Consultor Tributário

Resistência ao pagamento de honorários desafia instituições

Autor

  • Hugo de Brito Machado Segundo

    é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

3 de agosto de 2022, 8h52

Peço à leitora desta coluna licença para, mais uma vez, abordar tema não especificamente de Direito Tributário. Como justificativa, vale dizer que o assunto é do interesse direto dos atuam no âmbito de processos judiciais tributários: honorários advocatícios de sucumbência, e os desafios que têm trazido a instituições como a separação de poderes e o sistema de precedentes.

Spacca
Relembrando, o Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73) estabelecia (artigo 20) que a parte vencida pagaria, ao advogado da parte vencedora, honorários de sucumbência fixados entre 10% a 20% do valor da condenação, a depender do trabalho do advogado, da complexidade da causa etc. Mas havia no artigo um § 4.º, aplicável às causas de pequeno valor, às de valor inestimável, e àquelas em que fosse vencida a Fazenda Pública, que liberava o juiz de tais limites percentuais. Poderia estabelecer, por equidade, valor maior, ou menor, a depender das circunstâncias de cada caso.

Isso levou alguns juízes, e tribunais de apelação, a entender que, vencida a Fazenda, os honorários deveriam ser fixados em valores módicos. Essa compreensão, somada a uma aplicação equivocada da Súmula 7/STJ (segundo a qual não se poderia, em Recurso Especial, reexaminar fatos), levou os Tribunais superiores a, em regra, não conhecer de recursos em torno do tema, tornando inteiramente arbitrária a fixação de tais honorários pelas instâncias ordinárias. Arbítrio que se exercia para fixar valores bem inferiores ao mínimo de 10%, com amparo unicamente no que o juiz, em cada caso, de modo totalmente subjetivo, considerava "merecido" pagar.

Foi essa situação que levou o legislador, na edição do CPC de 2015, a retirar do dispositivo equivalente ao antigo § 4.º do artigo 20 — agora, o § 8.º do artigo 85 — a expressão "Fazenda Pública". A apreciação equitativa ficou reservada apenas a processos de pequeno ou inestimável valor. Nas causas em que a Fazenda for parte — vencida ou vencedora — os honorários seguem a regra específica, e expressa, do artigo 85, § 3.º. Levando em conta que as demandas contra o Poder Público podem girar em torno de valores elevados, no CPC/2015 tais percentuais se reduzem conforme sobe a base. Confere-se, com isso, objetividade e previsibilidade, de um lado; mas, de outro, se atende a pretensão de dar às lides que envolvem a Fazenda — e, com isonomia, também ao cidadão que com ela litiga — tratamento diverso do aplicável às demais lides.

A clareza da disposição, somada aos elementos histórico, e sistêmico, deveriam ser suficientes, mas não foram, para conter a inclinação judicial de fixar tais honorários em montantes fixos e módicos, não relacionados às importâncias em disputa. Parte do Judiciário encontrou, em patente violação à lei, a válvula de escape justamente onde ela havia sido retirada: no § 8.º do artigo 85 do CPC/2015, que passou a ser usado para ressuscitar o antigo artigo 20, § 4.º, do CPC de 1973.

Submetida, então, a questão ao Superior Tribunal de Justiça, Corte competente, de acordo com a Constituição, para tutelar situações nas quais se nega vigência à legislação federal (justamente o caso do artigo 85 do CPC), esta se debruça sobre o tema e firma precedente, em sede de "recursos repetitivos", nos seguintes termos:

"1) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda, forem elevados. É obrigatória, nesses casos, a observância dos percentuais previstos nos parágrafos 2º ou 3º do artigo 85 do CPC — a depender da presença da Fazenda Pública na lide —, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa.

2) Apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo."

Mas o querer indômito de achatar subjetivamente os honorários, para que sejam fixados nos montantes tidos subjetivamente como "merecidos", tem feito com que as instâncias ordinárias tampouco respeitem o referido precedente, apesar da força vinculante que lhe dá a legislação de regência. Há juízes, e desembargadores, que abertamente afirmam o propósito de não respeitá-lo, bem como de não respeitar eventual decisão do STF no mesmo sentido, caso venha a ser proferida.

É interessante notar que não é comum, para não se dizer que nunca acontece, de magistrados agarrarem-se a um entendimento em torno do qual deveriam, em tese, ser equidistantes, resistindo tão aguerridamente à sua aplicação, mesmo diante de precedentes vinculantes. Geralmente, quando do debate de outros assuntos, embora tenham forte convicção de que um tema deve ser julgado de determinada maneira, passam a decidir de outra quando assim se inclina a jurisprudência. Mas neste, não; o viés não deixa.

Talvez com amparo nisso, tem surgido uma nova linha de resistência das instâncias inferiores à aplicação do artigo 85, § 3.º, do CPC, já com o esclarecimento dado pelo STJ quando do julgamento do Tema 1.076: trata-se da realização de um novo juízo de admissibilidade em recursos especiais antes admitidos e afetados ao tema pelo próprio STJ. Com a invenção, procura-se, de maneira organizada e institucionalizada, fazer com que pelo menos estes sejam "postos a salvo" da aplicação dos percentuais do § 3.º.

