Opinião

Modulação de efeitos: proposta de sistematização de julgamentos tributários

Autores

  • Nina Pencak

    é advogada sócia do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados doutoranda e mestre em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professora da pós-graduação lato sensu em Direito Tributário do IDP ex-assessora de Ministro no STF e cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem.

  • Pedro Júlio Sales D'Araújo

    é doutor em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal para assuntos tributários e foi pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha).

  • Raquel de Andrade Vieira Alves

    é doutoranda em Direito Financeiro pela USP mestre em finanças públicas tributação e desenvolvimento pela Uerj ex-assessora de ministro no Supremo Tribunal Federal autora do livro Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem coordenadora do grupo de pesquisa Formação de Precedentes nos Tribunais Superiores (vinculado à Comissão de Tribunais Superiores da OAB-DF) procuradora-geral adjunta de assuntos tributários da OAB-DF e advogada.

18 de abril de 2022, 6h35

No Brasil, quando se julga uma lei inconstitucional, declara-se a sua nulidade, o que remonta ao momento da sua origem. Proceder de modo diverso representaria conferir validade e eficácia a normas que violam a Constituição.

No entanto, o presente artigo possui como pressuposto o fato de que a teoria da nulidade não é absoluta e comporta exceções em diversos modelos na jurisdição constitucional comparada, em prestígio a princípios e valores tutelados pela própria Constituição, como a isonomia e a segurança jurídica. Arriscamo-nos a afirmar, inclusive, que atualmente a flexibilização da teoria da nulidade, sobretudo em matéria tributária, tem deixado de ser excepcional, o que indicaria a necessidade de reorganização das normas sobre a teoria no Brasil.

Para colaborar com o debate, elaboramos uma proposta de sistematização das regras relativas à modulação dos efeitos da decisão de (in) constitucionalidade, abordando três aspectos: 1) a necessidade de harmonização do quórum deliberativo para modulação; 2) um aperfeiçoamento da análise de fundamentos relativos às ressalvas da modulação; e 3) a necessidade de se instaurar um incidente deliberativo próprio para a modulação dos efeitos.

Quanto ao primeiro ponto, como reconheceu a Exposição de Motivos da Lei nº 9.868/99, diversas jurisdições constitucionais, mesmo as adeptas da teoria da nulidade, dispõem de mecanismos que permitem a sua flexibilização em ponderação com outros valores constitucionais. Assim, com nítida inspiração em outros países e com particular influência da Constituição portuguesa, foi concebida a redação do artigo 27 da Lei nº 9.868/99. Além do quórum qualificado, o dispositivo trouxe duas hipóteses ensejadoras da possibilidade de limitação dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade: segurança jurídica e excepcional interesse social.

De se notar, porém, que tanto a Lei nº 9.868/99 quanto a Lei nº 9.882/99 disciplinam o processo de controle concentrado, com referência expressa apenas à declaração de inconstitucionalidade de lei. A partir daí, emergiram duas dúvidas: é possível a modulação de efeitos da decisão também no controle difuso? O artigo 27 da Lei nº 9.868/99 pode ser aplicado por analogia a outras hipóteses para além da declaração de inconstitucionalidade de ato normativo?

Em relação ao primeiro questionamento, a aplicação do artigo 27, da Lei nº 9.868/99 foi estendida pela jurisprudência do STF, no julgamento do RE 586.453 [1], ao controle de constitucionalidade difuso, aplicando-se o mesmo quórum deliberativo para a modulação de efeitos da decisão de invalidade da norma quando esta ocorre em processo subjetivo com repercussão geral.

Ainda, há casos de reconhecimento da validade da norma em que a modulação de efeitos é a única forma de se garantir a segurança jurídica dos jurisdicionados. Trata-se das hipóteses de alteração jurisprudencial, em que, independentemente de restar declarada a validade da lei, a mudança de entendimento demanda a tutela da confiança do jurisdicionado. Nessas hipóteses, a modulação de efeitos decorreria diretamente do princípio constitucional da segurança jurídica, passando a ter regulamentação expressa a partir do advento do CPC/2015.

O Código trouxe em seu artigo 927, §3º, disciplina específica acerca da possibilidade de modulação de efeitos da decisão judicial, no interesse social e no da segurança jurídica, em caso de alteração da jurisprudência dominante pelo STF, ou por outro Tribunal no julgamento de demandas repetitivas. Desse modo, o modelo brasileiro passou a conviver com duas hipóteses regulamentadas de modulação: 1) da decisão de inconstitucionalidade; e 2) da decisão que revoga precedente anterior, alterando a jurisprudência dominante.

Para o primeiro caso — limitação dos efeitos retroativos da decisão de inconstitucionalidade , o regramento contido nas Leis n° 9.868/99 e 9.882/99 atribuiu quórum específico de deliberação, dois terços dos membros integrantes do colegiado. Já para o segundo caso  concessão de efeitos prospectivos à decisão que revoga precedente anterior , o regramento do artigo 927, §3º do CPC/2015 não previu quórum para deliberação.

