Direito Civil Atual

A corretagem imobiliária na jurisprudência do STJ

Autor

  • Luiz Carlos de Andrade Jr.

    é advogado; professor Doutor de Direito Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie; doutor em Direito Civil pela USP; pós-doutorando em Direito Civil na USP; membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

18 de abril de 2022, 11h43

A retomada econômica que, espera-se, sucederá à emergência sanitária nacional decorrente da epidemia de Covid-19, terá como um de seus protagonistas a indústria imobiliária. Entidades que congregam os participantes do setor estimam que o 'PIB da construção' crescerá cerca de 2% em 2022, na comparação com 2021, acima do PIB nacional[1].

ConJur
No cenário que assim se descortina, parece-nos oportuno relembrar de uma categoria econômica que integra a indústria imobiliária, e cuja atividade tem suscitado intensos debates jurisprudenciais nos últimos anos: os corretores de imóveis. O crescimento das vendas de imóveis, se ocorrer, será em boa medida mérito do trabalho deles.

Quanto mais frequente certa relação jurídica se torna, mais frequentes são os conflitos a ela associados, a reclamarem apaziguamento pelo Judiciário. Neste artigo, passaremos em revista alguns precedentes emblemáticos do STJ que trataram do regime jurídico da corretagem de imóveis.

"Transferência" da obrigação de pagar a comissão
No julgamento, sob a sistemática dos repetitivos, do REsp 1.599.511/SP (Tema 938) (j. 24/8/2016), o STJ firmou a seguinte tese: "[v]alidade da cláusula contratual que transfere ao promitente-comprador a obrigação de pagar a comissão de corretagem nos contratos de promessa de compra e venda de unidade autônoma em regime de incorporação imobiliária, desde que previamente informado o preço total da aquisição da unidade autônoma, com o destaque do valor da comissão de corretagem".

No voto condutor do aresto, o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, após tecer considerações sobre a disciplina do contrato de corretagem segundo o CC, destaca que tal relação contratual se estabelece entre o incumbente (ou comitente) e o corretor, inexistindo relação direta entre o terceiro interessado (que eventualmente seria parte do negócio jurídico intermediado) e o corretor. Por essa razão, a comissão de corretagem seria devida pelo incumbente, como decorrência da relatividade dos efeitos do contrato de corretagem.

Mais adiante, o voto pondera que poderia haver "transferência" desse encargo para o terceiro interessado, se houvesse cláusula, no contrato intermediado, que assim dispusesse. Essa conclusão funda-se na premissa de que o incumbente da corretagem seria o vendedor, pois este estaria ofertando imóvel de sua titularidade ao mercado.

A solução a que se chegou, nos moldes acima delineados, é correta. Em reforço a ela, apresentamos uma fundamentação alternativa, que o próprio STJ viria, na essência, a adotar mais recentemente, ao revisitar o tema da responsabilidade civil dos corretores (vide nossos comentários sobre esse precedente algumas linhas abaixo).

O artigo 20 da Lei nº 6.530/78 estabelece que, ao corretor, é vedado “anunciar publicamente proposta de transação a que não esteja autorizado através de documento escrito". O Decreto nº 81.871/78, que regulamenta a referida lei, estatui, a seu turno, que "[s]omente poderá anunciar publicamente o Corretor de Imóveis, pessoa física ou jurídica, que tiver contrato escrito de mediação ou autorização escrita para alienação do imóvel anunciado".

Usualmente, as construtoras e incorporadoras não incumbem os corretores de imóveis da obrigação de lhes angariar negócios. Aquelas, deliberadamente, "autorizam" estes a anunciar os seus imóveis, como exatamente prevê e permite a lei.

"Autorização" é um negócio jurídico unilateral, que não se confunde com o contrato de corretagem. Por meio dela, o autorizante confere legitimação a terceiro para a realização de um ato ou exercício de uma atividade, ao mesmo tempo em que admite os efeitos que incidirão, da atuação do autorizado, sobre a sua esfera jurídica. A esse propósito, Betti esclarece que, com a autorização, o autorizado "obtém um poder de disposição sobre direitos do autorizante, ou de ingerência na sua esfera jurídica (…)". "Correlativamente, por parte do autorizante, dá-se uma aprovação preventiva de um negócio que o autorizado tem poder de concluir em nome próprio ou alheio, e antecipada assunção dos efeitos onerosos que possam derivar disso, a cargo do primeiro"[3]."

