Opinião

Busca pessoal: muito além da fundada suspeita

Autor

  • Juliano Marques de Azevedo

    é oficial no posto de 1º Tenente da Polícia Militar de São Paulo formado na Academia de Polícia Militar do Barro Branco e especialista em Processo Penal pela Escola Paulista da Magistratura.

1 de agosto de 2022, 20h28

Tema relevante, a busca pessoal está no centro do debate público, mais ainda depois da recente decisão da 6ª Turma do STJ (RHC 158.580), que considerou ilegal a busca pessoal baseada na impressão subjetiva do policial quanto à atitude suspeita do abordado.

A discussão: o que caracteriza a fundada suspeita, válida para autorizar a realização da busca pessoal?

Diz um provérbio árabe que "quem responde com pressa, raramente acerta". E a pressa  aqui  tem atropelado conceitos básicos, que, deixados para trás, nos levam a uma realidade de insegurança.

É preciso voltar um degrau, recuperar conceitos iniciais e só então, sob solo firme, discutir sobre os limites da busca pessoal.

Conceitos fundamentais
Abordagem policial é a intervenção policial que limita, momentânea e superficialmente, o direito de ir e vir da pessoa, e tem por objetivo uma verificação de interesse policial. Pode ou não acompanhar busca pessoal.

Qualquer pessoa  inclusive as que detém prerrogativa de foro  pode ser abordada pela Polícia; todas, sem exceção, devem se submeter à ordem de parada policial.

O não atendimento à ordem policial caracteriza o crime de desobediência [1]. Se no contexto exclusivo de fiscalização de trânsito, há infração administrativa, sendo atípica a conduta.

Busca Pessoal é o procedimento de vistoria do corpo da pessoa, que pode alcançar sua esfera de domínio e responsabilidade (malas, mochilas, pastas, bolsos, veículo), podendo ser classificada:

Quanto à Forma:
— Busca Pessoal Direta: realizada por meio da vistoria física do corpo do abordado e diretamente pelo policial, que utilizará as mãos para vistoriar bolsos, vestes, o corpo da pessoa abordada e seus pertences; ato exclusivo da Polícia, pois pressupõe a abordagem e o exercício de autoridade sobre a pessoa, que não tem escolha: deve se submeter à busca;

— Busca Pessoal Indireta: usa instrumentos para vistoriar o corpo da pessoa e sua esfera de domínio; não há contato direto com corpoda  pessoa. Independe de abordagem, como ocorre com os detectores de metais nos aeroportos. Inclui os scanners corporais e os detectores de metais;

Por não exigir exercício de autoridade pública, a busca indireta pode ser praticada na esfera privada, como acontece nos bancos e eventos;

O traço marcante da busca indireta é que pode ser recusada pela pessoa alvo; por isso mesmo, em regra, é utilizada como condição de ingresso em certos ambientes.

Quanto à Finalidade:
a) Busca Pessoal Investigativa/Probatória: disciplinada no Código de Processo Penal, no título “DA PROVA”, subdivide-se, conforme o art. 244 CPP, em:
a.1) decorrente da prisão;
a.3) decorrente de fundada suspeita;
a.3) decorrente de busca domiciliar;

A busca investigativa é a modalidade mais conhecida de busca pessoal. É instrumento policial voltado à produção de provas, elementos informativos e ligada à finalidade da persecução penal que é responsabilizar o autor do crime.

Abrange também a hipótese em que a polícia busca prender o autor de crime em flagrante de delito.

b) Busca pessoal preventiva: decorre da própria CF, é instrumento de preservação da ordem pública. Integra o conjunto de recursos da atividade de polícia administrativa, que visa não só evitar crimes, mas todo ilícito, incluindo civis e administrativos.

A busca preventiva é regulada por princípios constitucionais e administrativos. Seu alicerce fundamental é a supremacia do interesse público.

Nada mais é, então, do que a materialização do exercício do poder de polícia na esfera da segurança pública.

Trata-se de ferramenta da polícia de ordem pública, e não visa produzir prova, por mais que isso possa  acidentalmente  acontecer.

Entendendo melhor a busca pessoal preventiva
A busca pessoal preventiva não exige, como condição de realização, a fundada suspeita. Há uma incompatibilidade lógica. Explico.

Na investigação policial a atuação da Polícia é retrospectiva; busca-se, no presente, provar um evento passado; esclarecer autoria e materialidade.

Imagine que houve um homicídio, com arma de fogo.

Ainda nas proximidades local a Polícia avista um indivíduo com características iguais à descrição do autor do crime; e ele transita com um volume na cintura;

Não há dúvidas de que há fundada suspeita de que seja o autor do homicídio recém consumado.

Nos termos do artigo 244 CPP, está aí a autorização para abordagem dessa pessoa em específico, pois há fundada suspeita de que "esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito".

Não apenas pela obviedade do CPP disciplinar a atividade investigativa/processual, mas pela clareza da lei quando diz constituam corpo de delito, não há dúvida de que esse artigo NÃO se refere à atividade policial preventiva.

