Garantias do Consumo

Falso empoderamento do consumidor no sistema de avaliação de plataforma digital

Autores

  • Dennis Verbicaro

    é doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha) mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará professor da graduação e dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal do Pará e do Centro Universitário do Pará (Cesupa) líder dos grupos de pesquisa (CNPq) "Consumo e Cidadania" e "Consumo Responsável e Globalização Econômica" procurador do estado do Pará advogado e diretor do Brasilcon.

  • Natasha Siqueira Mendes de Nóvoa

    é graduanda em Direito na Universidade Federal do Pará (UFPA) estagiária na Mudrovitsch Advogados bolsista de iniciação científica em Direito do Consumidor Digital membro do grupo de pesquisa Consumo e Cidadania (CNPq) e pincadista no 41° Programa de Intercâmbio do Cade.

27 de abril de 2022, 8h00

O avanço tecnológico mundial, especialmente a partir da década de 1970, com a potencialização do modelo produtivo do just in time e dos efeitos da terceirização, foi um fator fundamental na transformação das relações de consumo, que migraram do analógico para o digital.

Esse cenário incentivou novas formas de concorrência no neoliberalismo, como a cronoconcorrência, definida como a permanente disputa do setor empresarial no desenvolvimento da tecnologia, bem como o surgimento da economia de compartilhamento por meio das plataformas digitais, que se alimentam de algoritmos para seduzir os consumidores de forma cada vez mais programada, gerando uma falsa noção de empoderamento no consumidor, a partir dos artifícios de predileção e extração de dados pessoais, como pela noção equivocada de que a avaliação por determinado indivíduo realmente importa no aprimoramento do serviço.

Nesse sentido, torna-se extremamente necessário refletir acerca do papel do consumidor no contexto da economia digital, especialmente no que se refere aos aplicativos de transportes móveis, como é o caso da empresa Uber, tendo em vista que, pela falta de transparência da tecnologia dessa plataforma, entende-se que tais mecanismos servem mais como instrumentos de coleta de dados pessoais, do que como ferramenta de aprimoramento de serviço ao consumidor, supostamente para "aprimorar a experiência" do usuário.

No que se refere ao conceito de plataforma digital, Snicerk [1] a define como um espaço que possibilita a troca de informações, bens ou serviços, entre fornecedores e consumidores, assim como a participação de uma rede de indivíduos conectados por meio das conexões virtuais. Aliado a esse entendimento, Renan Bernard Kalil [2] define que a principal característica desse capitalismo de plataforma consiste em seu alto impacto.

O "alto impacto" nada mais é que uma abertura de espaço para que os fornecedores explorem suas habilidades em seus níveis máximos, devido às inúmeras alternativas que o e-commerce apresenta. Como consequência, observou-se um investimento constante das grandes empresas em recursos cada vez mais sofisticados de inteligência artificial, capazes de captar mais usuários e utilizá-los para aperfeiçoar o processo produtivo, bem como moldar as preferências dos consumidores, investindo na marca por meio de técnicas de branding [3], fenômeno conhecido por cronoconcorrência [4]. Assim, cria-se um ciclo lucrativo, alimentado pela inteligência artificial.

Esses artifícios, no entanto, somente se tornaram possíveis com o grande investimento das empresas, que lideram o setor econômico, no machine learning [5] e, consequentemente, com o desenvolvimento das técnicas abusivas de extração de dados pessoais de usuários para fins lucrativos, sem preocupação com qualquer garantia de seus direitos de privacidade.

Para a filósofa Carissa Véliz [6], essa dinâmica socioeconômica atual demonstra um contraste evidente no que se refere à privacidade entre a década de 1990 e os anos que sucederam a criação da empresa Google, bem como os ataques de 11 de setembro de 2001, os quais exigiram um investimento considerável em segurança e privacidade pelos Estados Unidos, um dos motivos por eles serem o país que deu origem ao sistema de plataformas. Esses marcos podem ser entendidos como fundamentos do desenvolvimento das fronteiras inteligentes da tecnologia, que foram, gradativamente, se tornando ameaças às liberdades civis, tendo em vista que ultrapassaram limites éticos e jurídicos em razão de um ciclo meramente mercadológico, exercendo poder e controle sobre os mais variados ambientes dos cidadãos: profissional, familiar e social.

