Controvérsias Jurídicas

Do crime de calúnia, competência para julgamento e pedido de retratação

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

4 de agosto de 2022, 8h06

Como é sabido, no dia 14/3/2018, a sociedade recebia perplexa a notícia do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco. Maior perplexidade causou a declaração de uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em sua rede social ao dizer que a vítima "estava engajada com bandidos" e teria como "base de apoio para sua eleição o Comando Vermelho". Ainda, creditou a morte ao seu comportamento como parlamentar, sempre muito ativa na problematização das questões sociais e de discriminação.

Reprodução
À época, a companheira de Marielle apresentou junto ao Superior Tribunal de Justiça queixa-crime contra a desembargadora, imputando-lhe o crime de calúnia, tipificado no CP, artigo 138, § 2º. "Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Detenção, de 06 meses a 02 anos, e multa – É punível a calúnia contra os mortos".

Preceitua o artigo 105, I, "a", da Constituição Federal que: "Compete ao Superior Tribunal de Justiça. I – processar e julgar originariamente: a) nos crimes comuns, os governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Constas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais". Todavia, no julgamento da AP 937 QO/RJ, o Supremo Tribunal Federal decidiu que tal prerrogativa somente se aplica aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados à função desempenhada, o que, em tese, não se enquadraria ao caso da desembargadora, tendo em vista que as postagens foram feitas em suas redes sociais pessoais, não guardando nenhuma relação com suas funções junto ao Poder Judiciário.

Diante de tal situação, o STJ firmou entendimento de que a competência para julgamento de desembargadores permanece nas instâncias superiores, se a remessa dos autos para a 1ª instância resultar em julgamento do réu por juiz vinculado ao mesmo tribunal. Uma das funções essenciais da Justiça é propiciar um julgamento imparcial, no qual o julgador possa externar sua decisão sem sofrer interferência de nenhuma ordem. Nesse caso, não restam dúvidas de que a manutenção da competência para julgamento da queixa-crime buscou trazer isenção à análise do processo, uma vez que o juiz de 1º grau, sob o prisma administrativo, encontrava-se em posição hierarquicamente inferior ao réu. Como leciona Márcio André Lopes Cavalcante: "Assim, no caso concreto, se não houvesse o foro por prerrogativa de função, a referida Desembargadora seria julgada por um magistrado de 1ª instância que, sob o aspecto administrativo, estaria subordinado à acusada" [1].

Eis parte do voto do ministro relator Benedito Gonçalves:

"É que, sem e tratando de acusado e de julgador, ambos, membros da Magistratura nacional, pode-se afirmar que a prerrogativa de foro não se justifica apenas para que o acusado pudesse exercer suas atividades funcionais de forma livre e independente, pois é preciso também que o julgador possa reunir as condições necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial. Esta necessidade (de que o julgador possa reunir as condições judicantes de forma imparcial) não se revela como um privilégio do julgador ou do acusado, mas como uma condição para que se realize a justiça criminal. Ser julgado por juiz com duvidosa condição de se posicionar de forma imparcial, afinal, violaria a pretensão de realização de justiça criminal de forma isonômica e republicana. A partir dessa forma de colocação do problema, pode-se argumentar que, caso Desembargadores, acusados da prática de qualquer crime (com ou sem relação com o cargo de Desembargador) viessem a ser julgador por juiz de primeiro grau vinculado ao tribunal ao qual ambos pertencem, se criaria, em alguma medida, um embaraço ao juiz de carreira" [2].

No que tange à legitimidade para a propositura da ação, por mais que o artigo 24, § 1º, do Código de Processo Penal, seja silente quanto ao status de companheira (o), desde que em união estável homoafetiva devidamente reconhecida, deverá dispor dos mesmos direitos do cônjuge no âmbito do processo penal, podendo ser autora da ação penal privada que visa reparar a honra objetiva da vítima. Nesse sentido decidiu o STJ:

"2. Por se tratar de crime de calúnia contra pessoa morta (art. 138, § 2º, do Código Penal), os querelantes — mãe, pai, irmã e companheira em união estável da vítima — são partes legítimas para ajuizar a ação penal privada, nos termos do art. 24, § 1º, do Código de Processo Penal (§1º. No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão do Superior Tribunal de Justiça)" [3].