Isto posto, seria acertado identificar a formação do contrato de corretagem resultando do acordo de vontades entre o comprador e o corretor. O vendedor autoriza o corretor a anunciar o imóvel, oferecendo-se para realizar a intermediação em benefício do comprador, o qual, portanto, figuraria no contrato de corretagem como incumbente.

Seria, pois, natural e consistente, concluir que não ocorre, no âmbito da comercialização profissional de imóveis, efetiva "transferência" da obrigação de pagar a comissão de corretagem. O contrato de corretagem é entabulado entre comprador e corretor; o comprador deve a comissão de corretagem pelo simples fato de ser ele, não o vendedor, o incumbente.

Prescrição trienal para a repetição de valores pagos
No julgamento, sob a sistemática dos repetitivos, do REsp 1.551.956-SP (Tema 938) (j. 24/8/2016), o STJ firmou a seguinte tese: "[i]ncidência da prescrição trienal sobre a pretensão de restituição dos valores pagos a título de comissão de corretagem ou de serviço de assistência técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere (art. 206, § 3º, IV, CC)".

O voto condutor do aresto, de lavra do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, sustenta que os pedidos de restituição de valores cobrados a título de comissão de corretagem sujeitam-se ao prazo prescricional trienal estabelecido para a pretensão ao ressarcimento do enriquecimento sem causa.

Transcreve trecho de voto proferido pelo ministro Marco Aurélio Belizze em outro julgado (REsp 1.360.969/RS, j. 10/8/2016), que contém uma aprofundada análise do instituto do enriquecimento sem causa, para expor as principais teorias elaboradas em torno desse instituto, a saber: teoria unitária, teoria da ilicitude, teoria da divisão. Após, defende que a formulação mais sólida, e, por isso, preferível, seria a da teoria da divisão.

Segundo esta, o enriquecimento sem causa teria sido tratado de maneira demasiadamente ampla pelo legislador (arts. 884 a 886 do CC), a ponto de abranger situações diversas e não reconduzíveis a um princípio diretivo comum. Dentre estas hipóteses típicas de enriquecimento sem causa, estariam, segundo as proposições de Caemmerer, o enriquecimento por prestação (Leistungskondiktion), o enriquecimento por intervenção (Eingriffskondiktion), enriquecimento pela liberação de uma dívida paga por terceiro (Rückgriffskondiktion), e o enriquecimento por despesas feitas em coisa alheia (Verwendungskondiktion).

Os compradores de imóveis, em geral, podem pedir a devolução dos valores pagos a título de comissão de corretagem em hipóteses limitadas, dentre elas: (1) se o contrato for nulo (inclusive por abusividade, nos termos do artigo 51 do CDC); (2) se a corretagem não tiver sido realizada, ou o fundamento da dívida (obtenção de negócios ao incumbente) revelar-se inexistente; (3) se tiverem pagado montantes superiores à comissão efetivamente devida.

Nenhuma dessas hipóteses é de enriquecimento sem causa, propriamente dito. Nas hipóteses (2) e (3), depara-se com pagamento indevido, o qual, por opção do legislador, foi tipificado e disciplinado separadamente do enriquecimento sem causa (artigos 876 a 883 do Código Civil). Na hipótese (1), há nulidade do contrato, que tem como corolário a restituição das partes ao statu quo ante (artigo 182 do CC).

Aplicando a teoria da divisão para o fim específico de identificar o prazo prescricional a que se sujeita o pleito de repetição de comissão de corretagem imobiliária, deparamo-nos com algumas questões desafiadoras.

Quando o artigo 206, §3º, IV, do CC, fixa a prescrição trienal para "a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa", estaria se referindo a qualquer obrigação que possa ser explicada pelo standard de justiça comutativa que condena o enriquecimento às custas do empobrecimento inexplicável de outrem[4], ou apenas às pretensões que têm como único veículo processual a actio in rem verso, cuja "causa jurídica" consiste, exclusivamente, nos artigos 884 a 886 do CC?

Sendo vários os formatos de enriquecimento sem causa, irredutíveis a um princípio diretivo único, teria o legislador seguido a teoria unitária para fixar a prescrição? A prescrição, enquanto instituto limitador do exercício de posições jurídicas, não deveria ter seus contornos delineados extensivamente. É plausível, portanto, supor que o "enriquecimento sem causa", a que se refere o artigo 206, §3º, IV, do CC, é apenas o propriamente dito, cuja pretensão correlata não tem nenhuma outra base além dos artigos 884 a 886 do CC.