Simplificando: exigir fundada suspeita na busca preventiva faria com que a Polícia preventiva tivesse que esperar a ocorrência de um ilícito para que, suspeitando objetivamente dessa prática, pudesse realizar busca pessoal para encontrar aquilo que já constitui corpo de delito (logo uma infração penal).

Evidente a incompatibilidade lógica, pois a atividade preventiva pressupõe a antecipação, para impedir que o ilícito se concretize;

Diferente da polícia investigativa, de olhar retrospectivo, a polícia preventiva tem olhar prognóstico; olha para o futuro; por isso se dedica a uma atividade dissuasória, que visa desestimular a prática de ilícitos.

Atualmente está nas mídias da capital paulista que falsos entregadores de alimentos, provocaram uma onda de crimes graves na cidade.

Usam essa estratégia para diminuir a vigilância das vítimas e driblar a ação da polícia.

Diante desse cenário, à polícia investigativa caberá se voltar aos casos já ocorridos; identificar os autores e iniciar a persecução penal, preparando terreno para responsabilização criminal dos autores dos crimes já consumados.

Essa atuação  investigativa  será norteada pela fundada suspeita; fundadas razões; indícios veementes; e outros conceitos que traduzem o fumus comissi delicti, ou seja, autoria e materialidade do crime.

Já à polícia preventiva caberá olhar para frente e adotar postura que desestimule, iniba e previna a ocorrência de novos roubos.

Caberá a ela realizar buscas preventivas, as quais os entregadores serão, aleatoriamente, submetidos. Com isso espera-se que o ladrão que pensava em roubar se valendo desse ardil, desista, dada a enorme chance de ser pego.

Não há finalidade probatória ou investigativa. O que se quer, é dissuadir.

A 6ª Turma do STJ (RHC 158.580) sugeriu que 99% das buscas pessoais feitas pela Polícia não resultam em apreensão de material ilícito. E nem poderia ser diferente, já que o objetivo da busca preventiva não é "encontrar ilícito", e sim, dissuadir a prática de ilícito.

Agora, seria razoável que a Polícia preventiva esperasse o criminoso sair armado, e somente abordasse aquele que foi incapaz de bem esconder a arma na cintura, deixando um volume à mostra, gerando, assim, a tal fundada suspeita objetiva?

Claro que não! Ou então acabemos com a prevenção policial.

No caso paulista, mostrando, como poucos, compreender bem o tema,  foi exatamente essa a providência adotada pelo Comandante Geral da PM, e ao que tudo indica vem dando bons resultados [2].

É claro que acidentalmente poderá haver produção de prova. Mas esse encontro acidental de elementos probatórios (serendipidade) é pacificamente aceito pelos tribunais.

Mas porque a busca pessoal investigativa exige fundada suspeita e a preventiva não? Além da incompatibilidade lógica já citada, há uma questão de fundo que é importante.

Na busca investigativa o objetivo da Polícia é relacionar a pessoa alvo a um crime ocorrido. Ao fim o que se ‘busca’ é atribuir à pessoa a responsabilidade penal por um fato já ocorrido.

Há verdadeira ameaça ao status libertatis do indivíduo que pode ser relacionado a um fato penal com o qual não possui nenhuma ligação.

A fundada suspeita é pressuposto e valida a diligência investigativa, pois deita os efeitos da justa causa para investigação também sobre busca pessoal.

A fundada suspeita, portanto, funciona como garantia de que a pessoa não será, aleatoriamente, relacionado à prática de uma infração penal investigada, sem possuir relação com o fato.

Já a busca preventiva visa manter a ordem pública, evitar ilícitos, dar efetividade às leis.

Mas então, quais os limites da busca pessoal preventiva?
Dizer que a busca pessoal preventiva não está condicionada à fundada suspeita não quer dizer que não possua limites.

Como ato administrativo que é, está submetida aos requisitos competência, forma, motivo, finalidade.

Competência: a busca pessoal preventiva só pode ser realizada por órgãos policiais com atribuição de polícia administrativa:

— Polícia Federal: a par de sua função de polícia judiciária, possui funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteira; logo a busca pessoal preventiva pode ser realizada pela Polícia Federal no exercício de suas atividades de polícia de ordem pública. Quando no exercício de atividade investigativa, a busca pessoal deve seguir o rito do CPP, exigindo-se fundada suspeita.

— Polícia Rodoviária Federal: como polícia administrativa especializada na atuação em rodovias federais, pode realizar busca pessoal preventiva.

— Polícia Ferroviária Federal: pode realizar busca pessoal preventiva; A CF limita sua atuação às ferrovias federais. Apesar da previsão da CF/88 este órgão policial até hoje não foi criado;

— Polícias Civis: como polícia investigativa, não pode realizar busca pessoal preventiva; isso não impede, é claro, que a Polícia Civil atue diante de situações de flagrante; todavia sua atuação é adstrita à investigação policial; é órgão policial especializado na investigação;

— Polícias Militares: a busca preventiva é seu instrumento mais usual na atividade de preservação da ordem pública. Possui espectro de atuação residual; isso significa que a Polícia Militar pode realizar busca pessoal preventiva inclusive em rodovias e ferrovias federais;

— Polícia Penal: criada por Emenda Constitucional em 2019, tem como função a segurança dos estabelecimentos penais; Entendemos que não compete às policias penais realizar buscas pessoais preventivas, exceto se relacionadas à segurança dos estabelecimentos penais.

