Opinião

Perdão presidencial vai além da mera vontade pessoal do ocupante do cargo

Autor

  • Thais Pinhata de Souza

    é advogada com experiência nas áreas de Direito Criminal e Fashion Law mestre e doutoranda em Direito pela Universidade do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo professora do curso de extensão Mulheres Encarceradas da UFRJ (Núcleo de Direitos Humanos) e consultora do Departamento Jurídico em Direito Antidiscriminatório do Instituto Nelson Mandela no Rio de Janeiro.

22 de abril de 2022, 14h37

A graça é uma das modalidades de perdão de pena previstas no Direito brasileiro, sendo forma de extinção da punibilidade que se presta a aniquilar os efeitos da condenação criminal, não abolindo as demais consequências da pena. Sua aplicação, entretanto, não é tão simples como parece.

O perdão transcende a letra dura das leis e as divisões restritivas das disciplinas dogmáticas, "e, por mais que os criminalistas procurem ajustá-lo à disciplina dos Códigos, ele rasga as tênues faixas e estadeia sua força" [1]. Considerado um contemporâneo da ideia de pena, o perdão surge intuitivamente da percepção que a dureza e a crueza das penas é, por vezes, cruel demais para a vida concreta.

Como direito, a graça transitou entre Oriente e Ocidente, sendo gravada em diferentes compilações, mas seus traços definitivos seriam delineados entre os antigos romanos, para quem ela, com provocatio ad populum, poderia ser concedida pelo povo através das cúrias, não sendo submetida mesmo à Assembleia Popular para quaisquer revisão ou alteração [2]. Tão forte foi, que a graça se concedeu até àqueles criminosos condenados ao exílio, chegando aos condenados por crimes comuns ou mesmo por crimes políticos de lesa-pátria.

Nesse tempo, surge a palavra anistia, que será confundida com o que hoje chamamos de graça por muitos anos, e cujo significado latino é equivalente à palavra esquecimento (amnestis, de onde vem, a amnésia).

Com o passar dos séculos, a graça ganhou outros contornos, passando a ser considerada um símbolo dos poderes monárquicos, já que eram os reis os únicos capazes de desfazer as decisões tomadas pelos tribunais da modernidade. Montesquieu, em seu clássico "Espírito das Leis", dispõe que a clemência é a qualidade distintiva das monarquias: nas repúblicas, onde as virtudes serviriam de princípios, ela seria menos necessária. Nesse sentido, os monarcas conseguem, pela clemência, "dela tiram tanta glória, que quase sempre é uma felicidade para eles terem ocasião de exercê-la; e eles quase sempre podem exercê-la em nossos países. E, em nossos países, isso é quase sempre possível. Mas, dirão, quando convém punir? Quando perdoar? É coisa mais fácil de sentido que de prescrever" [3].

A ligação entre os monarcas e o direito de graça, para os franceses, foi de tal forma relevante que o Código Penal instaurado imediatamente após a revolução, em 1791, afastou aquele direito como um todo. Ele voltou a ser estabelecido apenas em 1802, por um ato do Senado, que identificava a clemência como uma virtude do legislador, ainda que não fosse ele próprio aplicá-la.

No Brasil, defendem alguns, que a graça chega já em sua fundação. Todos aqueles dispostos a lutarem contra invasores e rebeldes recebiam dos governos gerais o perdão por quaisquer faltas penais que houvessem cometido aqui ou no além-mar. A graça era assim um ato de indulgência tido na forma simples da comutação de penas.

Em Portugal, à época do descobrimento, vigorava o Código de Justiniano, outorgado em 1430, complementado ainda com o direito romano, que previa a graça. Não se tem notícia de grandes perdões concedidos por vias legais no período da colônia, entretanto há um grande exemplo de 15 de outubro de 1790 em que a rainha de Portugal, Dona Maria 1ª, conhecida como "a piedosa", e também como "a louca", concede por carta régia o perdão aos conjurados mineiros condenados pela morte do então Visconde de Barbacena, degradando-os para a África.

O fortalecimento dos poderes locais na colônia permitiu ainda que o direito de perdoar se estendesse não apenas ao monarca, mas também aos seus ouvidores, capazes tanto de punir, quanto de perdoar com relativa liberdade, estando ressalvadas meramente as aplicações de penas capitais.

No Império, o direito de comutar penas é atribuído à própria função do perdoar, e ainda do anistiar, sempre que a humanidade e o bem do Estado aconselharem [4] [5] o imperador a fazê-lo, conforme previsto no artigo 101 da Constituição de 1824, que estabelece as atribuições do Poder Moderador.

O advento da República trouxe um novo tratamento ao direito de graça. Já na Constituição de 1891, o direito antes alocado no Poder Moderador, passa para as mãos do Executivo [6], que poderia indultar e comutar as penas dos crimes sujeitos à jurisdição federal. Ao passo em que a anistia foi alocada entre as atribuições do poder legislativo. Essas ideias foram mantidas na Constituição de 1934, que traz como novidade, unicamente, a competência da União para conceder a anistia [7]. Pouco depois, a Constituição de 1937 restringe a aplicação do direito de graça ao presidente da República [8].

Os fundamentos do direito de graça estão dispostos no direito constitucional, mas é no Direito Penal que se fazem sentir o seus efeitos. Justamente por esta "vida dupla" diversos penalistas de destaque, sobretudo no século 19, quando as monarquias ruíram em favor das repúblicas, se questionaram sobre a sua aplicabilidade.

Garofalo, à quem se atribui a criação do termo Criminologia, entende a graça como nociva ao Direito Penal, já que, no seu entendimento, quaisquer atos de generosidade de autoridades competentes poderiam dar a impressão de que a ilicitude dos atos praticados pode ser relativizada, o que não vê como sendo real. Seguindo esse pensamento, o autor identifica o perdão como uma afronta que privaria a sociedade de seus meios de defesa contra aqueles que define como "inimigos naturais" [9].