Assim, no que concerne à Uber, tem-se uma empresa de tecnologia que oferece serviços de transporte privado, através de um aplicativo, entre usuários que se cadastram como passageiros e os que se cadastram como motoristas, de modo que a tecnologia conta com indicadores de preço, demanda e número de motoristas disponíveis. Por meio do Sistema de Posicionamento Global, o aplicativo deveria mostrar aos usuários onde os motoristas se encontram, conforme a localização do passageiro. No entanto, de acordo com Snircek [7] (2016), isso não ocorre, uma vez que esse indicativo de demanda não corresponde à realidade, visto que o aplicativo, primeiro, realiza a coleta de dados dos usuários, para assim prever onde estará a demanda por motoristas e, somente conforme essa extração, o sistema aumenta os preços em alta antes da demanda real, da mesma forma em que também cria "motoristas fantasmas" para dar uma falsa ilusão ao consumidor de que existe uma maior oferta diante da procura.

Já no que se refere à avaliação dos usuários, a empresa possui um sistema próprio, a partir da experiência do cliente/passageiro, que obedece às seguintes etapas: depois de terminada a viagem, o aplicativo pede ao passageiro que o avalie (em uma escala de 1-5), desde o desempenho do motorista quanto a possíveis comentários adicionais acerca da qualidade do serviço prestado. Assim, juntamente com seus comentários, a avaliação passa a ser analisada pelos administradores do sistema, de modo que, teoricamente, os motoristas que alcançarem a nota média mínima que o aplicativo estabelece (4,6), deveriam ser desconectados da plataforma [8].

Observa-se, entretanto, que o usuário não possui acesso ao feedback dado ao motorista nem a avaliação feita por este, bem como não tem como obter uma garantia de que os critérios supostamente utilizados pela empresa serão aplicados, visto que a plataforma carece de transparência sobre como as informações coletadas dos passageiros serão analisadas e se, de fato, elas possuem alguma finalidade que não seja somente a extração de seus dados pessoais como forma de fomentar o sistema de predileção algorítmica. Os passageiros, diferente dos motoristas que recebem orientações e dicas do aplicativo para manter a nota elevada, não obtém qualquer tipo de retorno construtivo ou informativo acerca dos critérios utilizados pela plataforma e pelos motoristas para avaliá-lo, assim, tem-se que a referida startup vende, ao consumidor, uma falsa noção de reciprocidade de avaliação.

Nota-se, também, que ao abrir o aplicativo, o usuário já e apresentado a uma série de lugares fixos conforme o histórico de suas corridas, de modo que a plataforma consegue, previamente, simular os custos e a demanda para apresentar ao passageiro de acordo com o seu fluxo de viagens, induzindo este a utilizar o aplicativo, por meio das técnicas que promovem a "praticidade", bem como exercem, conforme explica Zuboff [9], a predição comportamental sobre esse indivíduo. A plataforma, então, deixa de ser somente uma intermediária no serviço de transporte privado e passa a ser um mecanismo que também determina como esse usuário irá desfrutar de tal serviço, técnica conhecida como previsão de mercados de comportamentos futuros [10].

Não resta claro ao consumidor, portanto, se durante a etapa de avaliação de plataformas, que é onde, juntamente com o cadastro nos aplicativos, ocorre à coleta de informações pessoais desse indivíduo, a opinião deste é realmente levada em consideração para aprimorar o serviço fornecido, conforme suas necessidades reais, ou somente para servir como matéria prima de fomentação das técnicas de predileção e extração algorítmica. Ou seja, há uma falsa noção de empoderamento do indivíduo, na medida em que este não tem acesso às informações que estão sendo coletadas e nem a nenhuma garantia de aplicabilidade de critérios por determinada plataforma, tornando-se um alvo fácil a ser manipulado.

