Opinião

Processos estruturantes, ativismo judicial e separação de poderes

Autores

  • José Henrique Mouta Araújo

    é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) doutor e mestre (Universidade Federal do Pará) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) procurador do estado do Pará e advogado.

  • Bernardo Augusto da Costa Pereira

    é advogado doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) mestre em Direito Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário do Pará (Cesupa) professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e da Faculdade Faculdade Ideal Wyden (Faci-Wyden).

27 de abril de 2022, 11h07

O presente ensaio objetiva apresentar aspectos introdutórios dos processos estruturantes e sua relação com o ativismo judicial e a separação de poderes, tratando, brevemente, de temas correlatos para a compreensão deste fenômeno que ganha cada vez mais espaço no campo jurídico.

O processo civil sempre foi pensado, majoritariamente, dentro de uma perspectiva individual. Por esta razão, institutos como litisconsórcio, coisa julgada, adstrição ao pedido, etc., tiveram uma concepção fortemente individualista, pautada na clássica ideia de lide, enquanto pretensão resistida.

Com o desenvolvimento do nosso sistema processual, a tutela coletiva passou a ganhar força e se destacar, por meio de procedimentos específicos tais como ação civil pública e mandado de segurança coletivo, bem como através da clássica divisão entre direitos/interesses individuais homogêneos, coletivos em sentido estrito e difusos.

Naturalmente, os institutos processuais específicos precisaram evoluir e se adaptar a esta nova realidade. Com isso passou-se a discutir figuras como coisa julgada secundum eventum litis e secundum eventum probationis, legitimidade adequada, execução coletiva, etc.

Ainda assim, diversas demandas coletivas trazem desafios para a tutela processual que conhecemos. A verdade é que mesmo na seara coletiva, os institutos e procedimentos são fortemente influenciados pela lógica individual.

Pensemos em grandes desastres ambientais, como Mariana e Brumadinho, fértil terreno para a tutela coletiva, ou ainda em casos de propaganda enganosa veiculada ostensivamente. Processualmente falando, nos termos do artigo 81, § único, I, CDC, tem-se a violação de direito/interesse difuso, ou seja, "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato".

É possível que um legitimado coletivo, como o Ministério Público, proponha uma Ação Civil Pública, buscando reparação civil pelo dano causado, o qual será revertido para fundo específico  o fundo de direitos difusos.

Ocorre que há certas pressuposições que em regra estão presentes. A primeira é que o legitimado ativo será capaz de representar adequadamente todos os interesses daqueles prejudicados pelo desastre ambiental. Outra questão é que a indenização não deveria ser o grande objetivo, mas sim especificamente retornar ao "status quo ante", o que exigiria obrigações não apenas de pagar, mas também de fazer. E cada envolvido é impactado de maneira diversa. Retornar ao status anterior exige uma mudança profunda naquele estado indesejado, e é por isso que a temática dos processos estruturantes está cada vez mais em voga.

O processo estrutural, ou estruturante ou reestruturante é aquele em que se pretende a reorganização, pela via judicial, de uma estrutura pública ou privada que se encontra em um estado de desconformidade estruturada. Há, deste modo, um problema estrutural. O objetivo, portanto, é substituir o estado de desconformidade por um estado ideal de coisas, nos termos do nosso ordenamento jurídico.

A mera existência de um problema estrutural não enseja a propositura de uma ação estrutural, nem o surgimento de um processo estruturante, vez que a demanda judicial pode não pretender reestruturar aquela situação. É o que acontece quando, em demanda coletiva, requer-se meramente indenização pecuniária, sem um aprofundamento maior na causa que gerou o litígio. Processos estruturantes são complexos, longos, caros e requerem uma atenção diferenciada, especialmente por parte do Judiciário.

Em verdade, esses processos muitas vezes provocam a necessidade de revisitação, revisão e diálogo cooperativo entre os Poderes do Estado.

Aliás, são vários interesses em jogo. Voltando aos exemplos dos desastres ambientais, é possível perceber pretensões diversas de subgrupos distintos, os quais estariam, em tese, todos representados pelo legitimado ativo: de cada pessoa envolvido no desastre, das empresas mineradoras, dos entes públicos (município, Estado, União), comunidades tradicionais, empresas de turismo, etc.

