Opinião

Limites da cooperação dos laboratórios clínicos nos exames anatomopatológicos

Autor

  • Estevan Pietro

    é advogado mestre em Direito Administrativo pela Universidade de Coimbra (FDUC/Portugal) especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (Ibet/SP) especializando em Regulação Pública e Concorrência pelo Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre/Portugal) pesquisador do grupo de pesquisa em Direito Administrativo Sancionador do IDP/DF e membro das Comissões de Direito Administrativo e de Relacionamento com o Poder Legislativo da 22ª Subseção da OAB/SP (São José do Rio Preto).

29 de abril de 2022, 9h08

A vigente regulamentação da medicina iniciou-se com o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 268 de 2002. Anos depois, na Câmara dos Deputados foi identificado como Projeto de Lei (PL) nº 7.703/2006. Durante a tramitação do PL, a efervescência legislativa indica a sensibilidade do tema: o projeto sofreu 79 emendas de diferentes comissões e plenário e, após década de discussão, o projeto alcançou o seu propósito por meio da promulgação da Lei nº 12.842/2013.

Os questionamentos e pressão de conselhos profissionais de setores da saúde no parlamento, auxiliaram para este número exorbitante de emendas em lei absolutamente concisa (apenas oito artigos). Não por acaso, todos os vetos presidenciais resultaram no objetivo principal das emendas: restringir a amplitude do que seria ato médico para que demais profissões da área da saúde não tivessem minimização sensível do trabalho que já desempenhavam.

A apelidada Lei do Ato Médico apresenta no caput de seu artigo 4º, rol do que seria atividade privativa de médico e, no mesmo artigo, outro rol (§5º) com ressalvas do que não seria considerado ato médico. Apesar de contidos no mesmo artigo, cada rol apresenta natureza própria: o primeiro, possui o condão exemplificativo; o segundo, ainda que mais conciso, ao atuar como regra de exceção, necessita ser interpretado de forma restritiva.

No âmbito de competência privativa da União (artigo 22, incisos I e XVI, da CF), o legislador conceituou e criou parâmetros para que o Conselho Federal de Medicina (CFM) disciplinasse e fiscalizasse as atividades médicas. Com efeito, ao realizar o cotejo dos róis do artigo 4º da Lei nº 12.842/2013 e nos valermos do arcabouço de resoluções emanadas pelo CFM, desenha-se, de forma lúcida, os limites de interação entre os laboratórios de análises clínicas e de patologia.

O laboratório de análise clínica-laboratorial possui total faculdade para, sem interferência médica direta, realizar os atos legalmente tipificados como não médicos, sendo eles: "realização de exames citopatológicos e seus respectivos laudos" e "coleta de material biológico para realização de análises clínico-laboratoriais" (artigo 4º, §5º, incisos VII e VIII da Lei nº 12.842/2013). Com efeito, a prática do ato (total ou fracionado), não necessita de presença médica.

Os diplomados em Ciências Biológicas ou Farmácia-Bioquímica, poderão ser responsáveis técnicos dos laboratórios de análises perante a Anvisa (RDC n. 302/2005 ANVISA, item 4.37); realizar análises e até mesmo emitir laudo, tal como assegura o artigo 1º, da Lei nº 6.686/1979; o Decreto 88.439/1983; Lei nº 3.820/60; artigo 2º, inciso I, alínea b do Decreto 85.878/1983 e Resolução n. 514/2009 do Conselho Federal de Farmácia.

Em ambiente diametralmente oposto, estão os laboratórios de patologia compostos por médicos especialistas em patologia. A emissão de laudo dos exames anatomopatológicos é atividade médica, conforme prescreve o artigo 4º, inciso VII, da Lei nº 12842/2013. O cuidado fica na interpretação da expressão "emissão de laudo", afinal, a interpretação do direito não se reduz a mera leitura do texto, compreendendo que os conflitos da realidade precisam ser sopesados.

O exame anatomopatológico possui três fases: pré-analítica que seria a coleta do material biológico humano, identificação do material e paciente, armazenamento e eventual transporte; a analítica engloba o processamento, preparação e interpretação da amostra; e pós-analítica, que fica limitada ao envio do relatório, recebimento e interpretação pelo médico solicitante. E, em todas as fases, obrigatoriamente, a figura do médico se faz necessária.

Excetuando a fase pós-analítica, as demais necessitam da presença do médico especialista em patologia. A fase pré-analítica é de suma importância para assegurar o resultado satisfatório das fases seguintes. Afinal, o patologista interpreta o material humano coletado e, diante da interpretação da amostra, o médico solicitante estipula o tratamento mais adequado. Daí a importância da fase pré-analítica.

Se nos exames citopatológicos, o Ministério da Saúde reconheceu que as condições da coleta influenciam no quão fidedigno será o resultado [1], nos exames privativos de médicos (anatomopatológicos), a preocupação precisa ser potencializada. E isto ocorre. Por tal razão, a fase pré-analítica não pode ser delegada para laboratórios de análises clínicas que não possuem como responsável técnico profissional graduado em curso superior de Medicina (artigo 6º, Lei nº 12.842/2013).

O Conselho Federal de Medicina proíbe que patologistas ou laboratórios de patologia celebrem "contratos ou acordos com estabelecimento sem diretor técnico médico registrado no CRM de sua jurisdição" (artigo 3º, parágrafo único, Resolução CFM nº 2.169/2017). Portanto, o patologista que se relaciona com laboratório de análise clínicas para que este realize a coleta de material humano vai de encontro com a norma.

