Abaixo as convenções

"Newton" zomba do lado ridículo do teatro judicial

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3 de agosto de 2022, 15h43

Não gosto de bichos de estimação. Quem quiser ter cachorro em casa, deve pagar imposto por isso, da mesma forma que quem tem automóvel. É a reparação pela poluição sonora, fecal e pelo perigo que oferecem. Eles latem, mordem, assustam, sujam, contaminam as praias. Quem não pagar o imposto, é caso de perdimento. O bicho vai para o abate. Podemos exportar para a Coréia, por exemplo.

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É com essa provocação que o advogado criminalista Luís Francisco Carvalho Filho começa seu livro — um "romance" esclarece na capa — Newton (136 páginas, Editora Fósforo). Calma, a opinião não é dele. É do protagonista do livro, pessoa que se nega a informar sobrenome, filiação, local ou data de nascimento. "Não sou obrigado", explica. A tributação de pets é o primeiro desacato ao senso comum, de uma série que marca o texto.

O autor constrói a trama desafiando noções e julgamentos morais baldios com diálogos insólitos, mas verossímeis. Promotor, delegado, juíza, escrivão, agente, advogado — todos tentam impor ao protagonista que se submeta a regras não escritas, mas que todos seguem cegamente: ter sobrenome, documentos, endereço e outras convenções que, se não são obrigatórias legalmente, compõem o protocolo da vida em sociedade.

O livro, de certa forma, tenta sacudir as pessoas para ver se a ficha cai. Mostra o lado ridículo do teatro judicial, em que o formalismo enfeitado se sobrepõe à vida real do cotidiano. Algo que Luís Francisco já havia feito no livro de contos "Nada mais foi dito nem perguntado", que foi adaptado para o teatro pela companhia Folias D’Arte

Com a mesma destreza da obra anterior, o autor trafega do idioma formal ao coloquial com igual naturalidade. O ritmo é sincopado e galopante. Ao encarnar os diferentes papéis, Carvalho Filho leva o leitor pela mão até o desfecho sufocante.

Newton, o personagem, não aceita se subjugar e paga caro por isso. Faz o inverso do que propõe, em canção, outro Chico, o Buarque, em "Vence na Vida quem diz Sim", também como ficção, claro — para a peça "Calabar", em 1972, quando a música e a peça foram censuradas pelo regime militar. Mas a censura de que trata Newton não é apenas a vertical. Ele fala mais do caráter autoritário das pessoas comuns, como donos de cachorros, por exemplo.

O livro tem uma proposta específica, subliminar: explorar todo o sentido da liberdade de expressão, insistentemente sufocada por crenças religiosas, ideológicas ou pelo interminável capítulo da "moral e dos bons costumes", algo que Carvalho Filho, evidentemente, repudia e despreza.

Newton é perturbador, instigante e, feliz ou infelizmente, curto. Até com o tamanho da obra o autor quis ser insolente. Mas o esforço para incomodar não atinge o objetivo. O livro é aflitivo, mas hipnótico — em especial para quem sofre o Direito e a Justiça na pele.

Carvalho Filho compôs o modelo narrativo na forma de diálogos, como uma peça de teatro — feitiço que herdou do amigo Otavio Frias Filho, com quem compartilhava o ceticismo e o olhar crítico em relação à falsa moral e aos falsos "bons costumes". Advogado da Folha de S.Paulo há 37 anos, o autor de Newton influiu fortemente na linha editorial do jornal, no que toca aos limites da liberdade de expressão.

O credo que Newton professa nessa obra é muito parecido com o que o autor sempre pregou: o de que ordens judiciais ilegais não deveriam ser cumpridas, quando tratam da censura não prevista no ordenamento jurídico brasileiro, por exemplo.

O livro terá sessão de autógrafos em 10 de setembro, um sábado, a partir das 11h, na livraria Megafauna, à avenida Ipiranga, 200, loja 53, em São Paulo. Clique aqui para mais informações sobre o livro.

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