Direito Civil Atual

A prescrição nas ações de representação comercial

Autor

  • William Galle Dietrich

    é advogado doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

1 de agosto de 2022, 12h51

Recentemente, a Lei 14.195, de 26 de agosto de 2021, alterou o art. 44, parágrafo único, da Lei 4.886 de 09 de dezembro de 1965 (Lei de Representação Comercial). Para aquilo que interessa neste texto, a parte final do dispositivo prevê que “[…] prescreverá em 5 (cinco) anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos garantidos por esta Lei”. É de se destacar que a alteração no parágrafo único do art. 44 ocorreu apenas em sua parte inicial, já que a parte final do dispositivo manteve identidade com a redação pretérita. Antes da alteração, o texto possuía a seguinte redação: “prescreve em cinco anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos que lhe são garantidos por esta lei”. Ou seja, a alteração no dispositivo não pretendeu modificar a questão da prescrição. Isso, contudo, cria a oportunidade para que alguns comentários sobre a questão sejam feitos, especialmente pelo fato de que a prescrição nas ações de representação comercial apresenta alguns traços característicos que são dignos de escrutínio.

ConJur
O ponto que merece destaque nessas espécies de relações situa-se na aparente duplicidade de prazos prescricionais. Para alguns dos direitos reivindicados pelo representante, há que se limitar a análise do período contratual aos últimos cinco anos; para o direito à indenização de 1/12 (previsto no art. 27 “j” da Lei 4.886/65), entretanto, não haveria tal limitação. Essa é uma visão consolidada na jurisprudência do STJ e que vale ser explicada, sobretudo pelo rigor com que foi edificada.

Inicialmente, sobre a questão da indenização de 1/12, é preciso observar aquilo que o art. 27, “j” da Lei de Representação afirma. Diz o dispositivo que “do contrato de representação comercial, além dos elementos comuns e outros a juízo dos interessados, constarão obrigatoriamentej) indenização devida ao representante pela rescisão do contrato fora dos casos previstos no art. 35, cujo montante não poderá ser inferior a 1/12 (um doze avos) do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação. Essa cláusula opera como uma garantia do representante. Ela funciona, guardadas as devidas proporções, com a mesma racionalidade do FGTS do trabalhador regido pela CLT. A cláusula visa a formação de um crédito em favor do representante para que, havendo uma resilição unilateral do contrato promovido pela representada, o representante possa receber um valor que lhe garanta um período de estabilidade financeira após o término da relação contratual.[1]

A dificuldade que se colocou foi saber se, nas relações de representação comercial com mais de cinco anos, esse prazo fulminaria o excedente na apuração do 1/12. Afinal, o prazo previsto no parágrafo único do art. 44 é de cinco anos, mas o art. 27, “j”, da lei 4.886/65, em sua parte final, afirma que o cálculo terá como base o “total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação”. Assim, a dúvida que se formou é: o 1/12 é calculado sobre todo o período da representação, ou, por outro lado, é limitado pelo parágrafo único do art. 44?

Consolidou-se no STJ o entendimento de que o 1/12 não é limitado pelos cinco anos. O fundamento utilizado pelo Tribunal parece ser irrefutável. O Tribunal argumentou que o prazo prescricional somente pode ter início quando já existe pretensão (=poder de exigir a satisfação de um direito). Não por acaso, o art. 189 do CC diz que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição”. No caso da indenização de 1/12, o direito e sua correspondente pretensão só nasce com a resilição unilateral do contrato por parte da representada. Se a causa para o término da relação contratual for uma eventual resolução por inadimplemento do representante (hipóteses do art. 35 da Lei 4.886/65), então a indenização de 1/12, porque carente de suporte fático, jamais existirá. Logo, não pode prescrever aquilo que nem sequer era exigível.[2]

Daí que é preciso dar o devido tratamento para a questão. Com efeito, alguém que mal interpretasse o dispositivo poderia questionar: isso significa, então, que o representante pode cobrar um valor devido há 20 ou 30 anos? Esse direito é, de fato, imprescritível?

Com efeito, a resposta passaria por destacar que nenhum valor a título de indenização de 1/12 era devido há 20 anos ou em outro momento anterior ao término da relação comercial. O direito à indenização nasce da resilição unilateral do contrato por parte da empresa representada. A resilição sem justo motivo que é o suporte fático do direito subjetivo à indenização, sendo que o 1/12 sobre todas as comissões recebidas na relação contratual é mera base de cálculo.

Em termos ainda mais claros: quando o representante comercial cobra o seu direito de 1/12, tendo como base valores recebidos a título de comissão em um período superior aos cinco anos, ele, em verdade, não está cobrando algo prescrito. Aqui é preciso reiterar a divisão fundamental: o 1/12 calculado sobre todas as comissões não é, ele mesmo, o valor devido, mês a mês, criado nos anos que antecederam a resilição; o 1/12 estabelecido na legislação é a base de cálculo da indenização que surge no momento da resilição sem “justo motivo” e unilateral do contrato por parte da representada.

