Opinião

O Pix pode (e deve) ser utilizado judicialmente

Autor

  • Hélio Tomba Neto

    é advogado associado ao Cordeiro Lima Sociedade de Advogados pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e em Direito Digital e Compliance pela Faculdade Ibmec e Instituto Damásio de Direito ex-presidente da Comissão de Compliance e Direito Digital da 53ª Subseção da OAB/SP em Itu presidente do Portal Digital Rights Association.

19 de abril de 2022, 18h01

Na prática jurídica contenciosa, identificamos um grande problema: a localização do devedor e de seus bens. Seja para finalizar o ciclo citatório ou buscar efetividade nos atos executórios. Daí surge a necessidade de inovação na localização da parte adversa.

Há alguns meses, tomou conta nos tribunais a discussão de utilização do WhatsApp para fins processuais. Destaca-se que a citação ou intimação via aplicativo foi alvo do julgamento do HC 641.877/DF, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas, da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão publicado em 15/3/2021, onde a Turma, por unanimidade, anulou a citação por WhatsApp porque, no caso concreto, foi feita sem nenhum comprovante quanto à autenticidade da identidade do citado, destacando, no entanto, sobre "a possibilidade do uso da referida tecnologia, desde que, com a adoção de medidas suficientes para atestar a identidade do indivíduo com quem se travou a conversa", in verbis:

"PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. INADEQUAÇÃO. CITAÇÃO VIA WHATSAPP. NULIDADE. PRINCÍPIO DA NECESSIDADE. INADEQUAÇÃO FORMAL E MATERIAL. PAS DE NULlITÉ SANS GRIEF. AFERIÇÃO DA AUTENTICIDADE. CAUTELAS NECESSÁRIAS. NÃO VERIFICAÇÃO NO CASO CONCRETO. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
[…]
6. Abstratamente, é possível imaginar-se a utilização do Whatsapp para fins de citação na esfera penal, com base no princípio pas nullité sans grief. De todo modo, para tanto, imperiosa a adoção de todos os cuidados possíveis para se comprovar a autenticidade não apenas do número telefônico com que o oficial de justiça realiza a conversa, mas também a identidade do destinatário das mensagens.
7. Como cediço, a tecnologia em questão permite a troca de arquivos de texto e de imagens, o que possibilita ao oficial de justiça, com quase igual precisão da verificação pessoal, aferir a autenticidade da conversa. É possível imaginar-se, por exemplo, a exigência pelo agente público do envio de foto do documento de identificação do acusado, de um termo de ciência do ato citatório assinado de próprio punho, quando o oficial possuir algum documento do citando para poder comparar as assinaturas, ou qualquer outra medida que torne inconteste tratar-se de conversa travada com o verdadeiro denunciado. De outro lado, a mera confirmação escrita da identidade pelo citando não nos parece suficiente.
8. Necessário distinguir, porém, essa situação daquela em que, além da escrita pelo citando, há no aplicativo foto individual dele.
Nesse caso, ante a mitigação dos riscos, diante da concorrência de três elementos indutivos da autenticidade do destinatário, número de telefone, confirmação escrita e foto individual, entendo possível presumir-se que a citação se deu de maneira válida, ressalvado o direito do citando de, posteriormente, comprovar eventual nulidade, seja com registro de ocorrência de furto, roubo ou perda do celular na época da citação, com contrato de permuta, com testemunhas ou qualquer outro meio válido que autorize concluir de forma assertiva não ter havido citação válida.
9. Habeas corpus não conhecido, mas ordem concedida de ofício para anular a citação via Whatsapp, porque sem nenhum comprovante quanto à autenticidade da identidade do citando, ressaltando, porém, a possibilidade de o comparecimento do acusado suprir o vício, bem como a possibilidade de se usar a referida tecnologia, desde que, com a adoção de medidas suficientes para atestar a identidade do indivíduo com quem se travou a conversa.
(HC 641.877/DF, relator ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 09/03/2021, DJe 15/03/2021)".

