Opinião

Marco Civil da Internet: neutralidade da rede e liberdade de expressão

Autor

  • Alexandre Pontieri

    é advogado com atuação nos Tribunais Superiores (STF STJ TST e TSE) no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) consultor da área tributária com foco principalmente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) pós-graduado em Direito Tributário pelo Centro de Pesquisas e Pós-Graduação da UniFMU (CPPG) em São Paulo e pós- graduado em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo (ESMP-SP).

24 de abril de 2022, 15h18

O presente artigo tem como objetivo tratar sobre a neutralidade de rede (net neutrality) e a liberdade de expressão, mais especificamente analisando a Lei Federal nº 12.965, de 23 de abril de 2014 [1], conhecida como Marco Civil da Internet, e que estabelece em seu texto princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil.

A neutralidade de rede é tratada no inciso IV, do artigo 3º, e no Capítulo III, da Lei Federal nº 12.965/2014, ao passo que a liberdade de expressão é tratada nos artigos 2º, 3º, 8º, 19, do referido diploma legal.

O artigo 9º da Lei Federal nº 12.965/2014 estabelece tratamento isonômico aos fornecedores de acesso à internet (neutralidade de rede) e, como mencionado alhures, há dispositivos próprios tratando sobre a liberdade de expressão.

A questão principal que se coloca é saber se a neutralidade de rede traz uma liberdade de expressão plena para o uso da Internet no Brasil?

A neutralidade de rede
A sociedade vem evoluindo cada vez mais, e a internet e as novas mídias têm papel fundamental nesses avanços.

O sociólogo espanhol Manuel Castells é um dos pioneiros a estudar os efeitos e reflexos da chamada "Sociedade em Rede", conceituando-a como:

"(…) uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicação e informação fundamentadas na microeletrônica e em redes digitais de computadores que geram, processam e distribuem informação a partir de conhecimento acumulado nos nós das redes" [2].

A internet e as novas mídias diferenciam-se de outros meios de comunicação por suas novas formas de interação e participação, e não mais por um perfil passivo de receber informações (exemplo: TV).

Nas palavras de Jorge Sampaio, ex-presidente de Portugal, "com a internet e os meios de comunicação em tempo real, é notório, ainda, que vem ocorrendo alguma recomposição de rotinas, solidariedades grupais, práticas culturais e expectativas das gerações mais jovens; e tudo indica que o informacionalismo está a atingir, com efeitos precisos, os sistemas de valores, crenças e representações com os quais nos orientamos e aprendemos a pensar-nos a nós próprios e aos outros" [3].

Feita essa breve introdução, é necessário saber o que é a chamada neutralidade de rede (net neutrality) — fundamental para essa nova sociedade em rede.

O que é a neutralidade de rede?

Conforme nos ensinam os professores Irineu Francisco Barreto Junior e Daniel César, "a paternidade do conceito da Neutralidade da Rede é devida ao professor Tim Wu, da Universidade de Columbia, e teve o Chile como primeiro país a trazer para o seu ordenamento jurídico pátrio tal preocupação com a Neutralidade da Rede no ano de 2010. Em 2012 a Holanda foi o segundo país a inserir em seu ordenamento jurídico, trazendo que os prestadores e provedores estão proibidos de bloquear ou reduzir a velocidade de serviços ou aplicações na internet, sendo permitidas práticas que minimizem os efeitos de congestionamento de tráfego, preserve a integridade e segurança da rede, restrinjam envio de spam e deem cumprimento a alguma determinação legal" [4].

O professor de Direito de Internet e Mídia na Universidade de Sussex, no Reino Unido, Christopher Marsden, é conhecido por ser um tradicional defensor da neutralidade da rede, e escreveu em sua obra "Net Neutrality: Towards a Co-regulatory Solution" que garantia de acesso do usuário à internet com a neutralidade de rede possui dois elementos: um "positivo", com maior qualidade de serviço, correspondendo a preços maiores, desde que fossem estabelecidos de forma justa e igualitária; e "negativo", com a prática de degradação intencional do serviço pelo(s) provedor(es) de acesso, com consumidores que tentassem obter vantagem em suas conexões [5]

No ordenamento jurídico pátrio, de acordo com o disposto no artigo 9º da Lei Federal 12.965/2014, "o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação", ou seja, corolário do princípio da isonomia na transmissão de pacotes de dados sem qualquer tipo de distinção.

