Opinião

Reformas da LIA: retrocessos e inconstitucionalidades

Autor

  • Maicon Natan Volpi

    é especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP) e analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

30 de abril de 2022, 7h03

A Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) passou por significativas mudanças, promovidas pela Lei nº 14.230/21, muitas delas em evidente retrocesso na tutela do patrimônio público e da moralidade na Administração Pública, e algumas das disposições alteradas possuem claras violações ao texto constitucional. Nestes aspectos, vale destacar as alterações promovidas especificamente em relação à medida cautelar de indisponibilidade de bens.

A temática referente à indisponibilidade de bens veio unificada no artigo 16, destacando o seu parágrafo 8º que se "aplica à indisponibilidade de bens regida por esta Lei, no que for cabível, o regime da tutela provisória de urgência da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)" [1], conferindo verdadeira unidade na interpretação do direito, sendo este um dos únicos pontos de avanço na nova disciplina normativa sobre o tema da cautelar de indisponibilidade.

O retrocesso já fica evidenciado da leitura do caput do artigo 16 [2], o qual promoveu uma limitação do âmbito de incidência da medida cautelar, de modo que ela apenas pode ser utilizada para o fim de garantir a integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito. Para qualquer outra finalidade, por imposição legislativa, a medida cautelar de indisponibilidade de bens seria uma "tutela jurisdicional inadequada".

O texto normativo representou um claro objetivo de superar entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça, o qual, no julgamento do tema 1055, definiu que "é possível a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponibilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa, inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no artigo 11 da Lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos" [3].

Ocorre que a promoção desta limitação ao âmbito de incidência, para além de definir as balizas do devido processo legal, promoveu verdadeira negativa de tutela jurisdicional preventiva.

Na verdade, a restrição operada pela reforma representa verdadeira negativa de acesso à justiça, garantia constitucional fundamental, prevista no artigo 5º, inciso XXXV, parte final, da CF/88 [4], de modo que, para além do retrocesso, há vício de inconstitucionalidade material na aludida norma.

Vale destacar que não se trata de qualquer negativa de acesso à justiça, que por si só é inconstitucional, mas sim da negativa de uma tutela jurisdicional cautelar com respaldo constitucional, pois, nos termos do artigo 37, §4, "os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível" [5].

Apresentando o constituinte de 1988 uma verdadeira garantia constitucional qualificada na tutela jurisdicional e no acesso à justiça, referente às questões de patrimônio público e moralidade administrativa, a reforma apontada inseriu na Lei nº 8.429/92 dispositivo com claro vício de inconstitucionalidade material.

Ainda sobre o âmbito de incidência da cautelar, na sequência, o §10, do referido artigo 16, da LIA traz perplexidade novamente, ao dispor que "a indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita" [6].

Cabe aqui questionar: se o dispositivo trata da indisponibilidade para ressarcir dano ao erário, sem enriquecimento ilícito, sobre qual bem deve incidir a indisponibilidade, vez que vedada sobre o acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita?

Parece que o âmbito de limitação de incidência da medida cautelar é ainda mais amplo do que o referido expressamente no caput do artigo 16, e, pelas mesmas razões já citadas, mostra-se inconstitucional.

A reforma ainda trouxe no artigo 16 o §3º, segundo o qual "o pedido de indisponibilidade de bens a que se refere o caput deste artigo apenas será deferido mediante a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo (…)" [7].

Buscou-se com a reforma superar entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, que dispensava a demonstração do "periculum in mora" para o deferimento da medida cautelar, em especial sob o fundamento de que há verdadeira tutela de evidência quanto a este requisito [8].

De fato, se alguém utiliza cargo, emprego ou função público para desvio de recursos públicos, ou age de qualquer forma em prejuízo da Administração Pública, há evidente risco na tutela jurisdicional efetiva do patrimônio público e da moralidade pública a ausência de medida cautelar. Aguarda provas e demonstrações de efetiva dilapidação do patrimônio para início da tutela jurisdicional representa sério risco à efetividade do processo.

Contudo, para além de mero retrocesso, há aqui novamente vício de inconstitucionalidade material, pois, por mandamento constitucional supracitado (artigo 37, §4º), a indisponibilidade de bens deve ser imposta, representando a única tutela provisória de natureza cautelar imposta, de forma expressa, pelo constituinte.

Há um mandamento constitucional de efetividade da tutela jurisdicional preventiva do patrimônio público e da moralidade administrativa, não podendo o legislador infraconstitucional esgueirar-se do imposto pelo constituinte.

Por fim, traz o §11º uma "ordem de indisponibilidade de bens" a ser seguida quando deferida a cautelar de indisponibilidade de bens daquele que praticou atos de improbidade, que importem enriquecimento ilícito e dano ao erário.

Buscou-se dar primazia ao princípio da menor onerosidade do executado em relação ao princípio e mandamento constitucional da efetiva tutela do patrimônio e da moralidade pública.

Pela supremacia constitucional, a todo evidência, o primeiro princípio não deveria se sobrepor ao segundo, para fins de estabelecer regra sobre "ordem de indisponibilidade de bens". Ademais, não se trata de mera execução, mas de repressão a ilícito doloso e de ressarcimento do erário das consequências deste ilícito advindas, questões estas que gozam de primazia constitucional.

Desta forma, é possível verificar vícios de inconstitucionalidade material no artigo 16 da LIA (que trouxe normas acerca das medidas cautelares de indisponibilidade de bens), em especial por conta da estipulação de limitação do âmbito de incidência da medida cautelar, em verdadeira negativa de acesso à justiça, e em confronto com o mandamento constitucional qualificado de tutela preventiva do patrimônio público e da moralidade administrativa (artigo 37, §4º), que determina a imposição da medida cautelar independentemente de comprovação de perigo da demora. Há ainda violação ao mandamento constitucional da efetiva tutela do patrimônio e da moralidade pública no estabelecimento de uma “ordem de indisponibilidade de bens”, pois estabelece primazia ao imputado, que praticou ilícito, em verdadeiro confronto ao estabelecido pelo constituinte.


[1] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acessado em 16/04/2022.

[2] Artigo 16. Na ação por improbidade administrativa poderá ser formulado, em caráter antecedente ou incidente, pedido de indisponibilidade de bens dos réus, a fim de garantir a integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acessado em 16/04/2022.

[4] XXXV  a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acessado em 16/04/2022.

[6]  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acessado em 16/04/2022.

[7] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acessado em 16/04/2022.

[8] Consoante o Tema 701/STJ  "É possível a decretação da 'indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro'". REsp1366721/BA. Disponível aqui. Acessado em 16/04/2022.

Ainda segundo STJ: "o acórdão de origem também está em consonância com a orientação firmada por esta Corte Superior de que a decretação de indisponibilidade de bens em ação civil pública por ato de improbidade constitui tutela de evidência, dispensando a comprovação de periculum in mora. É suficiente para o cabimento da medida, portanto, a demonstração, em uma cognição sumária, de que o ato de improbidade causou lesão ao patrimônio público ou ensejou enriquecimento ilícito, o que ocorreu na espécie"AgInt no AgInt no AREsp 660.851/ES. Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201500225770&dt_publicacao=09/06/2021. Acessado em 16/04/2022.

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  • é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo e especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMPSP).

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