Observatório Constitucional

Direitos fundamentais estaduais e jurisdição constitucional na Alemanha

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23 de abril de 2022, 8h00

A exemplo do que se deu nas Constituições da Igreja de São Paulo (1849), na Constituição Imperial (1871) e na Constituição de Weimar (1919), a Federação foi também a forma de Estado adotada pela Lei Fundamental (LF) da Alemanha de 1949. De acordo com o que dispõe o artigo 20, §1º, LF, a República Federal da Alemanha é um Estado Democrático, Social e Federal.

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Embora a definição como um Estado Federal esteja consignada no dispositivo acima referido, a conformação constitucional da ordem federativa alemã, tal como em tantos outros países, se dá mediante a estruturação em dois níveis, nomeadamente, a União e os estados membros, dotados de funções, tarefas e competências estatais, encontrando-se, por sua vez, regrada em um número significativo de preceitos da LF, a ponto de cerca de metade do texto constitucional guardar uma relação direta ou pelo menos indireta com a estrutura federativa (BAUER, 1998, p.116).

Dentre os elementos estruturantes do Estado Federal da LF, destaca-se a existência de esferas próprias de responsabilidade, autossuficiência e autonomia (BAUER, 1998, p.120). Atualmente são 16 os Estados (Länder) que integram a Federação, todos com sua própria Constituição, que, diferentemente do que se dá no caso do Brasil, possuem um campo maior de autonomia, por exemplo, no que diz com a possibilidade de existirem direitos fundamentais estaduais não previstos na LF [1], cujo "guardião" pode ser um tribunal constitucional estadual (TCE), sem prejuízo da submissão dos Estados à LF e à jurisdição do tribunal constitucional federal (TCF).

Nesse contexto, um dos fatores principais que definem o grau de autonomia dos estados na estrutura federativa é precisamente o fato de as respectivas constituições contemplarem direitos fundamentais. Os estados, contudo, devem observar as exigências previstas na LF em matéria de direitos fundamentais, destacando-se aqui o disposto no artigo 1º, §3º, LF, no sentido de que tais direitos vinculam diretamente todos os poderes estatais, designadamente, o Legislativo, Executivo e Judiciário, o que se dá tanto em nível federal quanto estadual, vedado aos estados darem aos direitos fundamentais uma proteção inferior àquela estabelecida pela LF. Essa exigência também se estende à procedimentos e instituições designados na LF (DEGENHART, 2009, p.138).

Por isso, embora os estados tenham um considerável nível de autonomia, quando se trata da interpretação dos direitos fundamentais eles devem orientar-se pelos direitos consagrados na LF, principalmente no que se refere à determinação de seu conteúdo e alcance pelo TCF (DEGENHART, 2009, p.137). Nessa perspectiva, as constituições dos estados formam uma espécie de campo gravitacional do TCF (GÄRDITZ, 2013, p.451).

Ainda nessa quadra, cabe recordar que os conteúdos protegidos na condição de cláusulas pétreas, tal como previsto no artigo 79, §3, devem ser observados por todos os entes federados, sendo vedado a qualquer constituição estadual a possibilidade de promover qualquer mudança nos seus respectivos textos que afete a "divisão da Federação em Estados, o princípio da cooperação dos Estados na legislação ou os princípios consignados nos artigos 1º e 20". Nesse sentido, colaciona-se decisão do TCF (BVerfGE, 34,9) que exigiu, à luz da compreensão das tarefas do Estado e sua relação com os entes federados, que as Constituições estaduais devem respeitar (e proteger) as garantias supracitadas (DÖRFER, 2010, p.59).

Diante desse pano de fundo, percebe-se que os direitos fundamentais previstos nas constituições estaduais ocupam uma posição importante na ordem federal alemã, exercendo uma significativa função integrativa.

Com efeito, no âmbito da autonomia que lhes é reservada, os estados, nos termos do artigo 142 da LF, e desde que não contrariem os direitos fundamentais consagrados nos artigos 1º a 18 da Carta Constitucional da Alemanha, podem prever direitos fundamentais além daqueles dispostos na LF.

Outro ponto importante a ser destacado é que, por força do citado artigo 142, os direitos fundamentais da LF, quando incorporados à Constituição Estadual, passam a integrar o direito estadual (RÖPER, 1996, p.156), sem prejuízo, como já adiantado, da competência dos estados para incluírem nas suas constituições direitos fundamentais não previstos na LF, o que se verifica em vários casos, como, em caráter ilustrativo, dá conta o exemplo do artigo 141, §3º, 1 da Constituição de Baviera, que consagra um dever constitucional e direito fundamental de assegurar a todos o livre acesso às belezas naturais como rios, lagos, montanhas e outras.