Na mesma linha de pensamento está o professor Beccaria, para quem a clemência é virtude do legislador e não do executor das leis. Que o legislador seja indulgente e humano, mas que as leis sejam inexoráveis, e os executores das leis, inflexíveis [10]. Assevera que "Quando o soberano concede graça a um criminoso, não será o caso de dizer que sacrifica a segurança pública à de um particular e que, por um ato de cega benevolência, pronuncia um decreto geral de impunidade?" [11].

Bentham vai ainda mais longe em suas críticas, comparando o direito de graça a uma varinha mágica com poder de anular as penas, indagando sobre a necessidade de um direito que vem corrigir uma pena que poderia simplesmente não ter sido aplicada [12].

Por outro lado, não faltaram aqueles que quiseram elogiá-lo. No exterior temos De Vabres, que buscou comparar a graça ao olho que faz rodar as engrenagens "por vezes ásperas da justiça penal" [13], uma vez que ao moderar o sumo direito evitaria a suma injúria.

Laband traz em seus escritos aquela que é, provavelmente, a melhor definição do instituto: um ato administrativo excepcional, cuja excepcionalidade reside na manifestação do ius eminens do Estado, ou seja, um veto opositor ao curso regular do direito e da lei propriamente [14].

Já no Brasil, temos a grandes juristas como defensores do direito de graça, a exemplo de Ruy Barbosa e de Viveiros de Castro, para quem o direito seria essencial para que a proteção social "não se deixe abater por uma fria impassibilidade, que nunca se condói de possíveis infortúnios" [15].

A graça individual é ato do Poder Executivo, mais precisamente prerrogativa do chefe de Estado, ao passo em que a anistia é ato legislativo, e o indulto, ato judiciário e executivo. Anistia e indulto possuem o que se convencionou chamar de caráter real, ou seja, não tem pessoalidade, interrompendo aplicação da norma penal em relação a quaisquer sujeitos que tenham praticado os fatos criminosos previstos em sua aplicação; enquanto a graça individual é vista caso a caso, pessoa a pessoa, designando diretamente seu beneficiário.

Ainda no império, discutiu-se se o direito de graça derivava da própria soberania, constituindo uma faculdade puramente discricionária do soberano, ou se de outras pessoas dependia para revisão e aprovação. A discussão, trazida para a república, foi a princípio aplacada pela ideia de que o soberano constitucional tem o poder de obrigar o povo, via decreto, a tudo aquilo que a Constituição Federal permite, inclusive o perdão, sem necessidade de referenda, entretanto, nos poucos casos em que se deu a aplicação, sobretudo pelo presidente Vargas, decretos de 1941 traziam junto à assinatura do presidente a assinatura do ministros de Estado.

A realidade dos países que aplicam o direito de graça é de que os decretos presidenciais passaram a ser referendados pelo Poder Legislativo. O próprio Brasil em sua primeira construção republicana exigiu, em seu artigo 49, a assinatura dos ministros — no geral, de justiça — para validar os atos do Presidente, entretanto, facultou ao chefe de estado não seguir o parecer de seu ministeriado, um paradoxo intransponível.

Hoje, é indispensável considerar que o chefe de Estado está vinculado a outras questões que não apenas suas vontades individuais, devendo respeitar as conquistas constitucionais de seu povo, que deve se traduzir no perdão como medida de contrapeso aos excessos judiciais, independente de contra quem estes venham a ocorrer e fazê-lo, demanda, por certo, mais que a mera vontade pessoal daquele que ocupa o Palácio do Planalto.


[1] LEMOS DE BRITTO. Do poder de Agraciar. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1942, p. 06.

[2] CARVALHO FILHO, Aloysio. Comentários ao Código Penal. vol. IV. Rio de Janeiro: Revista Forense , 1958. p. 103.

[3] MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 23

[4] BRASIL, Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm. Acesso em 18/2/2018.

[5] "Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador (…)

VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença.

IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado. (sic)"

[6] Artigo 34, § 27 e §28, e artigo 48§6º.

[7] Artigo 5º, XVIII, artigo 40 3, artigo 56, §3º.

[8] Artigo 15, XI e artigo 75.

[9] GAROFALO, Raffaele. Criminologia : studio sul delitto e sulla teoria della repressione. Roma: Fratelli Bocca, 1885. p. 293-294. Disponível em: https://www.file-pdf.it/2015/04/09/raffaele-garofalo-criminologia-studio-sul-delitto/raffaele-garofalo-criminologia-studio-sul-delitto.pdf. Acesso em 18 de junho de 2019.

[10] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Domínio Público. p. 41 – 42. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000015.pdf. Acesso em 16 de maio de 2019.

[11] BECCARIA, Cesare. Idem, p. 41.

[12] BENTHAM, Jeremy. The Works of Jeremy Bentham. Edimburgo: Superintendence of his Executor, John Bowring, 1838-1843. Vol. 6. Disponível em: https://oll.libertyfund.org/titles/1923. Acesso em 15 de junho de 2019.

[13] DE VABRES, Henri Felix Auguste Donnediu. Traité de Droit criminel et de legislation penale comparée. 3ª ed. Paris, Recueil Sirey, 1947. p. 546.

[14] LABAND, Paul. Le droit public de l'Empire Allemand. Vl IV, pg. 385-387.

[15] CASTRO, Augusto Olympio Viveiros de. A nova escola penal. BDJur, Brasília, DF, 15 maio 2009. Disponível em: http://bdjur.stj.jus.br//dspace/handle/2011/21309. Acesso em 30 de maio de 2019. p. 76.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!