Opinião

Prisão domiciliar para mulheres em cumprimento de pena no regime fechado

Autor

  • Tiago Bunning

    é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra) conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024) advogado e professor.

19 de abril de 2022, 17h04

O artigo 117 da Lei 7.210/84 prevê a possibilidade de prisão domiciliar apenas aos apenados (as) que cumpram pena no regime aberto. Esta previsão legal viola diversos princípios penais que se aplicam a execução penal.

Começando pela individualização da pena (artigo 5º, XLV da CF), uma vez que a justificativa da prisão domiciliar possui fundamento na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III da CF), não havendo razoabilidade para sua limitação de acordo com o regime de pena, uma vez que sua finalidade não guarda relação com o sistema progressivo que se caracteriza pela ideia de quotas de liberdade (mark system [1]) restituídas de acordo com o "mérito" do sentenciado, tampouco guarda relação com os substitutivos penais, pois não se configura como uma estratégia de política criminal (tal como o livramento condicional) [2].

Pensar ao contrário seria admitir, por exemplo, que pessoas extremamente debilitadas por doença grave cumprindo pena em regime aberto poderiam usufruir de tratamento em prisão domiciliar, enquanto aqueles recolhidos em regime fechado acometidos pela mesma debilidade poderiam ser tolhidos do tratamento necessário e sujeitos a graves consequências, entre elas a morte. Perceba que o fundamento para não admitir este cenário é a dignidade da pessoa humana e não o suposto “mérito” do apenado ou alguma alternativa de política criminal minimalista.

Também viola o princípio da humanidade das penas (artigo 5º, XLVII da CF), imprimindo caráter cruel aos condenados idosos ou acometidos por doença grave, podendo inclusive configurar pena de morte ou de caráter perpétuo, basta somar a pena que o idoso possui a ser cumprida e sopesá-la a expectativa de vida no Brasil para concluir se existe possibilidade do cumprimento da reprimenda ou se sua execução constituiria uma pena perpétua ou de morte.

Isso sem considerar que a sobrevivência no cárcere não pode ser comparada a vida extramuros de onde resultam as pesquisas sobre a expectativa de vida. Afinal, não se pode esquecer que "a vulnerabilidade funciona como um verdadeiro 'pressuposto' para o encarceramento" por isso "enquanto a prisão afeta 'x' no corpo de um preso não idoso, ela pode ser capaz de afetar 'x²' no corpo de um idoso encarcerado" [3].

Por fim, a restrição imposta pelo artigo 117 da LEP viola o princípio da pessoalidade da pena (segundo Rodrigo Roig, com quem concordamos, princípio da transcendência mínima [4]) na medida em que a pena imposta a mulher condenada atinge diretamente seus filhos menores ou em fase de gestação, que algumas vezes permanecem com a liberdade restrita experimentando situações degradantes do cárcere, mas na maioria das vezes são submetidos a restrição de convívio [5] que provoca intenso sofrimento psicológico e restrição de diversos direitos básicos assegurados as crianças e adolescentes (artigo 227 da CF).

Foi por reconhecer que a restrição da prisão domiciliar somente aos apenados em regimento aberto viola direitos e garantias fundamentais, que o Supremo Tribunal Federal desde o RHC nº 94.358/SC passou admitir, com fundamento na dignidade da pessoa humana, a chamada prisão domiciliar de caráter humanitário, para permitir que pessoa idosa e/ou acometida por doença grave que cumpriam pena em regime fechado fosse colocada em prisão domiciliar. A posição foi reiterada pelo Supremo em outras diversas ocasiões [6], em especial no HC 152.707/DF quando o Pleno referendou medida cautelar concedida pelo ministro Dias Toffoli neste sentido. Não era outra a posição do Superior Tribunal de Justiça que também reconhecia a possibilidade de prisão domiciliar humanitária pelos mesmos fundamentos [7].

Mas, conforme visto acima, o entendimento jurisprudencial se limitava aos idosos e pessoas debilitadas por doença grave, ou seja, uma intepretação extensiva do artigo 117, incisos I e II da LEP. Ainda não estava resolvida a situação complexa envolvendo mulheres gestantes, lactantes e genitoras de crianças. Neste ponto, foi importante a edição do Enunciado nº 26 da I Jornada de Direito Processual Penal do Conselho Nacional de Justiça ao afirmar que: "É possível, em situações excepcionais, a aplicação da prisão domiciliar humanitária, prevista no art. 117 da Lei n. 7.210/1984, também aos condenados em cumprimento de regime fechado e semiaberto".

