Opinião

IDC, direitos humanos e defensoria pública

Autor

  • Rodrigo Casimiro Reis

    é defensor público do estado do Maranhão assessor de ministra do Superior Tribunal de Justiça membro da Comissão Criminal do Condege e especialista em Direito Constitucional.

26 de abril de 2022, 21h14

Embora a expressão direitos humanos seja mencionada pelo Poder Constituinte em sete trechos da Constituição da República de 1988, apenas uma instituição do sistema de Justiça foi incumbida, expressamente, de zelar pela sua promoção a nível nacional, qual seja, a defensoria pública, erigida a tal patamar pelo artigo 134, caput, da CF/88.

Revela-se, pois, desarrazoado que a defensoria pública, que tem como um dos seus objetivos a prevalência e efetividade dos direitos humanos [1] e que detém as funções institucionais (1) de promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos e (2) de representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos [2], não possua, a teor do artigo 109, §5º, da CF/88, legitimidade constitucional para suscitar o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC) perante o Superior Tribunal de Justiça.

A defensoria é a instituição do sistema de Justiça caracterizada pelo perfil de portas abertas e que, por estar em permanente contato com a população desassistida de políticas públicas em nosso país, primeiro tem conhecimento acerca de eventuais abusos e violações de direitos humanos.

Os defensores públicos, primordialmente em um país como o Brasil — que é marcado pela desigualdade de oportunidades e pela corriqueira ineficiência do Estado em prestar serviços públicos essenciais de qualidade (relacionados à segurança, saúde etc) — são os agentes do sistema de justiça naturalmente incumbidos de fiscalizar a observância dos direitos humanos, adotando, em muitas situações, posturas contramajoritárias (que vão de encontro à maioria de ocasião), tudo com vistas a tutelar, judicial e extrajudicialmente, os direitos da população vulnerável e expressar os anseios de uma sociedade plural, servindo de instrumento à materialização de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Não há, portanto, justificativa para, de um lado, legitimar a instituição defensorial a postular perante o sistema interamericano de direitos humanos com o objetivo de resguardar esses direitos e, em contrapartida, negar o acesso da defensoria a um importante instrumento como é o caso do IDC — inserido no texto constitucional justamente com o escopo de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte.

Esse é um caso clássico que atrai a incidência da regra de hermenêutica segunda a qual "onde há a mesma razão, há o mesmo direito" (ubi eadem est ratio, idem jus), restando, pois, patente a legitimidade da Defensoria Pública da União para suscitar o mencionado Incidente de Deslocamento de Competência.

Foi, aliás, nesse sentido que sustentamos, em obra recentemente publicada, ser despropositado que "a instituição incumbida constitucionalmente de promover os direitos humanos não tenha legitimidade para tutelar a observância desses direitos perante o STJ (poder implícito), sendo premente a necessidade de alteração do referido dispositivo constitucional, a fim de conferir à Defensoria Pública da União status equânime ao Ministério Público da União" [3].

Neste ponto, Maurilio Casas Maia preceitua que "no Brasil, um órgão constitucional autônomo foi especialmente forjado para fomentar o acesso à justiça e aos direitos humanos aos necessitados, individuais ou coletivos: a Defensoria Pública (CRFB/1988, artigo 134)" [4].

No mesmo diapasão, Pedro Gonzalez destaca a extrema relevância da atuação defensorial na promoção dos direitos humanos [5]:

"Isso porque, pode-se dizer que cada defensor público no dia-a-dia da sua atuação está promovendo, protegendo ou reparando direitos humanos. Afinal, diuturnamente busca a tutela de direitos de pessoas em situação de vulnerabilidade, sendo certo ainda que os marginalizados são as vítimas mais frequentes de violações dos direitos humanos, vez que submetidas muitas vezes a desigualdades estruturais. (…)
Há, portanto, grande afinidade entre o público atendido pela instituição defensorial e os direitos humanos, podendo-se dizer que 'a missão maior da Defensoria Pública, em um país marcado por desigualdades sociais e negação de direitos no cotidiano, é a defesa de direitos humanos'."

O ministro Alexandre de Moraes, ao acompanhar o relator no julgamento da ADI nº 6.852 [6], pontuou a relevância da atuação defensorial na tutela dos direitos humanos:

"O próprio texto da Constituição Federal, em sua atual redação, estabelece um tratamento diferenciado à Defensoria Pública, que deixou de atuar somente como assistente judicial para desempenhar suas funções também com enfoque na promoção individual e coletiva dos direitos humanos."

