Opinião

Denúncia antecipada nos negócios jurídicos de arrendamento rural

Autor

  • Thales Sousa da Silva

    é assessor judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (matéria cível) servidor efetivo do TJ-DF especialista em Direito Penal e Processual Penal autor no Canal de Ciências Criminais e no Internacional Center for Criminal Studies (ICC) colaborador no Empório do Direito e membro do Clube Metajurídico.

1 de agosto de 2022, 6h36

O direito agrário pode ser definido, de modo singelo, como o conjunto de enunciados normativos, sejam princípios ou regras, que regem as relações jurídicas estabelecidas para disciplinar o uso da terra.

Para a melhor elucidação do tema, é mister trazer ao baile o magistério de Paulo Torminn Borges [1]: "Direito agrário é o conjunto sistemático de normas jurídicas que visam a disciplinar as relações do homem com a terra, tendo em vista o progresso social e econômico do rurícola e o enriquecimento da comunidade".

Não menos conveniente, a lição de Fernando Pereira Sodeiro [2]: "(…) é o conjunto de princípios e regras, de direito público e de Direito Privado, que visa a disciplinar as relações emergentes da atividade rural, com base na função social da terra".

Como é elementar, a aludida disciplina normativa tem indubitável função teleológica e está vocacionada não apenas a regular obrigações de natureza patrimonial, pois põe em evidência preceitos tão caros como a função social da propriedade e a função social dos contratos. Nesse ponto, remeto o leitor às disposições dos artigos 5º, inciso XXIII, 184 e 186 da Constituição, em composição com os artigos 421 e 2.035, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro.

É exatamente por essa razão que nem todas as atividades do campo estão inseridas no âmbito de incidência do direito agrário, concernente ao desempenho da função social da propriedade, é dizer, ao exercício da produção racional e econômica, nos moldes do Estatuto da Terra.

No que tange especificamente às relações jurídicas privadas, registre-se o que prefigura o já mencionado artigo 2.035 do Código Civil Brasileiro: "nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos para assegurar a função social da propriedade e dos contratos". Dito de outro modo, os negócios jurídicos devem observar a função social da propriedade e a função social dos contratos.

Feitos esses aportes, é patente que o cognominado contrato rural não se pode desvencilhar dos preceitos que orientam à função social da propriedade e à função social dos contratos. Nesse sentido, o Estatuto da Terra, em seus domínios, cuidou de identificar fatores que contribuem para o bem desempenhar da função social da propriedade:

A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função quando, simultaneamente:

a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias.

b) mantém níveis satisfatórios de produtividade.

c) assegura a conservação dos recursos naturais.

d) observa as disposições legais que regulam as justam relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.

Sem a pretensão de promover acentuada digressão histórica, não se deve perder de vista que o direito agrário brasileiro nos moldes atuais é produto do debate incipientemente entabulado no contexto histórico das constituições Mexicana (1917) e de Weimar (1919), sitas em conjunturas pós-revolucionárias.

Não por outra razão, a justiça social igualmente se insere também como preceito basilar dos negócios jurídicos fundamentados no Direito Agrário, aliás, acorde com o que preconiza o Estatuto da Terra, senão vejamos:

"Art. 103. A aplicação da presente Lei deverá objetivar, antes e acima de tudo, a perfeita ordenação do sistema agrário do país, de acordo com os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano."

Note-se então que os contratos agrários, conquanto estejam inseridos no âmbito do Direito Privado, guardam a devida correlação com o Direito Público, na medida em que devem observar os preceitos da justiça social e da função social da propriedade.

Como corolário das precedentes considerações, o microssistema normativo do Estatuto da Terra ostenta destacada intenção protetiva do homem do campo, quer dizer, daquele que explora a propriedade de modo direto e pessoal, nos moldes dos artigos 38 e 8º do Decreto nº 59.566 de 1966:

"Art. 8º — Entende-se por cultivo direto e pessoal a exploração direta na qual o proprietário o proprietário, ou o arrendatário ou o parceiro, e seu conjunto familiar, residindo no imóvel e vivendo em mútua dependência, utilizam assalariados em número que não ultrapassa o número de membros ativos daquele conjunto".

O tema é bem sumarizado pelo voto condutor do acórdão proferido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no julgamento do REsp nº 1.447.082-TO:

"Analisando-se o Estatuto da Terra como um microssistema normativo, percebe-se que seus princípios orientadores são, essencialmente, a função social da propriedade e a justiça social (cf. arts. 1º e 2º, da Lei 4.504/64). (…) os princípios da função social da propriedade e da justiça social nem sempre andam juntos. O princípio da justiça social preconiza a desconcentração da propriedade das mãos dos grandes grupos econômicos e dos grandes proprietários, para que seja dado acesso à terra ao homem do campo e à sua família. Preconiza, também, a proteção do homem do campo nas relações jurídicas de direito agrário. A fixação do homem do campo à terra e sua proteção jurídica é medida de extrema importância social. A falta ou a ineficiência de uma política agrária faz com que rurícolas migrem para as grandes cidades, onde, não raras vezes, são submetidos a condições de vida degradantes, como temos testemunhado em nosso país, ao longo de décadas de êxodo rural contínuo. (…). Nessa ordem de ideias, o direito de preferência previsto no Estatuto da Terra atende ao princípio da justiça social quando o arrendatário é um homem do campo, pois possibilita que este permaneça na terra, passando à condição de proprietário. (…). Porém, quando o arrendatário é uma grande empresa, desenvolvendo o chamado agronegócio, o princípio da justiça social deixa de ter aplicabilidade, pois ausente a vulnerabilidade social que lhe é pressuposto. Tem-se no caso dos autos, portanto, uma situação em que, embora o princípio da função social seja aplicável, não o é o princípio da justiça social."