Essa base de cálculo tem uma explicação vinculada com a necessidade prática das atividades do representante comercial, a saber, a rápida reposição de crédito para que siga sua atividade de representação com alguma outra empresa representada. É nesse sentido que vai a constatação de Rubens Requião: “preferiu-se a indenização estabelecida por percentual prefixado, em valor provavelmente menor que o que decorreria das perdas e danos efetivas, para que se evitassem as dificuldades e as delongas para compor estas mesmas perdas e danos nos termos do Direito comum”.[3]

Isso cria a aparente “duplicidade” da prescrição mencionada no início deste texto: se, por exemplo, o representante pretende cobrar eventuais danos sofridos por prática del credere (art. 43 da Lei 4.886/65) ou diferenças de valores pagos por comissão, então o espaço temporal do contrato a ser analisado é o dos últimos cinco anos, ainda que a relação tenha durado mais; já no caso da indenização de 1/12, o espaço temporal do contrato a ser analisado para descobrir o valor da indenização é ilimitado.[4] Isso, contudo, se dá por uma cirúrgica distinção feita pela jurisprudência do STJ: o direito de 1/12, ao contrário das outras eventuais indenizações, não surge mês a mês; pelo contrário, surge com a resilição unilateral, de forma que o cálculo indenizatório observará as comissões recebidas mensalmente, não como direitos indenizatórios em si considerados, mas, por outro lado, como base de cálculo de uma resilição imotivada promovida pela empresa representada.

Dessa forma, fica claro que não há uma duplicidade de prescrições, já que, tanto no caso do 1/12, como no caso de outras cobranças, o prazo aplicável é o do art. 44, parágrafo único da Lei 4.886/65. No primeiro caso, o suporte fático é a resilição unilateral; no segundo, são os danos ocorridos mês a mês. Em ambos os casos, aplica-se o prazo prescricional do art. 44, parágrafo único.

Embora a discussão esteja consideravelmente consolidada no STJ, é sempre digno de valor revisitá-la e explicá-la. Primeiro, porque o rigor e a correção da construção servem de parâmetro para a jurisprudência; segundo e considerando a dificuldade interpretativa que a tênue distinção pode ocasionar porque não raro alguns Tribunais acabam por confundi-la, como, por exemplo, situações em que a “imprescritibilidade” é aplicada não ao 1/12, mas a cobrança de direitos outros como a cobrança de comissões.[5]

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II—Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] Há interessante discussão envolvendo a possibilidade de “antecipação” dessa indenização, de forma mensal. Sobre o tema, vale consultar: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos: Autonomia da Vontade e Teoria da Imprevisão. São Paulo: Atlas, 2006. p. 75–77. Também vale mencionar o seguinte julgamento: STJ, REsp nº 1.831.947/PR, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T, j. 10.12.2019, Dje 13.12.2019. Esse julgamento é objeto de análise de comentário de jurisprudência, que aguarda publicação na Revista de Direito Civil Contemporâneo: RAATZ, Igor; DIETRICH, William Galle. REsp 1.831.947/PR: a cláusula de 1/12 do representante comercial e os elementos histórico, sistemático e gramatical. Revista de Direito Civil Contemporâneo, 2022.

[2] Nesse sentido: “Embora haja aqueles que defendem que o termo inicial para a contagem do quinquênio é a data do término do contrato […] é certo que a prescrição extingue a pretensão, tal como nos fala o art. 189 do CC/02, e esta só nasce com o direito violado. As pretensões deduzidas em juízo são de várias ordens. A recorrida pretendeu receber verbas rescisórias (arts. 27, ‘j’, e 34 da Lei 4.886/65), comissões pagas a menor, indenização pela quebra da exclusividade, assim como o ressarcimento dos lucros cessantes e danos morais. […] O direito e a pretensão de receber verbas rescisórias só nascem com a resolução injustificada do contrato de representação comercial, fato que, na hipótese dos autos, ocorreu em outubro de 1995. A ação, por sua vez, foi ajuizada meses depois, em 31.01.1996, não havendo que se falar em prescrição. É bem verdade que a indenização devida com amparo no art. 27, ‘j’, da Lei 4.886/65 tem por base o ‘total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação’. Ocorre que calcular a indenização segundo o que ocorreu no contrato de representação não significa dizer que, no passado, já houvesse algum direito à indenização e que ele fosse então exigível. Rubens Edmundo Requião, ao atualizar a obra de Rubens Requião, assevera, com precisão, que as comissões pagas, compensadas ou apenas creditadas ‘formarão a base de cálculo da indenização, mesmo que extintas (…) Comissão paga não se perde por prescrição, muito menos para efeito do cálculo da indenização. Na verdade, o legislador não limitou o prazo que servirá de base para o cálculo da indenização (…)’” (STJ, REsp 1.085.903/RS, rel. Min. Nancy Andrighi 3.ª T, j. 20.08.2009, Dje 30.11.2009).

[4] Como exemplo recente: STJ, REsp nº 1.838.752/SC, rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª T, j. 19.10.2021, Dje 22.10.2021.

[5] TJRS, AgInst 70085302396, rel. Des. Leoberto Narciso Brancher, 15.a C. Civ., j. 06.10.2021, DJe 22.10.2021.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), como bolsista Capes/Proex, membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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