O Marco Civil da Internet
A Lei Federal nº 12.965, de 23 de abril de 2014, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios em relação à matéria (artigo 1º).

O artigo 2º, da lei 12.965/2014 traz expressamente que "a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I – o reconhecimento da escala mundial da rede; II – os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III – a pluralidade e a diversidade; IV – a abertura e a colaboração; V – a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI – a finalidade social da rede".

E como princípios o artigo 3º da lei 12.965/2014 elencou os seguintes:

"I – garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;
II – proteção da privacidade;
III – proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
IV – preservação e garantia da neutralidade de rede;
V – preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;
VI – responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei;
VII – preservação da natureza participativa da rede;
VIII – liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei."

Os incisos I e IV são os que nos interessam na análise deste artigo, pois tratam sobre a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento (inciso I) e preservação e garantia da neutralidade de rede (inciso IV).

A neutralidade de rede traz uma liberdade de expressão plena para o uso da internet no Brasil?
Como visto em capítulo anterior, a Lei Federal 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) trouxe como fundamento o respeito à liberdade de expressão (artigo 2º), e como um de seus princípios a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação pensamento, nos termos da Constituição Federal (artigo 3º).

Diante do que se analisou até aqui, seria o caso de se questionar se a neutralidade de rede (artigo 9º e segs. da Lei Federal 12.965/2014) trouxe uma liberdade de expressão plena para o uso da internet no Brasil?

Como disposto no artigo 3º da lei 12.965/2014, a liberdade de expressão, comunicação e manifestação, nos termos da Constituição Federal: "garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal".

A Constituição Federal de 1988 garante expressamente a liberdade de expressão, mas, como sabemos, há limites previstos na própria Carta Constitucional quando haja colisão com outros princípios e/ou direitos que tenham o mesmo status.

Como sabemos, a Constituição Federal de 1988 ao passo que garante o livre direito à liberdade de expressão, também garante ao indivíduo o direito à preservação da imagem e da honra (CF/88, inciso X — são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação).

Nessa esteira de pensamento o Supremo Tribunal Federal já decidiu que é necessário o equilíbrio entre os direitos fundamentais, não podendo a liberdade de expressão ser utilizada para a prática de atos ilícitos (HC 82424) [6].

Ou seja, quando há conflito com outros princípios e/ou direitos que tenham o mesmo status da liberdade de expressão, surgem limites, que estão previstos na própria Constituição Federal.

Conclusão
A Lei Federal 12.965/14 trouxe para o ordenamento jurídico pátrio o princípio da neutralidade de rede e reforçou em seu texto o já consagrado constitucionalmente princípio da liberdade de expressão, visando uma liberdade no fluxo de informações e um menor controle estatal.

Como cediço, a liberdade de expressão já é um princípio garantido constitucionalmente, e a lei do Marco Civil da Internet veio reforçar essa ideia, principalmente em razão das novas mídias introduzidas na sociedade moderna com a Internet.

Diante do que estudamos, entendemos que a liberdade de expressão deve ser a mais ampla possível, sendo-lhe impostos os limites apenas quando houver conflito com outros princípios e/ou direitos alçados ao mesmo status

Acreditamos que a divulgação da informação, da cultura e do conhecimento devem ser levadas a todos os brasileiros, indistintamente, principalmente pela dimensão continental de nosso país, e, muito mais ainda, pela falta de acesso que muitas comunidades ainda têm para buscar o conhecimento.