Com efeito, talqualmente aos diplomas tuitivos das relações de consumo e de emprego, o microssistema do Estatuto da Terra adota a premissa da vulnerabilidade ou hipossuficiência de uma das partes contratuais, de modo, inclusive, a relativizar a força obrigatória dos negócios jurídicos (pacta sunt servanda).

Feitas as devidas apresentações, o artigo acerca especificamente a ilegitimidade das cláusulas que convencionem a rescisão antecipada do contrato de arrendamento em vista da alienação do bem imóvel arrendado, situação comum na esfera dos negócios rurais.

Quanto a isso, é necessário inicialmente registrar que o Decreto nº 59.566 de 1966 estabelece prazos mínimos de vigência dos negócios jurídicos de arrendamento rural, escalonados nos períodos de cinco, seis e sete anos, a depender da atividade a ser exercida pelo arrendatário. Merece menção que a estipulação desses prazos no contrato é cláusula obrigatória, conforme do artigo 11 do referido diploma. (art. 13, Inc. II, alínea "a")

As cláusulas que estabelecem a possibilidade de rescisão nas hipóteses de alienação do bem imóvel, em verdade, prefiguram a resilição unilateral do negócio jurídico nessas situações, e transferem singelamente ao arrendador a prerrogativa de dispor, a seu prazer e a qualquer tempo, sobre continuidade da exploração agrícola.

Embora o ordenamento não a proíba, é certo que a resilição unilateral nessas hipóteses deve observar os prazos legais mínimos anteriormente aludidos, sob pena de subverter a norma contida no artigo 13, inciso II, alínea "a" do decreto em voga. Por certo, a prática é ilegítima e intenciona burlar a norma de proteção ao rurícola.

Saliente-se que as situações em que é possível a retomada do imóvel anteriormente ao decurso dos aludidos prazos foram previstas expressamente no artigo 95, inciso II, do Estatuto da Terra (direito de retomada) e não abarcam a hipótese de alienação do imóvel.

Convém advertir ainda que a alienação, nos exatos termos do artigo 15 do Decreto nº 59.566 de 1966 "não interrompe os contratos agrários, ficando o adquirente sub-rogado nos direitos e obrigações do alienante".

Nesse contexto, deve-se atentar ao fato de que o Decreto nº 59.566 de 1966 prevê a nulidade das cláusulas contratuais que impliquem renúncia aos direitos e vantagens nele instituídos, senão vejamos:

"Art 2º — Todos os contratos agrários reger-se-ão pelas normas do presente Regulamento, as quais serão de obrigatória aplicação em todo o território nacional e irrenunciáveis os direitos e vantagens nelas instituídos.
Parágrafo único. Qualquer estipulação contratual que contrarie as normas estabelecidas neste artigo, será nula de pleno direito e de nenhum efeito."

É evidente que a aludida cláusula consiste em renúncia ao prazo legal mínimo estabelecido para a continuidade do negócio jurídico de arrendamento rural e, portanto, é eivada de nulidade.

A respeito do tema, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça se manifestou no sentido de que:

"em se tratando de contrato agrário, o imperativo de ordem pública determina sua interpretação de acordo com o regramento específico, visando obter uma tutela jurisdicional que se mostre adequada à função social da propriedade (..) os prazos mínimos de vigência para os contratos agrários constituem norma cogente e de observância obrigatória, não podendo ser derrogados por convenção das partes contratantes" (REsp nº 1.455.709/SP).

Diante do exposto, conclui-se ilegítima a estipulação de cláusula que prefigure a possibilidade de resilição unilateral do negócio jurídico de arrendamento rural em virtude da alienação do bem imóvel.

 

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICA
BORGES, Paulo Torminn. Institutos do direito agrário. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 14
SODERO, Fernando Pereira. Direito agrário e reforma agrária. São Paulo: Leg Brasileira, 1968, p. 32
Rocha, Ibraim; TRECCANI, Girolamo Domenico; BENATTI, José Heder; HABER, Lilian Mendes; CHAVES, Rogério Arthur Friza. Manual de direito agrário constitucional: lições de direito agroambiental. 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

[1] BORGES, Paulo Torminn. Institutos do direito agrário. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 14

[2] SODERO, Fernando Pereira. Direito agrário e reforma agrária. São Paulo: Leg Brasileira, 1968, p. 32

Autores

  • é servidor do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), especialista em Direito Penal e Processual Penal e autor no Canal de Ciências Criminais e no International Center for Criminal Studies (ICCS).

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