Aspecto central para o nosso propósito é o fato de que, embora existam exigências mínimas que devem ser seguidas e garantidas pelos estados, a LF concedeu certa autonomia para a jurisdição constitucional estadual. Tal compreensão já foi externada pelo TCF quando afirmou que a jurisdição estadual deve ser o tanto quanto possível intocável e independente perante a ordem jurídico-constitucional federal (BVerfGE 60, 175).

Outro aspecto a destacar, é o fato de que o TCF não é o único órgão especializado no exercício da Jurisdição Constitucional, visto que os estados da Federação também possuem suas respectivas cortes constitucionais [2], dotadas de autonomia e independência, cabendo aos mesmos decidir de modo autônomo sobre a criação, competências e procedimento de um tribunal constitucional (SCHLAICH; KORIOTH, 2001, p.211-212).

Em termos gerais e em apertadíssima síntese, os TCE têm a competência de zelar pela autoridade da Constituição Estadual em relação ao direito estadual (controle de constitucionalidade das leis do estado), podendo, contudo, ser questionada a conformidade da lei estadual (ainda que tida como constitucional em face da Constituição Estadual) com a LF, situação na qual os juízes e tribunais estaduais, não sendo possível a interpretação conforme a Constituição, devem submeter a questão ao TCF, de tal sorte que, ao fim e ao cabo, a regra é a de que os tribunais constitucionais dos estados decidem de modo vinculativo sobre a constitucionalidade do direito estadual e o TCF sobre conformidade com a LF (HILLGRUBER; GOOS, 2015, p.300 ss.).

Note-se, outrossim, que as duas jurisdições constitucionais — federal e estadual — situam-se autonomamente uma ao lado da outra, salvo quando os eventuais remédios jurídicos no âmbito da jurisdição estadual forem subsidiários (assegurados apenas nos casos não incluídos na competência do TCF) e quando — na esteira do já referido — for necessário zelar pela uniformidade de interpretação da LF, que, no artigo 100, §3º, determina que os tribunais constitucionais estaduais submetam o caso à decisão vinculativa do TCF nas hipóteses em que aqueles queiram julgar de modo diverso relativamente à prática decisória do TCF ou de outro TCE (LIMBACH, 2010, p.74-75).

No que se refere à importância da jurisdição constitucional estadual, é notório que o estudo dessa jurisdição tem crescido seja pela compreensão das competências estaduais e autoconfiança institucional, seja pelo maior número de conflitos constitucionais que vêm surgindo recentemente (DOMBERT, 2012, p.19-20).

Registra-se, nessa senda, uma fase inicial marcada por uma falta de protagonismo dos TCE, o que se deu, principalmente, porque a ordem constitucional permite que os estados decidam pela possibilidade, ou não, da reclamação constitucional estadual — que, calha recordar, tem origem no direito constitucional bávaro sendo posteriormente inserida na LF — (UERPMANN, 2002, p.943). Essa autonomia prevista na LF permite que cada estado disponha sobre as competências do seu respectivo tribunal constitucional.

Com efeito, o fato é que até 1990 não existiram realmente importantes decisões referentes à proteção de direitos fundamentais com base nas normas estaduais, não sendo uma surpresa que os principais conteúdos protetivos julgados pelos TCE tenham sido baseados na LF (UERPMANN, 2002, p.942).

No que se refere especificamente à proteção dos direitos fundamentais pelos TCE, é na década de 1990, por meio do Tribunal Constitucional de Berlim, que se observa um ponto de inflexão na proteção desses direitos. Isso se deve ao fato de que o referido tribunal concedeu à ação constitucional estadual um maior campo de aplicação, inclusive na aplicação da lei federal. Por meio de duas decisões proferidas em 23.12. 1992 [3] e 12.01.1993 [4], o TCE de Berlim decidiu que também seria de sua competência fiscalizar a lesão a direitos fundamentais dispostos no catálogo constitucional estadual, mesmo que esses casos estivessem relacionados à lei penal federal.

Nessa seara, cabe ressaltar a decisão proferida no famoso processo contra Erich Honecker, ex-presidente da República Democrática Alemã (antiga Alemanha oriental). Nesse caso, o TCE de Berlim declarou-se competente para julgar uma possível agressão ao princípio da dignidade humana, pois, segundo a decisão, como o artigo 1º, §1º, da LF foi recepcionado pelo texto estadual, ela passou a ser de competência também do estado federado (RÖPER, 1996, p.157). Na decisão, afirmou-se que a dignidade teria sido lesada, na medida em que o réu foi transformado em mero objeto do processo penal quando, mesmo com grave doença incurável e com a proximidade de sua morte, o estado pretendeu continuar o processo penal (ROZEK, 1994, p.452).