Dada a excelência com que vem sendo moldada a jurisprudência do STJ, parece-nos certo que, nas próximas ocasiões em que apreciar o tema, a Corte não deixará de fornecer elementos para afastar as inquietações que as dúvidas acima podem ainda suscitar.

Responsabilidade civil do corretor de imóveis
Ao apreciar o REsp 1811153-SP (j. 15/2/2022), o STJ decidiu que "[a] relação jurídica estabelecida no contrato de corretagem é diversa daquela firmada entre o promitente comprador e o promitente vendedor do imóvel, de modo que a responsabilidade da corretora está limitada a eventual falha na prestação do serviço de corretagem".

No caso em exame, o autor ajuizou ação visando à rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel, com a condenação do vendedor e da imobiliária, solidariamente, à restituição das parcelas do preço já pagas.

Neste precedente, a Corte firmou as seguintes premissas: (1) o promitente comprador de imóvel ingressa em duas relações jurídicas distintas, o compromisso de compra e venda e o contrato de corretagem; (2) a imobiliária somente responde pelos danos decorrentes de falha no cumprimento de suas obrigações contratuais, que se restringem aos termos do contrato de corretagem; (3) o corretor não integra a cadeia de fornecimento de imóveis.

A solução consagrada neste precedente é acertada. Em primeiro lugar, de fato não caberia confundir o contrato de corretagem com o compromisso de compra e venda. Embora se possa cogitar da existência de conexão entre esses contratos, isto não os torna peças de uma relação jurídica única, nem faz com que um seja acessório do outro.

Noutro giro, o STJ fez bem em delimitar a extensão da cadeia de fornecimento, para fins de atribuição de responsabilidade civil, com base nos artigos 7º, 20 e 25 do CDC. A lei não usa tal expressão, referindo-se, na verdade, a ofensas que têm "mais de um autor", ou a danos cuja causação tem "mais de um responsável". O julgado pontua que, para integrar a cadeia de fornecimento, o terceiro deve guardar relação com o bem fornecido ou serviço prestado. Em seu voto-vista, a Ministra Nancy Andrighi sublinhou que "[a] corretora de imóveis tem sua atuação limitada, em regra, à intermediação das partes contratantes". "Ela não interfere na execução da obra ou procedimento de incorporação imobiliária."

A mesma conclusão do julgado poderia ainda ser fundamentada a partir da definição da cadeia de fornecimento sob a perspectiva do nexo de causalidade entre o produto/serviço e o dano. A imobiliária tem o seu papel jurídico-econômico exaurido quando as potenciais partes contratantes são aproximadas e acordam sobre a realização do negócio. Nem mesmo o posterior arrependimento delas faz cair a causa da obrigação de pagar a comissão de corretagem (artigo 725 do CC). Todo o cumprimento do compromisso de compra e venda dá-se sem qualquer participação do corretor, o qual já não terá ligação alguma com as partes ou com o negócio entre elas firmado.

A imobiliária não integra a cadeia de consumo porque não tem como ser autora de qualquer ofensa, nem como ser causadora de qualquer dano ao consumidor, relativamente ao fornecimento do imóvel. Estando de fora da operação econômica principal, inexiste relação de causalidade entre a sua atividade e a do promitente vendedor. Por isso mesmo, o corretor somente responde por vícios ou acidentes que digam respeito à intermediação em si. Foi feliz, ao que nos parece, o STJ, ao rever a jurisprudência anterior, que vinha acolhendo a responsabilidade solidária dos corretores.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[3] E. BETTI. Teoria generale del negozio giuridico. 2ª ed. Napoli: ESI, 1950, p. 566. Tradução livre; no original: “ottiene um potere di disposizione su diritti dell’autorizzante, o d’ingerenza nella sua sfera giuridica (…) Correlativamente da parte dell’autorizzante si ha una approvazione preventiva di um negozio che l’autorizzato ha podere di compiere in nomi próprio od altrui, e anticipata assunzione degli effetti onerosi che siano per derivarne a carico del primo”.

[4] Ex. indenização por benfeitorias devida ao possuidor; indenização por avulsão, plantações e construções, especificação etc.; reembolso devido ao terceiro não interessado que paga dívida alheia etc.

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