A característica acima é chamada de multipolaridade, ou seja, há diversos núcleos de interesse, dentro do mesmo polo processual, que não poderão ser representados simplesmente como se fosse uma demanda individual com interesse linear: Autor x Réu. A análise do tema, portanto, ultrapassa a visão individualista de polos totalmente antagônicos na relação processual.

Note-se que a multipolaridade não é o que caracteriza um processo estrutural; o que o caracteriza, basicamente, é o objetivo de modificar um estado de desconformidade estruturada. Isto é relevante, porque a multipolaridade pode dar origem, por exemplo, a diversas ações individuais, ou a ações coletivas sem pretensão reestruturante  que são a maioria.

É importante destacar, também, que o processo estruturante não possui um procedimento próprio: a pretensão estrutural pode se materializar por meio de procedimento individual, ou coletivo, comum ou especial. Sem dúvida, dado o impacto da desestruturação observada a tendência é que a questão venha a ser discutida por meio de uma ação coletiva.

Surge desta análise uma questão central no ambiente do processo democrático: a forma de ver e interpretar a Teoria da Separação de Poderes, vez que o processo estruturante versa, muitas vezes, sobre Políticas Públicas que, a rigor, são de responsabilidade do Poder Executivo e, por vezes, do Legislativo.

O estado de desconformidade estruturada precisa ser superado, e para tal Políticas Públicas precisariam ser discutidas, não sendo papel do Judiciário elaborá-las, nem as implementar. A questão ganha importante debate em caso de omissão dos demais Poderes e provocação do Sistema de Justiça.

Com efeito, o litígio estrutural não depende obrigatoriamente de resolução judicial. Ele pode (e idealmente deveria) ser solucionado por meio de medidas extrajudiciais, vez que dependem, muitas vezes, de investimento público. Questões referentes à saúde, educação, proteção ambiental, mobilidade urbana, se enquadram nesta realidade.

Todavia, dado o desprestígio/omissão que Executivo e Legislativo enfrentam, tais questões passaram a ser direcionadas ao Judiciário, o qual não pode se imiscuir de julgar. Ocorre que a seara judicial não está adaptada a tratar conflitos tão complexos. O magistrado não é gestor público, e isto torna ainda mais difícil sua atuação.  

É necessário, portanto e como já mencionado, revisitar a Separação de Poderes/Funções do Estado. Tradicionalmente, afirma-se que o Legislativo produz as leis, o Executivo executa as políticas públicas e o Judiciário julga os conflitos apresentadas. O primeiro ponto a se tratar é que estas são funções típicas; os três poderes também atuam de forma atípica, seja quando o Legislativo julga o processo de impeachment, o Judiciário elabora as regras de seu regimento interno, ou quando o Executivo veta leis por considerá-las inadequadas.

Discutir até que ponto o Judiciário pode, e se pode, decidir temas afeitos aos outros Poderes é também discutir a questão do (s) Ativismo (s) Judicial (is). Em termos práticos, o Supremo Tribunal Federal possui entendimento sedimentado no sentido de autorizar o controle judicial de políticas públicas, especialmente quando se trata de direitos fundamentais [1]. A doutrina também converge neste sentido. Todavia, isto não muda o fato de que é um ambiente de difícil atuação e politicamente instável, vide as discussões múltiplas decorrentes da Covid-19 (lockdowns; internações; vacinas; comprovantes de imunização, etc).

A situação se torna mais complexa ainda quando se busca, por meio de processos estruturais, atacar a causa e não a consequência do problema. Instâncias fora do Poder Judiciário seriam mais adequadas? Em que medida? Fala-se de entidades de infraestrutura específicas (claim resolution facilities), como capazes de auxiliar especialmente na gestão do conflito, bem como na seara executiva e/ou fiscalizatória (a Fundação Renova é um bom exemplo). Ainda assim, a função de julgar é do Judiciário.

Engana-se quem pensa que litígios estruturais não estão presentes no Judiciário. Apenas considerando o STF, podemos apontar: ADPF 709; ADO 60; ADPF 635; HC coletivo 143641; ACO 3121; ADPF 347; ADO 60; dentre outras.