Para isso é de fundamental importância a preservação e garantia da neutralidade de rede introduzida pela Lei Federal 12.965/2014 em nosso ordenamento jurídico, bem como o respeito aos princípios de garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento (artigo 3º, I, da Lei Federal 12.965/14), além de todos os demais princípios: proteção da privacidade; proteção dos dados pessoais; preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades; preservação da natureza participativa da rede; e liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet [7].

Os princípios da neutralidade de rede e de garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento introduzidos pela Lei Federal 12.965/14 (Marco Civil da Internet) são de fundamental importância para os avanços tecnológicos do país, bem como a uma nova cultura de respeito cada vez maior ao princípio constitucional da liberdade de expressão — agora e em escala cada vez maior no universo digital.

Oxalá a neutralidade de rede e a liberdade de expressão auxiliem efetivamente na diminuição do enorme fosso de exclusão digital que ainda existe em nosso país, trazendo mais conhecimento, informação e cultura a todos os cidadãos brasileiros!

* O presente artigo foi entregue originalmente no mestrado em Direito da Universidade de Brasília na Disciplina Direito, Internet e Sociedade do professor Alexandre Veronese.

REFERÊNCIAS:
BRASIL. Código Civil. Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
BRASIL. Marco Civil da Internet. Lei Federal 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de Informação e Liberdade de Expressão. Rio de Janeiro: Renova, 1999.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: do conhecimento à Política. In: Castells, Manuel; Cardos, Gustavo (org.). A Sociedade em Rede: do Conhecimento à Acção Política. Centro Cultural de Belém, 2005.
CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=25&lID=4
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=163&lID=4
JUNIOR. Irineu Francisco Barreto Junior e Daniel César. Marco Civil da Internet e Neutralidade da Rede: Aspectos Jurídicos e Tecnológicos. Irineu Francisco Barreto Junior e Daniel César. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. v. 12, n.1 / 2007 p. 65-88. www.ufsm.br/revistadireito
MARSDEN, Christopher. Net Neutrality: Towards a Co-Regulatory Solution. Bloomsbury. Academic Publishing. 2010.
MENDES. Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. 8ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013.
Portal do STF – Supremo Tribunal Federal: www.stf.jus.br
Portal do STJ – Superior Tribunal de Justiça: www.stj.jus.br
SAMPAIO, Jorge. A Sociedade em Rede e a Economia do Conhecimento: Portugal numa Perspectiva Global. http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/a_sociedade_em_rede_-_do_conhecimento_a_acao_politica.pdf

[1] Lei Federal nº 12.965, de 23 de abril de 2014.

[2] CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: do conhecimento à Política. In: Castells, Manuel; Cardoso, Gustavo (org.). A Sociedade em Rede: do Conhecimento à Acção Política. Centro Cultural de Belém, 2005.

[3] SAMPAIO, Jorge. A Sociedade em Rede e a Economia do Conhecimento: Portugal numa Perspectiva Global. P. 419. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/a_sociedade_em_rede_-_do_conhecimento_a_acao_politica.pdf

[4] Marco Civil da Internet e Neutralidade da Rede: Aspectos Jurídicos e Tecnológicos. Irineu Francisco Barreto Junior e Daniel César. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. v. 12, n.1 / 2007 p. 65-88 (p.84). www.ufsm.br/revistadireito

[5] MARSDEN, Christopher. Net Neutrality: Towards a Co-Regulatory Solution. BloomsburyPublishing, 2010.

[6] "HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVORS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). […] 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas consequências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente ao judeus, que configura ao ilícito de prática de racismo, com as consequências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. […] Ordem denegada. (HC 82.424, rel. min. Moreira Alves, rel. p/ acórdão min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 17/9/2003, DJ de 9/3/2004).

[7] Art. 3º, da Lei Federal 12.965, de 23/4/2014.

Autores

  • é advogado com atuação nos tribunais superiores e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), consultor da área tributária, com foco principalmente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), pós-graduado em Direito Tributário pelo Centro de Pesquisas e Pós-Graduação da UniFMU-SP, pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo e aluno especial do mestrado em Direito da Universidade de Brasília.

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