Em 2019, o Superior Tribunal de Justiça no HC 487.763/SP [8], inspirado no HC Coletivo julgado pelo STF (HC 143.641/SP), concedeu a prisão domiciliar a apenada em cumprimento de pena em regime fechado (ainda que o caso tratasse de execução provisória de pena), a fim de proteger a integridade física e emocional da filha de três anos de idade. Neste caso, após a convolação da execução provisória em definitiva, foi necessária a autuação de Reclamação [9] perante o Eg. STJ para que a decisão proferida no writ fosse cumprida na origem, ocasião em que a Terceira Seção reconheceu que a medida possuía eficácia sobre a prisão definitiva.

Em um caso mais recente, uma nova decisão da Terceira Seção do STJ no RHC 145.931/MG [10], concedeu a prisão domiciliar a uma mulher, mãe de duas crianças de dois e seis anos de idade, confirmando a possibilidade de concessão da prisão domiciliar a mulheres gestantes, mães ou responsáveis por crianças de até 12 anos em qualquer momento do cumprimento de pena (independentemente do regime prisional), desde que o crime não seja praticado mediante violência ou grave ameaça contra seus descendentes.

É preciso concluir enaltecendo a sensibilidade do STJ e STF neste tema, reconhecendo que não se está diante de um ativismo judicial, mas sim de uma medida de hermenêutica que reconhece que o direito penal é contradição e limite do poder que legítima [11], e é essa sua função principal.


[1] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: Teoria Crítica. Atualizado conforme a Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime). 5ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 261.

[2] SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal. Parte Geral. 7ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 567.

[3] GHIGGHI, Marina Portella. Envelhecimento e cárcere: vulnerabilidade etária e políticas públicas. Mais 60. Estudos sobre envelhecimento. Vol. 29, nº 71, p. 8-29, ago. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 02/04/2020.

[4] "A adoção da expressão transcendência mínima aqui empreendida parte de uma visão realista acerca da pena privativa de liberdade, que reconhece a impossibilidade fática absoluta de que a pena se circunscreva apenas ao próprio sentenciado, sem afetar o projeto de vida de pessoas que integrem o círculo familiar e social daquele". (ROIG, Rodrigo Duque Estada. Aplicação da pena. Limites, princípios e novos parâmetros. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 97).

[5] Afinal, como lembra Luís Carlos Valois: "A Lei de Execução Penal fala de creches em penitenciárias para, em tese, possibilitar que crianças maiores de seis meses e menores de sete anos sejam mantidas próximas às mães (art. 89), mas onde falta comida e higiene, pensar em creche parece um exercício de ficção científica". (VALOIS, Luís Carlos. Processo de execução penal. E o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019, p. 57).

[6] HC nº 131.905/BA, relator ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, DJe. 07/03/2016; HC nº 144.556/DF-AgR, relator ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, DJe. 26/10/2017; Rcl nº 25.111/PR-AgR, Segunda Turma, relator ministro Dias Toffoli, Dje. 01/02/2018; HC 152.265/SP, relator ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 20/03/2018; HC 153.961/RJ, relator ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, j. 27/03/2018; Tutela Provisória na Petição 8.998/DF,relator ministro Edson Fachin, decisão proferida pelo ministro Dias Toffoli em 14/07/2020; Pet. nº 53789/2020 no HC 187.368/SC, relator ministro Rosa Weber, decisão proferida pelo ministro Dias Toffoli em 21/07/2020.

[7] HC 366.517/DF, relator ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 11/10/2016; HC nº 418.817/RS, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. 17/04/2018; HC nº 462.147/SP, relator ministro Laurita Vaz, Sexta Turma, j. 23/04/2019; HC nº 453.657/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, j. 30/05/2019; HC nº 612.311/PR, ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 19/10/2020; HC nº 366.517/DF, relator ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 11/10/2016; HC 365.633/SP, relator ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe. 25/05/2017 e RHC nº 26.814/RS, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe 29/03/2010.

[8] HC nº 487.763/SP, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, j. 02/04/2019.

[9] Rcl nº 40.676/SP, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, DJe 01/12/2020.

[10] RHC 145.931/MG, relator ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, Dje  16/03/2022.

[11] SEMER, Marcelo. Princípios Penais no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Tirant Lo Blach, 2020, p. 15.

Autores

  • é advogado, professor, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), especialista em Direito Penal Econômico pelo IBCCRIM e Universidade de Coimbra e conselheiro seccional da OAB/MS.

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