O raciocínio é o seguinte: diante de acórdão — de TRF ou TJ — que se recusa a aplicar o artigo 85, § 3.º, do CPC, a parte interpõe recurso especial, submetido a um primeiro juízo de admissibilidade, pela presidência do tribunal de origem. Admitido o recurso, porque nenhum óbice se vê ao seu processamento, este é encaminhado ao STJ, que dele por igual conhece, e, identificado o assunto, afeta-o ao regime dos recursos repetitivos. Tudo isso antes de ter sido concluído o julgamento que deu ensejo ao Tema 1.076, vale dizer, algo que se deu com incontáveis processos desde o início da vigência do CPC/2015 até a prolação do aludido "repetitivo".

O processo então é devolvido à corte de origem, com a expressa ordem de que a ele se atribua o entendimento que vier a ser firmado no Tema 1.076.

Finalmente julgado o Tema 1.076, nos moldes anteriormente transcritos, com a expressa indicação de que se fixem honorários nos percentuais legalmente indicados pelo § 3.º sobre o valor do proveito econômico, a corte de origem, em vez de aplicar o precedente, entende por realizar novo juízo de admissibilidade no recurso anteriormente interposto.

Veja-se. Diante de um recurso especial já conhecido, processado e devolvido ao tribunal de origem pelo STJ, para aplicação de um tema repetitivo, este tribunal de origem tem duas opções: retratar-se e aplicar o repetitivo, ou não o aplicar, e encaminhar o recurso especial ao STJ. Mas a vontade de não fixar honorários percentuais fala mais alto, e leva a que se crie um terceiro e extemporâneo juízo de admissibilidade, só para encontrar pretextos para não conhecer do recurso especial e assim manter o acórdão que fixara os honorários por equidade. Se, por exemplo, o tribunal de apelação houver afirmado, no acórdão recorrido, ao fixar os honorários por equidade, que "não seria razoável" aplicar os percentuais do artigo 85, § 3.º, diz-se que o acórdão tinha fundamento também constitucional (o princípio da razoabilidade…), fazendo necessária a interposição, também, de recurso extraordinário. Como não se interpuseram ambos os recursos, o recurso especial que apenas aguardava a aplicação do repetitivo deixa a posteriori de ser conhecido, embora já o tivesse sido, duas vezes, inclusive pelo STJ.

Tamanho desafio ao sistema de precedentes gera perplexidades até mesmo quanto ao recurso cabível, diante de decisão assim. Se o TRF não aplicar o repetitivo, deve encaminhar o REsp, já interposto e conhecido, ao STJ. Se o TRF aplica o repetitivo, mas a parte entende que aplicou mal, cabe agravo interno, dirigido ao seu plenário. Mas e se faz esse tal novo juízo de admissibilidade? Cabe, neste caso, o agravo para subida de Recurso Especial, o mesmo que caberia se, no primeiro juízo de admissibilidade, de modo tempestivo e ainda não alcançado pela preclusão, essa justificativa tivesse sido utilizada.

Tais aspectos, contudo, são questões superficiais, ou acessórias. Subjaz, em planos mais profundos, o questionamento a respeito dos verdadeiros motivos que levam a tamanhas resistência e criatividade para não aplicar uma lei e um precedente que a ratifica. Se há algo tão grave e absurdo no comando do artigo 85, § 3.º, do CPC, estranha-se que nada seja dito quanto ao seu § 2.º, que estabelece a aplicação dos percentuais de 10% a 20%, sem qualquer redução ou regressividade, à generalidade dos jurisdicionados. Chegam a ser explícitas, nas sessões de julgamento em que se debate o assunto, as comparações com as condenações e os subsídios dos julgadores, algo inteiramente fora de propósito. A uma, porque a comparação deveria ser com o orçamento do tribunal, ou do gabinete, e não com o líquido recebido pelo julgador. A duas, porque honorários sucumbenciais se recebem de modo esporádico, às vezes depois de se acompanhar um processo por lustros ou décadas. E, a três, porque a discussão, se pertinente, o seria no Congresso Nacional, não em uma sessão de julgamento.

É preciso lembrar, ainda, que a sucumbência é um importante fator de desestímulo à movimentação indevida da máquina judiciária. Talvez, sabendo da necessidade de arcar com esse ônus, se ele for significativo, diminua, por parte da Administração Pública de nosso país, a mania de dizer ao cidadão, quando este procura o Estado para pleitear qualquer coisa, que lhe assiste razão, mas que, "para se preservar", a autoridade não poderá reconhecer isso, devendo ele procurar o Judiciário. Em suma, a melhor forma de o Poder Público não gastar com sucumbência é não ser vencido judicialmente, e, para isso, basta que cumpra a ordem jurídica espontaneamente, independentemente de haver um juiz obrigando-o a isso.

Autores

  • é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).

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