Opinião

Carl Schmitt, estado de emergência e EC Kamikaze

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2 de agosto de 2022, 14h02

A controvertida PEC Kamikaze foi, afinal, aprovada pelas duas Casas do Congresso e promulgada como Emenda Constitucional nº 123/2022 no último dia 14 de julho, a mesma data que marca o início da Revolução Francesa.

Evocando outra coincidência de datas, exatamente há cem anos, em 1922, o jurista Carl Schmitt publicava sua obra Teologia Política, apresentando uma crítica contundente à democracia liberal ao resgatar a ideia de estado de exceção na teoria do estado.

Ora, a PEC Kamikaze, segundo artigo de Lenio Streck e Matheus Freitas, trouxe "uma terceira modalidade de estado de exceção na Constituição Federal" ao criar a figura do estado de emergência, sendo, por esse e outros motivos, inconstitucional. Como entender tal estado de emergência à luz da teoria do estado?

O estado de exceção em Carl Schmitt
Teologia Política começa com uma provocação: "soberano é quem decide sobre o estado de exceção" (p. 7).

Trata-se de um conceito limítrofe, que não é próprio para o caso normal, mas para os limites da normalidade. Nesse sentido, não há como falar de ordem estatal sem a sua exceção.

Segundo Schmitt, a soberania é um conceito teológico que foi secularizado pela modernidade. Deus é soberano porque cria a ordem natural, mas não está a ela restrito, podendo suspendê-la temporariamente, como nos milagres. Analogamente, o soberano estatal cria a ordem jurídica, mas está fora dela, podendo decidir pela sua suspensão in toto.

Logo, o ato de soberania por excelência é decidir por um estado de exceção. E tal ato é puramente uma decisão, já que não pode se vincular a uma norma geral (a norma geral não pode prever uma suspensão absoluta dela própria). Ainda que a ordem normativa tenha sido suspensa, permanece-se no âmbito do direito, pois o estado de exceção não significa caos, mas implica alguma ordem. Vale dizer, o Estado prevalece em detrimento do Direito; há uma ordem estatal, ainda que não seja a ordem normativa. 

As constituições até preveem momentos de exceção, quando se vislumbram riscos à existência estatal ou um grave estado de necessidade. No entanto, para Schmitt a questão é mais concreta do que abstrata. Importa saber quem vai decidir sobre o estado de exceção, o que é interesse estatal, quais ações serão tomadas. Isso porque o estado de exceção não se apresenta, no plano fático, "com clareza tipificável" (p. 8).

Daí a importância, para o jurista alemão, de identificar o sujeito da soberania. É no terreno fronteiriço entre direito e política, entre a ordem normativa e a ordem estatal, entre a normalidade e o estado de exceção  é justamente nesse território que é exercido o ato de soberania.

A grande crítica de Schmitt é que o estado de exceção, como corolário da soberania, foi removido das modernas teorias do estado. O racionalismo, alheio a qualquer ideia de arbítrio e exceção, amputou uma das prerrogativas inerentes ao soberano: o Estado liberal quer um Deus que não pode atuar, e um monarca que esteja privado de poder (p. 54). Assim, um autor como Kelsen "não sabe o que fazer com o estado de exceção" (p. 14), ou melhor, ele "resolve o problema do conceito de soberania negando-o" (p. 21).

O juspositivismo, perdido apenas em "pontos de imputabilidade", oferece uma teoria onde a própria ordem jurídica é soberana, num universo teórico onde "não há pessoas reais nem fictícias", e, principalmente, onde não há o "elemento decisionista e personalista'' da soberania (p. 45).

"Todavia, se o estado de exceção extremo realmente pode ser eliminado do mundo ou não, não é uma pergunta jurídica" (p. 8).

De forma pragmática, Schmitt reconhece os limites de uma teoria jurídica, pois não cabe ao direito determinar que a exceção extrema será eliminada do mundo. Sua crítica não procura celebrar ou facilitar o estado de exceção, mas reconhecê-lo e integrá-lo na teoria estatal, afirmando que tanto a criação da ordem jurídica quanto sua suspensão estão assentados em dois elementos: decisão e norma.

O estado de emergência na EC Kamikaze
A Emenda Constitucional nº 123/2022 acrescenta o artigo 120 ao ADCT, reconhecendo "no ano de 2022, o estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais dela decorrentes".

O que seria esse tal estado de emergência incluído pelo PEC Kamikaze? Críticos apontam que tal emergência permitiria o afastamento de uma série de normas legais e constitucionais ao caso concreto, como o teto de gastos, a regra de ouro e a lei eleitoral.

Não há previsão constitucional para o estado de emergência. Nossa Constituição, em seu Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas) traz dois instrumentos de exceção: o estado de defesa e o estado de sítio. São dois instrumentos pontuais, temporários e restritos de suspensão parcial da ordem normativa. Como já citado, Lenio Streck e Matheus Freitas apontam a inconstitucionalidade de tal "estado de emergência" pois ele se afigura, "por vias oblíquas", como uma terceira modalidade de estado de exceção, mas sem as restrições previstas para o estado de defesa e o estado de sítio. Seria uma exceção sem controles.

O risco anunciado por parlamentares e juristas é a banalização de tal estado de emergência, criando uma cultura de suspensão recorrente das normas postas a cada crise social, econômica ou política (já não é assim?), até que venha um "estado de exceção extremo". Estamos diante de um caso limítrofe, na fronteira entre normalidade e exceção, ou, para usar os termos de Schmitt, no limiar entre norma e decisão? 

Melhor para o direito seria teorizar a respeito da exceção ou fingir que ela não exista e torcer para que ela não ocorra? Melhor seria definir o sujeito da soberania por meio da teoria jurídica e, assim, evitar a guerra civil, garantindo uma moldura jurídica da ordem estatal no lugar do caos? Ou o só falar sobre isso seria entrar numa armadilha autodestrutiva, como se 1922 levasse necessariamente a 1933?

Ora, eis aí um debate que completa um século e permanece polêmico e atual, como todas as provocações de Carl Schmitt, sem exceção (com trocadilhos!).

Referências
SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elizete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
STRECK, Lenio Luiz;  FREITAS, Matheus Pimenta de. Não é só perigosa e irresponsável. PEC Kamikaze é inconstitucional. Revista Consultor Jurídico, 6 de julho de 2022. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2022-jul-06/streck-freitas-nao-perigosa-pec-kamikaze- inconstitucional>

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