Isto não significa que o laboratório de patologia fica restrito à sua jurisdição local. A extrapolação territorial pode acontecer por meio de filiais, devidamente registradas no CRM competente ou através de contratos de parcerias ou de apoios de diagnósticos com outros laboratórios de patologia que atuam na jurisdição local de interesse. Igualmente, dentro de parâmetros claros, não há qualquer empecilho para que o bioquímico ou demais profissionais da saúde devidamente capacitados, atuem na fase pré-analítica.

A participação de profissionais da saúde que não sejam médicos durante o exame anatomopatológico poderá ocorrer, desde que seja em laboratório que possua médico patologista como diretor técnico responsável para que o mesmo fiscalize, in loco, todos os atos que irão impactar nas demais fases do exame. No caso do biomédico, por exemplo, este raciocínio se mostra alinhado tanto com as normas do CFM quanto com a regulamentação nacional de sua atuação (artigo 4º, inciso III do Decreto nº 88.439/1983).

Em 2015, sob a égide da Resolução CFM nº 2.074/2014 (anterior a 2.169/2017), a Sociedade Brasileira de Patologia foi questionada sobre a delegação da fase pré-analítica para laboratórios de análises clínicas e, de forma didática, emitiu parecer esclarecendo que laboratório de análises clínicas não pode receber material anatomopatológico por 1) não possuir estrutura para realização de tal exame; e, 2) por não ter diretor técnico médico (patologista) [2]. Caso ocorra, toda cadeia operará em desacordo, colocando em risco a higidez do exame.

Laboratório de patologia que aceita receber material humano de laboratório de análises clínicas como sendo parte de exame anatomopatológico (fase pré-analítica) infringe o parágrafo único do artigo 3º da Resolução CFM nº 2.169/2017 e o seu Diretor Técnico deixa de zelar pelo cumprimento das normas regentes, deixando, por exemplo, de certificar a habilitação dos médicos que se relaciona, conforme enuncia o artigo 2º da Resolução CFM nº 2.147/2016. Daí porque a sua atuação poderá ser alvo de sanções.

O patologista que delega fase pré-analítica para laboratório de análises clínica autoriza a abertura de sindicância perante o Conselho Regional de Medicina competente para averiguação de infrações ao Código de Ética Médica. Afinal, o que ocorre usualmente são médicos que não atuam na jurisdição local e utilizam laboratórios de análises clínicas como espécie de representantes em jurisdições alheias para que possam ampliar o faturamento através da quantidade de exames.

Perante o Código de Ética, casos assim poderão ser enquadrados como delegação de ato médico (artigo 2º) e acumpliciamento com profissional que, ao exercer atividade exclusiva de médico, passa exercer ilegalmente a medicina (artigo10). Na perspectiva do profissional da saúde que não possui curso superior em Medicina e nem tampouco a especialização em patologia, a participação nos exames anatomopatológicos, sem a devida supervisão médica — que deverá ocorrer no local que se realiza a fase pré-analítica , poderá atrair normas penais.

Bioquímicos ou farmacêuticos (artigo 2º, inciso I, "b", Decreto nº 85.878/1981) que atuam como diretor técnico responsável de laboratório de análises clínicas que realiza ato médico, ainda que fracionado, sendo comprovada a habitualidade da prática, poderá atrair a incidência do artigo 47 da Lei de Contravenções Penais ou até mesmo o artigo 282 do Código Penal por colocar em risco a saúde pública, resultando em sanções pecuniárias e penas privativas de liberdade que, em regra, serão convertidas em restritivas de direitos (artigo 43, do Código Penal).

Ao que tudo indica, a situação ainda apresenta ato considerado como de concorrência desleal parasitária. Na maioria dos casos, existe laboratório de patologia na jurisdição local que possui custo para estrutura e profissionalização dos exames anatomopatológicos. Justamente pela presença de laboratório de patologia, cria-se a possibilidade de realização de exames anatomopatológicos na própria jurisdição local. E, a partir deste espaço criado e galgado por laboratório de patologia local, outros buscam utilizar carona para tirar proveito.

Laboratório de patologia forasteiro utiliza laboratório de análises clínica do local da jurisdição de interesse como extensão territorial para que possa concorrer na jurisdição alheia sem arcar com os custos operacionais ordinários (caso ali estivesse instalado). Ou seja, o patologista outsider obtém vantagem em detrimento do patologista da jurisdição local por meio de prática ilícita (delegação de ato médico).

Laboratórios de patologia exercem atividade econômica e estão submetidos aos princípios constitucionais da concorrência e livre iniciativa. Portanto, novos laboratórios, por exemplo, no interior dos Estados, são bem recebidos para fomento da concorrência do preço e da qualidade do serviço prestado. Todavia, a despeito de planejamento societário e tributário, todos devem atuar licitamente com total observância as normas vigentes, especialmente as constitucionais, antitruste (artigos 31 a 36, Lei nº 12.529/2011) e as emanadas pelo CFM.

Em suma, a participação comedida e supervisionada de ato médico é bem-vinda, mas não se pode admitir, sob hipótese alguma, a antropofagia médica.


[1] BRASIL. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Coleta e Indicações para o Exame Citopatológico do Colo. Disponível em: <https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-mulher/coleta-e-indicacoes-para-o-exame-citopatologico-do-colo-uterino/>. Acesso em 17.4.2022.

[2] Sociedade Brasileira de Patologia. Parecer n. 132/2015. Consulta: Laboratórios de análises clínicas pode receber material de anatomia patológica e enviá-lo para laboratório de patologia? Essa prática é ilegal?  Disponível em: <http://www.sbp.org.br/pareceres/parecer-132-2015/>. Acesso em 17.4.2022.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pós-graduado pelo IBET/SP, pós-graduando pelo CEDIPRE/Coimbra.

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