Esse exemplo serve para demonstrar que o assédio de consumo pode estar presente, inclusive, nas etapas que prometem atender ao consumidor, ressaltando um desequilíbrio ainda mais escancarado no quadro de vulnerabilidade informacional no âmbito da relação consumerista. Em razão disso, deve-se pensar em técnicas alternativas complementares à legislação, como o ativismo digital e o compartilhamento de experiências, que se tornam consideravelmente mais eficazes do que a avaliação em uma plataforma digital, posto que são capazes de expressar o exercício de poder decisório, bem como as satisfações e insatisfações individuais.

É preciso entender e contornar os mecanismos de inteligência artificial e as técnicas abusivas de mercado, para que, gradativamente, se construa um caminho de empoderamento e autonomia plena do consumidor.

Referências
ALEXANDRE, Paulo. Publicidades e Tecnologias Móveis, Produção de Sentidos e Práticas de Consumo. Universidade de Coimbra, Portugal. 2016.

FARIAS Fernando, RODRIGUES Evaldo, DA SILVA Paulo. Avaliação da Percepção de Qualidade da Prestação do Serviço de Transporte Individual de Passageiros do Distrito Federal: Táxi e Uber. Universidade de Brasília-UNB, Brasília, 2016.
SNIRCEK, Nick. Capitalismo de Plataforma. Cambridge: Polity Press, 2017, p. 7. Oxford, Inglaterra.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. 1 ed. São Paulo: Intrínseca, 2021.
VÉLIZ, Carissa. Privacidade é Poder. Editora Contracorrente. Inglaterra, 2021. P 47-49.
VERBICARO, Dennis; VERBICARO, Loiane da Ponte Souza Prado; VIEIRA, Janaina do Nascimento. Direito do consumidor digital. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020


[1] SRNICEK, Nick. Capitalismo de Plataforma. Cambridge: Polity Press, 2017, p. 7.

[2] KALIL, Renan Bernard. A Regulação do Capitalismo Via Plataformas Digitais. São Paulo. Blucher, 2020, p. 67-88.

[3] Gestão da marca de uma empresa.

[4] Velocidade com que as empresas se aperfeiçoam no ramo tecnológico tendo em vista a competição no mercado de investimento às técnicas de inteligência artificial. Alexandre, Paulo. Publicidades e Tecnologias Móveis, Produção de Sentidos e Práticas de Consumo. Universidade de Coimbra, Portugal. 2016

[5] Ramo da engenharia e ciência da computação que evoluiu do estudo de reconhecimento de padrões e da teoria do aprendizado computacional em inteligência artificial.

[6] VÉLIZ, Carissa. Privacidade é Poder. Editora Contracorrente. Inglaterra, 2021. P 47-49.

[7] SRNICEK, Nick. Platform capitalism. Cambridge, UK ; Malden, MA : Polity Press, 2016.

[8] FARIAS Fernando, RODRIGUES Evaldo, DA SILVA Paulo. Avaliação da Percepção de Qualidade da Prestação do Serviço de Transporte Individual de Passageiros do Distrito Federal: Táxi e Uber. Universidade de Brasília-UNB, Brasília, 2016.

[9] ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. 1ª ed. São Paulo: Intrínseca, 2021.

[10] Ibide. P 19.

Autores

  • é doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha), mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará, professor da graduação e dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal do Pará e do Centro Universitário do Pará (Cesupa), líder dos grupos de pesquisa (CNPq) "Consumo e Cidadania" e "Consumo Responsável e Globalização Econômica", procurador do estado do Pará, advogado e diretor do Brasilcon.

  • é graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), bolsista de iniciação cientifica (CNPq) em Direito do Consumidor, membro do grupo Consumo e Cidadania (CNPq) e intercambista no 41° Programa de Intercâmbio do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

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