Dos fundamentos deste precedente pode-se identificar que não há proibição prima facie para a realização do ato processual pelo WhatsApp, mas para que esse meio de comunicação possa ser utilizado, exige-se conferir à prática do ato maior grau de confiabilidade e certeza de que o recebe no destino é realmente a pessoal para a qual é direcionado o ato. Nestes termos, destacamos o voto do ministro Relator, seguido pelos demais ministros, que ao julgar sobre o mérito da citação, superado, em seu entender, a ausência de previsão legal autorizativa, anulou a citação justamente por ausência de prova cabal de que o ato alcançou sua finalidade e o citando:

"NÃO CONHEÇO DO HABEAS CORPUS, MAS CONCEDO A ORDEM DE OFÍCIO, PARA ANULAR A CITAÇÃO VIA WHATSAPP, PORQUE, IN CASU, FOI FEITA SEM NENHUM COMPROVANTE QUANTO À AUTENTICIDADE DA IDENTIDADE DO CITANDO, RESSALTANDO, PORÉM, A POSSIBILIDADE DO USO DA REFERIDA TECNOLOGIA, DESDE QUE, COM A ADOÇÃO DE MEDIDAS SUFICIENTES PARA ATESTAR A IDENTIDADE DO INDIVÍDUO COM QUEM SE TRAVOU A CONVERSA (g.n)".

Muito embora a decisão proferida esteja vinculada ao Processo Penal, trouxe reflexos para o âmbito processual civil. Também foi o entendimento do magistrado Guilherme Madeira Dezem nos autos do processo nº 1030291-25.2021.8.26.0100, utilizada como decisão paradigma, transcrita in verbis:

"(…)
O pedido feito pela d. advogada não é usual. Trata-se do primeiro pedido que me é feito neste sentido. Conheço o precedente por ela invocado do STJ e também destaco a inexistência de regulamentação por parte do legislador, do Egrégio Tribunal de Justiça bem como do CNJ.
A questão está, em primeiro lugar, saber se a ausência de regulamentação autoriza o indeferimento do pedido feito pela advogada.
Neste ponto creio que a ausência de previsão em lei não é hábil a justificar o indeferimento do pedido da advogada. Neste sentido a interpretação que extraio do disposto no artigo 8 do CPC, notadamente a razoabilidade e a eficiência.
Há outros dois pontos a serem analisados: o primeiro consiste em saber qual o motivo fático justificaria tamanha excepcionalidade.
(…)
As partes devem atuar em boa fé e a esta implica também na ausência de pré concepções sobre atuações de má-fé. Afinal de contas é bem conhecida a lição de que a má-fé não se presume.
Desta forma autorizo a realização da citação pela via de whatsapp. A serventia deverá tomar a cautela de enviar a contra fé pelo próprio whatsapp, também deverá certificar nos autos quando isso foi feito bem como certificar quando lida a mensagem. De igual forma deverá enviar mensagem esclarecendo o réu de que ele deve buscar advogado para se defender nos autos, seja particular seja pela defensoria pública caso não possa pagar por um e que tem o prazo de 15 dias úteis para se defender a contar do dia seguinte ao dia em que receber a mensagem (g.n)".

Com os precedentes acima, verifica-se o desenvolvimento do entendimento jurisdicional da possibilidade de utilização de meios tecnológicos diversos para além dos mecanismos de citação e intimação clássicos, como o envio de correspondência e a diligência por oficial de justiça, tratando-se de mecanismos que também conferem confiabilidade à prática do ato, de onde se extrai também ser possível identificar a celeridade na prática do ato processual.

Mas elemento fundamental que proporcionou essa nova compreensão da utilização de novos sistemas foi também a pandemia decorrente do novo coronavírus, cujos meios profiláticos de combate à sua propagação impuseram a necessidade de distanciamento social. Consequentemente, para a manutenção da realização dos atos processuais em conformidade ao distanciamento social, a incorporação destas tecnologias se fez imperiosa, tendo, ocorrido sua regulamentação por Tribunais, como é o caso do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso ao editar a Portaria Conjunta nº 412, de 20 de abril de 2021, autorizando que os oficiais de justiça, ao realizar atos de citação e intimação, se valessem de recursos tecnológicos para o cumprimento de mandados.

A eficácia da prática deste ato processual via recursos tecnológicos junto ao Tribunal Mato-grossense demonstra um point of no return, já que a utilização destes recursos garantiu celeridade na prática do ato e confiabilidade.

Ademais, há de se ter em mente a pretensão cada vez mais recorrente de inserção e absorção de novas ferramentas tecnológicas para a prática de atos processuais, como foi o caso das tímidas alterações implementadas pela Lei Federal nº 14.195, de 26 de agosto de 2021, no Código de Processo Civil, autorizando e preferido que as citações pudessem se realizar por meio eletrônico, com o envio da comunicação ao endereço eletrônico indicado pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário (CPC, artigo 246). Ainda que tímida essa alteração, mas somada aos novos entendimentos de viabilidade de citação por aplicativos de mensagem instantânea, reconhece-se a possibilidade de utilização deste novo ferramental.