É perfeitamente possível a realização de busca preventiva pela Polícia penal no entorno imediato dos presídios, nas movimentações de presos, e no interior dos presídios;

g) Guardas Municipais: em que pesem serem órgãos de segurança pública, não são órgãos policiais. São em verdade guardas patrimoniais dos municípios, destinadas à proteção de bens, serviços e instalações. No âmbito da realização dessa atividade é perfeitamente possível a realização de buscas pessoais preventivas pela GCM. Fora desse contexto, entendemos haver abuso de poder, na modalidade excesso de poder.

Forma: não há prescrição legal da forma de realização da busca pessoal preventiva; o regramento deve seguir os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Mas um detalhe nos chama atenção. A exceção prevista no artigo 249 CPP para realização de busca investigativa em mulher, feita excepcionalmente por homem, não se aplica à busca pessoal preventiva.

Na busca investigativa, dada a fundada suspeita, o risco ao policial é maior, e como visa colher prova, o retardamento da busca investigativa pode prejudicar a efetividade da medida; logo, excepcionalmente, a lei processual autoriza a busca pessoal na mulher feita por policial homem (trata-se de providência urgente/cautelar);

Já na busca preventiva não!
Como se trata de medida preventiva que visa dissuadir a prática de ilícitos, desprovida de urgência e cautelaridade, a exceção do artigo 249 CPP não se aplica à busca preventiva direta, feita com as mãos sobre o corpo da mulher, por policial homem;

Imagine nos casos de furto em que mulheres vestindo saias longas escondem entre as pernas produtos subtraídos das lojas;

Se a polícia preventiva resolve realizar operação num grande centro comercial abordando mulheres que saiam das lojas com essa vestimenta, independentemente de fundada suspeita [3], deverá a própria polícia se organizar para que atue com agentes mulheres na realização da vistoria corporal direta das abordadas.

A razoabilidade impede que policial homem proceda a vistoria do corpo da mulher abordada na busca preventiva.

Será possível  no máximo  que o policial homem proceda a busca indireta (pedir para mulher colocar bolsos pra fora) ou de pertences da abordada (bolsa, mochila, veículo), sem que haja contato direto com o corpo da abordada.

Finalidade: é sempre o interesse público; se um policial realiza busca pessoal no atual cônjuge de sua ex-mulher,  para constrangê-lo, resta inválida a busca pessoal, pelo desvio de finalidade, sem prejuízo de eventual crime de abuso de autoridade.

Motivo: a busca pessoal deve estar assentada nas razões de fato e direito que a justificam; não se trata de identificar no abordado um comportamento que dê margem a busca pessoal; O motivo da abordagem está relacionado às razões que impelem a atuação da polícia no caso concreto.

No exemplo dos roubos na capital paulista, o motivo que fundamenta a abordagem é o fato de que criminosos estão se passando por entregadores para praticar crimes graves, o que exige a intervenção policial;

O motivo está na situação que leva a polícia a atuar e não no comportamento específico da pessoa que será submetida à busca pessoal.

Mas em algum caso se exigirá da Polícia Administrativa fundada suspeita para abordar?
Sim. Toda instituição policial, mesmo que não conduza investigação criminal, pratica a busca pessoal investigativa quando atua no contexto da repressão imediata (reestabelecimento da ordem pública logo após a prática de um crime).

Assim é perfeitamente possível que a PM ou a PRF, por exemplo, realizem busca pessoal investigativa quando, logo após a prática de um roubo, policiais abordam indivíduo com vestes e traços físicos descritos pela vítima como sendo o autor do crime.

Nessa hipótese, será fundamental que os policiais atuem diante da fundada suspeita, motivando as razões da abordagem no contexto da busca pelo autor do crime, nos exatos termos do que decidiu o STJ: de forma objetiva.


[1] STJ/2022. TEMA 1060

[2] O Coronel PM Ronaldo Miguel Vieira, Comandante Geral da PMESP, determinou a realização de buscas preventivas após  a ‘onda’ de roubos por falsos entregadores. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/05/03/pm-de-sp-vai-parar-todos-os-motociclistas-diz-novo-comandante-geral.ghtml

[3] Abordagens desta espécie são denominadas "abordagem por amostragem"; visam demonstrar que "não compensa praticar" o ilícito dado o risco de ser pego pela Polícia (Fator de Dissuasão);

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  • é oficial no posto de 1º Tenente da Polícia Militar de São Paulo, formado na Academia de Polícia Militar do Barro Branco e especialista em Processo Penal pela Escola Paulista da Magistratura.

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