de resposta à ofício enviado, por e-mail, para a Caixa Econômica Federal. A ação que tinha a pensão alimentícia como justificativa para a expedição e levantamento do alvará de FGTS foi distribuída em maio/2022 e hoje já se encontra em finalização aguardando unicamente o parecer do MP para liberação do montante.

E como último exemplo para esse texto, uma ação de usucapião (processo físico) com sentença favorável, mas que está aguardando determinado funcionário voltar de férias para que os/as advogados/as recebam a sentença com força de mandado para ser levada ao cartório de registro de imóveis.

Exemplos como esses aumentam a sensação de insegurança jurídica, prejudicam índices de confiança no trabalho do poder judiciário e mostram ineficiência na utilização de ferramentas de tecnologia digital que, em tese, poderiam colaborar na construção de um cenário bem diferente deste de insatisfação e incredulidade. Todos estes elementos reunidos mitigam quaisquer medições de bem-estar gerado "no" e "pelo" judiciário.

Aqueles que compõem os quadros deste poder são alvo de críticas e raivas depositadas pelos jurisdicionados, decorrentes de frustrações em suas expectativas de bem receber a prestação jurisdicional. Os funcionários do judiciário ainda têm que lidar com trabalhos maçantes e repetitivos, gerando inúmeras sensações de perda de tempo e de energia, que poderiam ser despendidas para trabalhos mais criativos, mais complexos e, por que não, mais humanos. Aos cidadãos e cidadãs, também não há exatamente altos índices de bem-estar gerado pelo judiciário, pelos elementos já apontados, como insegurança, incredulidade, demoras excessivas e frustração de expectativas.

Mas, como as inovações nas tecnologias da informação podem colaborar com a melhoria deste cenário? Para nós, as ferramentas que proporcionam automação de procedimentos e o uso de inteligências artificiais podem ajudar bastante na geração de bem-estar quando falamos de prestação jurisdicional. A automação pode colaborar com a gestão processual de atos repetitivos, tirando da atuação humana esta tarefa, diminuindo possíveis sensações de perda de tempo e energia por parte de quem está no judiciário. Isto pode fazer com que representantes deste poder foquem suas atividades naquilo que for mais complexo e mais desafiante, no bom sentido, gerando melhores índices de satisfação com seu próprio trabalho. Já as inteligências artificiais podem ser utilizadas para auxiliar na tomada de decisões, considerando que sua capacidade de processamento de informações, sua racionalidade e sua imparcialidade são superiores às que nós seres humanos possuímos. Isto, além de melhor satisfazer exigências do próprio ordenamento jurídico, pode proporcionar melhor foco dos/as magistrados/as em questões que exijam menos de suas capacidades técnicas e mais de suas capacidades humanas.

Para os/as jurisdicionados/as isto tudo pode representar um outro grau de confiança e satisfação com a prestação jurisdicional, considerando que o auxílio das tecnologias digitais a racionaliza, a torna mais eficiente e a torna mais indiferente a questões sociais, políticas e econômicas. Ao mesmo tempo que, ainda que paradoxalmente, a torna mais pessoal, mais humana por estar mais próxima do contexto hiperdigital em que estamos inseridos. Tecnologia para isto? Nós temos. Vontade humana para isto? Vai depender de queremos ou não. Vamos querer?

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Referências
[1] Biblioteca Virtual da Saúde. 05/08 – Dia Nacional da Saúde. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/05-8-dia-nacional-da-saude/ Acesso em 22 jul 2022.

[2] Responsável pelo Centro de Assistência Multidisciplinar do TJDFT. Entrevista sobre viver bem e trabalhar melhor. Disponível em https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/entrevistas/2020/201cviva-bem-e-trabalhe-melhor201d Acesso em 22 jul 2022.

[3] Painel CNJ, Projetos de Inteligência Artificial no Poder Judiciário. Disponível em https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=29d710f7-8d8f-47be-8af8-a9152545b771&sheet=b8267e5a-1f1f-41a7-90ff-d7a2f4ed34ea&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel Acesso em 22 jul 2022.

Autores

  • é advogada e consultora em Proteção de Dados, doutora em Direito, professora da ECJ da Universidade Católica de Pernambuco, fundadora da PlacaMãe.Org_ e da Reditech e associada da govDADOS.

  • é mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e da Universidade de Pernambuco (UPE), coordenador do LLM em Direito Digital da Católica Business School e diretor de conteúdo da PlacaMãe.Org_.

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