Dada a importância dos temas, não deveria o Poder Público, e aqui nos referimos aos Poderes Judiciário, Legislativo e também Executivo, repensar sua atuação, buscando um julgamento mais amplo e efetivo, com maior participação popular, e legitimidade democrática? O fortalecimento e correta utilização tanto de amicus curiae, como de audiências públicas é de grande importância.

Mais um dado importante: a cooperação e o diálogo entre esses próprios Poderes do Estado tendem a potencializar a solução dos conflitos estruturais (suas causas e não efeitos), inclusive evitando a multiplicação de demandas individualmente propostas e que, em última análise, acabam por sobrecarregar os Órgãos do Sistema de Justiça sem o alcance de efetiva e real isonomia.

Outra necessidade em processos estruturais é o fortalecimento do diálogo entre os envolvidos, sejam partes, seja o(s) magistrado(s). A consensualidade permite não apenas uma solução mais rápida, mas também mais eficiente e concertada, em prol do objetivo comum da reestruturação. Tal consensualidade pode existir antes mesmo da demanda judicial ser proposta.

A verdade é que o processo estrutural é dinâmico. Vez que busca reestruturar uma realidade, uma decisão única não será capaz de fazer isso magicamente; as decisões são em cascata, para utilizar expressão de Sérgio Cruz Arenhart [2], ou seja, são sequenciais, onde a posterior busca corrigir o curso tomado pela anterior. Como podem surgir novas dificuldades, as decisões precisam levar isso em conta. Não se busca tratar a consequência, mas sim, principalmente, a causa.

A Judicialização da Política é outra questão que não pode ser olvidada. Questões envolvendo Políticas Públicas possuem grande impacto político. Processos estruturantes não devem ser utilizados como mecanismo de barganha política, tal como acontece, especialmente com a ação popular.

A questão acima também afeta a Fazenda Pública e o Ministério Público, especialmente considerando o controle político dos pronunciamentos, no caso da suspensão de segurança. Trata-se de instrumento de proteção do interesse público, pelo qual o Ministério Público ou pessoa jurídica de direito público requerem ao presidente do Tribunal competente a suspensão da execução da decisão, sentença ou acordão proferido, diante da concessão de provimento que gere grave lesão à saúde, à segurança e à economia públicas.

Indubitavelmente, processo estruturantes podem ter decisões que se enquadrem nesta hipótese. Para evitar tais situações, a consensualidade deve ser ainda mais fortalecida.

A própria LINDB, em seu artigo 23, traz regra que deve ser considerada neste importante debate. Uma vez que a decisão judicial terá condão de alterar profundamente a realidade deverá ser previsto, em muitos casos concretos, um regime de transição. Igualmente, a possibilidade de negócios jurídicos processuais não pode ser esquecida.

É possível concluir, portanto, que os processos estruturais não são inovação no nosso sistema jurídico. Para compreende-los é importante não só observá-los no prisma processual, técnico, mas também a relação dinâmica entre os Poderes do Estado e a forma de intervenção dos Órgãos do Sistema de Justiça.


[1] Exemplificativamente: Pleno. SL 47-AgR/PE. Relator ministro Gilmar Mendes. Dje 29.04.10; 1ª Turma. RE 628.159-AgR/MA. Relatora ministra Rosa Weber, Dje 14.08.13; 1ª Turma. AI 810.410-AgR/GO. Relator ministro Dias Toffoli. Dje 07.08.13; 2ª Turma. RE 700.227-ED/AC. Relator ministro Carmen Lúcia. Dje 29.05.13; 2ª Turma. RE 563.144-AgR/DF. Relator ministro Gilmar Mendes. Dje 15.04.13.

[2] Vale pontuar que o professor Sérgio Cruz Arenhart, além de ter sido um dos primeiros doutrinadores a tratar do tema no Brasil, também foi o homenageado no III Congresso Internacional de Coletivização e Unidade do Direito, realizado nos dias 05, 06, 07 e 08 de abril de 2022, na PUC/RS, oportunidade em que também foi lançada, pela editora Thoth, a obra COLETIVIZAÇÃO E UNIDADE DO DIREITO: ESTUDOS EM HOMENAGEM AO PROFESSOR SÉRGIO CRUZ ARENHART  VOL. III.

Autores

  • é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e procurador do Estado do Pará e advogado.

  • é advogado, doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário do Pará (Cesupa), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e da Faculdade Faculdade Ideal Wyden (Faci-Wyden).

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