Inclusive, há de se dizer que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e automatizado núcleo doméstico, aplicando-se à união estável entre as pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesmas consequências da união estável heteroafetiva [4]. Assim sendo, entendendo haver indícios suficientes de autoria e prova da existência do crime, o STJ recebeu parcialmente a queixa-crime oferecida contra a desembargadora, por ter ela imputado falsamente à vereadora Marielle Franco o crime previsto no artigo 2º da Lei nº 12.850/13, a saber: "Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa. Pena – reclusão, de 03 a 08 anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas".

Contudo, finalizada a instrução processual, a desembargadora publicou em uma de suas redes sociais extensa mensagem de retratação, asseverando ter se equivocado quanto às imputações anteriormente feitas por ter se baseado em boatos e notícias falsas. Lamentou o ocorrido e pediu escusas aos familiares da vítima, reforçando que não pesa contra a vereadora nenhum resquício de ligação com o crime organizado. Diante disso, por força do CP, artigo 143, sua defesa requereu a extinção da punibilidade.

Independentemente da concordância dos querelantes, nesse caso, a retratação tem o condão de extinguir a punibilidade, tendo em vista que que a mensagem desdisse por completo o que fora dito anteriormente. O próprio Código Penal prevê a possibilidade de arrependimento do autor nos crimes de calúnia e difamação, isentando-o da pena caso reveja seu posicionamento e reforme as falsas alegações. Retratar, portanto, significa retirar o que foi dito, reconsiderando a totalidade do conteúdo anteriormente exteriorizado.

Por ser causa extintiva da punibilidade (CP, artigo 107, VI), se encerra o direito de punir por parte do Estado [5]. Conforme observava Nelson Hungria: "do ponto de vista objetivo, é força reconhecer que o dano, se não é de todo apagado, é gradualmente reduzido. A retratação é muito mais útil ao ofendido do que a própria condenação penal do ofensor, pois esta, perante a opinião geral, não possui tanto valor quanto a confissão feita pelo agente, coram judice, de que mentiu" [6].

Trata-se de instituto criminal de declaração unilateral de vontade que independe de aceitação do ofendido. Se a retratação for apta a reconstituir a honra objetiva da vítima, finda-se a agressão ao bem juridicamente protegido, não podendo o agente ser responsabilizado pelo crime cometido. Trata-se também de circunstância subjetiva incomunicável, de modo que a retratação realizada por um dos coautores não se comunica com os demais. Este, pois, é o entendimento pacificado na jurisprudência: "A retratação da calúnia, feita antes da sentença, acarreta a extinção da punibilidade do agente independente da aceitação do ofendido" [7].

No caso sob exame, por mais vexatória que tenha sido a declaração da desembargadora com relação à atuação política da vereadora brutalmente assassinada, sua retratação se deu no mesmo veículo utilizado para a imputação falsa de crime, dando a mesma dimensão ao desmentido.

De igual modo, o pedido de desculpas foi feito sem nenhuma condicionante, sendo claro, completo, irrestrito e definitivo, a ponto de não remanescer nenhuma dúvida ou ambiguidade quanto à honra da ofendida. Tendo em vista que o objetivo da retratação é reconstituir a imagem da vítima perante terceiros, o meio escolhido e o modo como foi realizado atingiu integralmente o fim a que se destina.

 


[1] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e STJ comentados. São Paulo. Ed. JusPodivm, 2022, p. 943.

[2] STJ, Corte Especial. QO na APn 878-DF, rel. min. Benedito Gonçalves, j. 21/11/2018 (Info 639).

[3] STJ, Corte Especial. APn 912-RJ, rel. min. Laurita Vaz, j. 7/8/2019 (Info 654).

[4] STF, Pleno, RE 646.721, rel. min. Marco Aurélio, relator para acórdão min. Roberto Barroso, j. 10/5/2017; p. 11/9/2017.

[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Especial — arts. 121 a 212, 20ª edição. São Paulo. Ed. SaraivaJur, 2020, p. 375.

[6] HUNGRIA, Nélson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal, 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1979.v. 5.

[7] STJ, Corte Especial. APn 912-RJ, rel. min. Laurita Vaz, j. 3/3/2021 (Info 687).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!