Neste passo de utilização de novas tecnologias, tem-se que recentemente o Pix completou um ano de atuação em território brasileiro.

Como apontado no ano de 2020, o Pix é um meio de pagamento disruptivo desenvolvido pelo Banco Central para facilitar as transações financeiras, competindo ao usuário do sistema o cadastro de uma "chave Pix" a sua escolha para que possa realizar essas transações. Ou seja, é impossível que a criação de uma chave Pix tenha se dado em momento anterior à própria criação do sistema no ano de 2020. Ainda, por se tratar de um sistema que demanda do seu usuário o ato voluntário de cadastro da sua chave Pix de preferência (CPF, CNPJ, telefone, e-mail etc.), necessariamente se conclui que, na existência de uma chave Pix válida, esta é decorrente da declaração de vontade do titular de se valer deste sistema de transferências financeiras.

E esse introito sobre o Pix se faz porque é este mais um sistema tecnológico que pode auxiliar na localização das partes processuais, conferindo maior confiabilidade e juízo de certeza em sua localização, pois, em se tratando de um ato voluntário da parte em criar uma chave pessoal e intransferível, possui como fator acessório seus dados de identificação e localização também devem ser prestados.

Desta forma, para se viabilizar encontrar o possível paradeiro do jurisdicionado ou os meios aptos a auxiliar na sua localização, pode-se valer de simulação de operação  não concretizada , para ter acesso à informação se a parte contrária  possui chave em instituições bancárias e eventuais existência de contas diretas (por exemplo NuBank), indicando, per si, o recebimento de valores neste um ano de existência da ferramenta, animus de recebimento e que especificamente tal instituição bancária possui os dados pessoais da parte contrária.

Não é fora de propósito relembramos o conceito de Dados Pessoais apresentado na Lei Geral de Proteção de Dados, qual seja, "informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável":

"Artigo 5º Para os fins desta Lei, considera-se:
I – dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável;".

Importante frisar que a própria lei permite o compartilhamento de dados pessoais para exercício regular de direitos em processo judicial. In verbis:

"Artigo 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:
I – mediante o fornecimento de consentimento pelo titular;
II – para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;
III – pela administração pública, para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres, observadas as disposições do Capítulo IV desta Lei;
IV – para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais;
V – quando necessário para a execução de contrato ou de procedimentos preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular, a pedido do titular dos dados;

VI – para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral, esse último nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem);".

Desta forma, comprovando-se, ainda que indiciariamente, a existência de uma conta bancária vinculada a uma chave Pix de titularidade da parte, é possível o requerimento ao Juízo para 1) a expedição de ofício para a instituição bancária localizada com o intuito de que se confirme 2) a existência de chave Pix aberta em nome da parte contrária e 3) apresentação aos autos de todos os seus dados pessoais atualizados, em especial os endereços de cadastro, bem como a informação do limite de crédito (se o caso), se possui investimentos bancários, se existem faturas atrasadas, bem como suas datas de vencimento  utilizando-se ainda como um norte para a expectativa de recebimentos via constrição de ativos ("teimosinha").

É inquestionável e, em certo ponto, concreto que se faz necessária a modernização e inovação das teses no cotidiano litigioso e da prática de atos processuais que conversem com o desenvolvimento social e tecnológico, cabendo ao advogado instigar e provocar a construção jurisprudencial com o requerimento de pedidos disruptivos comparados aos mesmos métodos processuais utilizados há décadas. Para isto, não é necessário "inventar a roda", mas sim trazer uma nova fonte de luz a ferramentas já disponíveis, inclusive gratuitamente, como é o exemplo da transferência via Pix, realizando os atos processuais sob a égide dos princípios da economia processual, eficiência e duração razoável do processo, sem descuidar de sua confiabilidade.

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  • é advogado associado ao Cordeiro, Lima Sociedade de Advogados, pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e em Direito Digital e Compliance pela Faculdade Ibmec e Instituto Damásio de Direito, ex-presidente da Comissão de Compliance e Direito Digital da 53ª Subseção da OAB/SP em Itu, presidente do Portal Digital Rights Association.

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