É preciso lembrar que esse julgamento gerou importantes críticas, pois suscitou a preocupação de que outros TCE pudessem intervir de maneira semelhante em outros processos criminais e judiciais que fossem de competência federal (STARCK, 1993, p.234). Mesmo assim, em 1997, o TCF (BVerfGE 96, 345) acabou ratificando essa nova compreensão de proteção dos direitos fundamentais pelos TCE, afirmando que, caso haja uma reclamação constitucional com base num direito fundamental previsto na Constituição estadual, mesmo que a essa envolva matéria de competência federal, o TCE tem competência para apreciar e julgar o caso. Nesse sentido, registra-se a crítica endereçada à decisão de que o TCF teria criado uma espécie de uma nova Câmara na sua estrutura organizatória (DREIER, 2000, art. 142, § 84).

Outra decisão que estendeu a competência da jurisdição constitucional dos estados ocorreu no âmbito do direito eleitoral, quando o TCF (BVerfGE 99,1) decidiu que leis eleitorais regulamentadas por leis estaduais não podem ser diretamente questionadas junto ao TCF, o que evidencia um aumento significativo de demandas referentes a questões democráticas sobre a jurisdição estadual (KNEIP, 2020, p.29).

Entretanto, mesmo após essas decisões do TCF, ainda há dúvidas sobre a competência dos TCE em matérias que se relacionam com o direito federal. É o caso, por exemplo, dos TC da Baviera e de Hesse, que analisam a aplicação da lei processual federal à luz dos direitos fundamentais estaduais. Entretanto, como a reclamação constitucional de tais constituições é anterior à LF, os tribunais desses estados manejam tais reclamações com cautela (STARCK, 1993, p.232).

No que diz respeito aos direitos sociais, ausentes na LF, mas previstos em algumas Constituições estaduais, em regra tais direitos não são tidos como direitos subjetivos, colacionando-se aqui, em caráter ilustrativo, julgado do TC de Brandenburgo, de acordo com o qual, o direito à moradia, consagrado no artigo 47, §1º da Constituição desse estado membro, não é um direito fundamental, e, por isso, não constitui um direito subjetivo do cidadão, cabendo ao estado somente o dever de garantir a adequada realização desse direito de acordo com os seus recursos financeiros.

O que se pode aferir, em termos gerais — sem adentrar as particularidades das decisões dos tribunais de cada estado membro — é que no sistema constitucional alemão existe uma dupla esfera de proteção dos direitos fundamentais: uma em âmbito estadual, outra em âmbito federal, o que concede aos tribunais uma importante função no Estado Democrático de Direito (KNEIP, 2020, p.29-30). Entretanto é imperioso recordar que, embora o tribunal estadual possa examinar uma questão sobre direitos fundamentais que também estejam previstos na LF, sua interpretação deve estar de acordo as decisões do TCF. Caso haja um desrespeito a essa interpretação, a decisão estadual, mediante o manejo do instrumento jurídico próprio, será revogada pelo TCF (HÖRETH, 2020, p.56).

O quadro geral aqui apresentado em apertadíssima síntese, muito embora não possa ser transposto pura e simplesmente para o caso brasileiro, permite — ao menos, é o que se espera — que o leitor tenha uma visão pelo menos transversal sobre os direitos fundamentais e a jurisdição constitucional no âmbito da arquitetura federal da Alemanha, e quem sabe, venha a se interessar mais sobre o tema e o seu tratamento entre nós, ainda longe de poder ser considerado suficientemente desenvolvido, a despeito da existência já de significativa e qualificada literatura [5].

* O presente texto foi elaborado (em caráter de apertada síntese e reconstrução) a partir do item relativo aos direitos fundamentais estaduais na Alemanha, que, por sua vez, juntamente com a parte relativa aos direitos consagrados nas Constituições estaduais dos EUA, integra o capítulo da lavra do autor desta coluna em coautoria com o prof. dr. Luís Fernando Sgarbossa, publicado em recente obra coletiva organizada pelo segundo em parceria com o prof. dr. Marcelo Labanca Corrêa de Araújo (Direitos Fundamentas Estaduais e Constitucionalismo Subnacional, Recife: Editora Publius, 2022), que reúne um número significativo de importantes contribuições sobre o tema e cuja leitura recomendamos enfaticamente.


[1] De acordo com o disposto no artigo 142, LF (na parte das disposições transitórias), os preceitos das constituições que asseguram direitos fundamentais seguem em vigor, na medida em que em sintonia com o previsto nos artigos 1 a 18 da LF.

[2] Todos os estados têm tribunais constitucionais. Embora os estados de Bremen, Hessen, Niedersachsen e Baden-Württenbergutilizem o termo Staatsgerichtshof, esses tribunais possuem competências similares.

[3] BerlVerfGH – VerfGH 38/92, julgado em 23.12.1992.

[4] BerlVerfGH – VerfGH 55/92, julgado em 12.1.1993.

[5] Destaca-se aqui a já citada obra organizada por Luís Fernando Sgarbossa e Marcelo Labanca Corrêa de Araújo sobre os direitos fundamentais estaduais.

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