Importante destacar que não há falar-se na observância dos direitos humanos sem que seja oportunizado aos cidadãos o efetivo acesso à tutela dos seus direitos, mister que foi atribuído pela Constituição Federal à Defensoria Pública, instituição provedora de justiça a quem cabe, prioritariamente, a resolução extrajudicial dos litígios [7].

O direito de acesso à Justiça e de representação perante os órgãos públicos competentes encontra-se, pois, inserido no conceito de direitos humanos, constituindo meio para se dar concretude à dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, prescreve André de Carvalho Ramos [8]:

"Uma sociedade pautada na defesa de direitos (sociedade inclusiva) tem várias consequências. A primeira é o reconhecimento de que o primeiro direito de todo indivíduo é o direito a ter direitos. Arendt e, no Brasil, Lafer sustentam que o primeiro direito humano, do qual derivam todos os demais, é o direito a ter direitos. No Brasil, o STF adotou essa linha ao decidir que “direito a ter direitos: uma prerrogativa básica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades" (ADI 2.903, rel. min. Celso de Mello, j. 1/12/2005, Plenário, DJe de 19/9/2008).

Alberto Carvalho Amaral et al define de forma precisa que [9]:

"A institucionalização da defensoria pública, que se apresenta como metagarantia, na medida em que visa garantir a própria garantia de acesso à Justiça, é um instrumento de efetivação dos direitos humanos e, a partir das teorizações da abordagem crítica dos direitos humanos, mostra-se como um plano possível para a emancipação."

À defensoria pública foi outorgado o difícil e gratificante encargo de promover a inclusão na vida jurídica estatal de uma grande soma de cidadãos marginalizados e que não detêm condições financeiras de postular pelos seus direitos mais comezinhos, numerosa camada do estrato social historicamente negligenciada pelo poder público e que, muitas das vezes, não conhece seus próprios direitos [10].

E foi por essa razão que o próprio legislador complementar incumbiu a defensoria de realizar a educação em direitos humanos [11], objetivo que é concretizado diuturnamente por meio dos atendimentos realizados nos núcleos defensoriais, nas unidades prisionais, em audiências públicas e que alça a defensoria ao patamar de instrumento do regime democrático, conferindo cidadania a toda uma gama de brasileiros hipossuficientes e hipervulneráveis.

Ao fim e ao cabo, a defensoria pública é a instituição do sistema que, de forma similar à República Federativa do Brasil [12], tem o objetivo de reduzir as desigualdades sociais [13], meta que somente pode ser alcançada por meio da efetivação dos direitos humanos e da promoção de uma vida digna à população vulnerável, cidadãos que passam a ter, por meio da atuação defensorial, consciência acerca dos seus direitos e possibilidade real de sua efetivação, seja de forma judicial ou extrajudicial.

A defensoria pública, muitas das vezes, é responsável por manter acesa a chama verde da esperança da população vulnerável em ver resguardados seus direitos. E, talvez, seja justamente por isso que a defensoria tenha sido a instituição do sistema de justiça mais bem avaliada pela população brasileira no ano de 2019 [14].

Corroborando os argumentos em torno da relevância da atuação da Defensoria na promoção dos direitos humanos, tem-se que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou, em fevereiro de 2021, relatório [15] no qual aborda a específica situação dos direitos humanos no Brasil, documento em que o referido órgão da OEA destaca que "as Defensorias Públicas Estaduais e a Defensoria Pública da União desempenham um imprescindível papel para a efetiva garantia dos direitos humanos e para a manutenção da ordem democrática no país" [16].

Nesse diapasão, André de Carvalho Ramos destaca a valorização, por parte da OEA, do modelo brasileiro de assistência jurídica, reafirmando a importância da Defensoria na promoção dos direitos humanos [17]:

"(…) foi editada pela OEA a Resolução n. 2.656/2011, intitulada 'garantias de acesso à justiça: o papel dos defensores públicos oficiais', na qual se enfatizou a importância do trabalho realizado pelos defensores públicos oficiais, em diversos países do Hemisfério, na defesa dos direitos fundamentais dos indivíduos, que assegura o acesso de todas as pessoas à justiça, sobretudo daquelas que se encontram em situação especial de vulnerabilidade. (…)
Também incentivou os Estados-membros que ainda não disponham da instituição da defensoria pública oficial (modelo brasileiro) que considerem a possibilidade de criá-la em seus ordenamentos jurídicos e ainda pugnou pela celebração de convênios para a capacitação e formação de defensores públicos oficiais. (…)
Apesar de não possuírem força vinculante, essas resoluções indicam a posição da OEA sobre as defensorias, delineando o dever dos Estados de promover os direitos humanos por intermédio da adoção do modelo de defensoria pública oficial."

Feitas essas considerações, verifica-se que o tema ora suscitado foi objeto, no ano de 2017, de Proposta de Emenda Constitucional de iniciativa do então deputado federal Antonio Carlos Valadares (PSB-SE). O texto da PEC nº 31/2017 propõe a alteração do artigo 109, §5º, da CF/88, a fim de que o defensor público-geral federal seja incluído como legitimado a suscitar o IDC perante o STJ.

A referida PEC conta com a seguinte justificativa:

"No que diz respeito ao Art. 109, § 5º, da CF, o texto constitucional restringe ao procurador geral da República suscitar perante o Superior Tribunal de Justiça – STJ incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal (…).
A proposta em tela objetiva ampliar ao Defensor Público Geral Federal a mesma legitimidade atribuída no texto constitucional ao Procurador Geral da República.
A Emenda Constitucional de nº 80, acima já referida, assevera ser incumbência da Defensoria Pública, dentre outras, a promoção dos direitos humanos, de modo que visando a preservação da harmonia do texto constitucional, deve-se promover nova alteração a fim de incluir o defensor público-geral federal como legítimo para suscitar o indecente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. (…)
Esta iniciativa está em consonância com o fundamento da República de garantir a dignidade da pessoa humana, melhorando os instrumentos para que tal fundamento seja efetivamente alcançado."

A PEC nº 31/2017 foi aprovada no Plenário do Senado [18] e remetida à Câmara dos Deputados no ano de 2019, órgão no qual foi autuada como PEC nº 61/2019. A proposta de emenda foi aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara em maio de 2019 e aguarda criação de Comissão Especial para analisar a matéria [19].

Ante o exposto, constata-se que a legitimidade do defensor público-geral federal para suscitar o Incidente de Deslocamento de Competência é questão que merece ser debatida em sede própria (Poder Legislativo) e reflete o status constitucional de que já usufrui a instituição defensorial no papel de protagonista na promoção dos direitos humanos.


[1] LC n. 80/94
Artigo 3º-A. São objetivos da Defensoria Pública: (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009). (…)
III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

[2] LC n. 80/1994
Artigo 4º. São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (…)

III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009). (…)
VI – representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).

[3] REIS, Rodrigo Casimiro. (Re) pensando custos vulnerabilis e Defensoria Pública: por uma defesa emancipatória dos vulneráveis. Maurílio Casas Maia (Org.). 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021. P. 214.

[4] MAIA, Maurilio Casas. Defensoria Pública e covid-19 no cenário intra e pós-pandêmico (Alberto Carvalho Amaral et al (Org.). Belo Horizonte: D´Placido, 2021. P. 111.

[5] GONZÁLEZ, Pedro. Defensoria Pública nos 30 anos de Constituição: uma instituição em transformação. In Revista Publicum, Rio de Janeiro, v. 4, edição comemorativa, 2018. P. 99/102.

[6] Rel. min. Edson Fachin, Pleno, DJ 29/3/2022

[7] Art. 4º, II, da LC n. 80/94

[8] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2020. P. 33.

[9] AMARAL, Alberto Carvalho et al. A DEFENSORIA PÚBLICA E OS PROCESSOS DE LUTA POR DIREITOS HUMANOS NO BRASIL. Cadernos de dereito actual, 2020. Disponível em: file:///C:/Users/rcasi/Downloads/468-1312-1-PB.pdf. Acesso em: 19/4/2022.

[10] Assinale-se que 60% dos brasileiros auferiram renda mensal inferior a um salário mínimo no ano de 2018. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/10/renda-media-de-mais-da-metade-dos-brasileiros-e-inferior-um-salario-minimo.html. Acesso em 18/4/2022.

[11] Artigo 4º, III, da LC n. 80/94

[12] Artigo 3º, III, da CF/88

[13] Artigo 3º-A, I, da LC n. 80/94

[15] Disponível em: https://anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=47598. Acesso em: 18/4/2022.

[16] Fl. 16

[17] Op. Cit. P. 332.

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