Após anos de discussão, o Plenário do STF na Questão de Ordem no RE 638.115-ED, assentou que: "para a modulação dos efeitos da decisão em julgamento de recursos extraordinários repetitivos com repercussão geral, nos quais não tenha havido declaração de inconstitucionalidade de ato normativo, basta o quórum de maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal" [2]. Com isso, rechaçou expressamente a aplicação analógica do quórum do artigo 27 da Lei nº 9.868/1999 aos casos de alteração jurisprudencial em recurso extraordinário julgado com repercussão geral, quando não envolvida declaração de inconstitucionalidade de ato normativo.

A partir disso, observou-se não haver um regime jurídico harmônico para a atribuição de efeitos prospectivos à decisão de inconstitucionalidade.

É certo que a escolha de maiorias qualificadas pelo legislador significa, na prática, a tutela da manutenção do status quo, o que revelaria uma preferência pela não modulação de efeitos da decisão. Já a maioria absoluta revela certa neutralidade e/ou flexibilidade, permitindo que a metade mais um dos membros julgadores opte pela não retroação da decisão de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, a depender do caso.

O que desejamos ressaltar é a necessidade de que, de lege lata ou de lege ferenda, seja resolvida a questão do quórum a ser aplicado às hipóteses de limitação dos efeitos da decisão em controle abstrato e em controle concreto, com ou sem declaração de inconstitucionalidade e/ou com mudança de jurisprudência. Sendo a modulação um instituto desenhado para defesa da segurança jurídica, nada mais inseguro do que a existência de diversos quóruns utilizados de forma casuística.

Na sequência, ainda no tocante ao aperfeiçoamento e sistematização da modulação dos efeitos das decisões judiciais, como segundo ponto, acreditamos ser indispensável uma abordagem relativa às ressalvas à própria limitação da retroatividade.

Verifica-se que as ressalvas têm sido feitas de forma cada vez mais frequente e complexa, de acordo com proposta do relator ou de outro membro do colegiado, excluindo ou incluindo diferentes situações fático-jurídicas sem que seja possibilitada a participação das partes  ou mesmo da sociedade civil  nesse processo decisório. Em relação à frequência, nos últimos cinco anos, a Corte modulou com ressalvas em diversos casos em matéria tributária, o que ilustra a necessidade de fundamentação expressa das ressalvas, sob pena de manutenção de um sistema que, além de disfuncional, goza de pouca transparência e gera situações anti-isonômicas.

Sob esse ângulo, e consideradas as inúmeras formas de modulação adotadas pelo STF, merecem atenção as ressalvas em relação àqueles que vieram a ingressar com medidas, sejam elas judiciais ou administrativas, na defesa de seus interesses. Para tais situações, muito embora o Supremo venha a dotar de eficácia prospectiva as suas decisões, fazendo com que os seus resultados sejam observados a partir da prolação da decisão ou de um momento futuro, tem-se observado nas ressalvas a relativização dos efeitos ex nunc da modulação.

Assim, se temos na modulação a exceção à regra, é possível de se afirmar que ao realizar ressalvas, temos a exceção à exceção, abrindo espaço para que a Corte ajuste os efeitos prospectivos de acordo as peculiaridades de cada caso.

Tal juízo revela uma preocupação maior com as situações concretas, representando a busca pela convivência harmônica dos sistemas concentrado e difuso de controle de constitucionalidade, de tal modo que o Supremo, ao apreciar a validade de determinado preceito em face da Constituição com eficácia prospectiva, resguarda eventuais decisões já proferidas pelas demais instâncias do Poder Judiciário. Protege-se o direito de acesso à justiça, evitando que aqueles que buscaram no Judiciário a tutela tenham as expectativas frustradas.

Mas, se de um lado temos a proteção ao acesso à justiça, a adoção excessiva de ressalvas à modulação também impõe tensões sistêmicas. A generalização do afastamento dos efeitos ex nunc pode adicionar um risco de ruptura com a isonomia que se pretende alcançar com a modulação erga omnes. Verifica-se também o risco em estimular a litigiosidade, com o ajuizamento de ações às vésperas do julgamento pelo Supremo. E, por fim, como consequência do quadro, têm-se o próprio risco de esvaziamento dos efeitos que a modulação pretende realizar.

Entendemos que as ressalvas devem receber maior atenção e seriedade por parte do Tribunal, com a exposição das razões que motivaram, naquele caso específico, o afastamento de eventuais efeitos pró-futuro. É importante que a Corte se debruce sobre os diferentes cenários e fundamente adequadamente essas decisões, o que impõe a necessária participação de todos os atores envolvidos.

E isso nos conduz ao terceiro e último ponto desta análise, que diz respeito à resolução de mérito e respectiva ausência de deliberação imediata acerca da modulação de efeitos dessa decisão.

Ressaltamos que as propostas para mitigação dos efeitos danosos da mora na apreciação da modulação de efeitos da decisão final são de lege ferenda, demandando atuação do Poder Legislativo. Antes, porém, é necessário consignar que, atualmente, o pedido de modulação é desejável, ainda que seja subsidiário e/ou feito ad argumentandum tantum.

Caso as partes em seus recursos extraordinários ou iniciais (no caso de ações de controle concentrado), em suas contrarrazões ou em qualquer manifestação, requeressem, subsidiariamente ou alternativamente, a atribuição de efeitos ex tunc ou ex nunc à decisão do Tribunal, expondo desde já os motivos pelos quais entendem por este ou por aquele, a Corte enfrentaria menos óbices fático-jurídicos para a apreciação da modulação na mesma oportunidade em que analisada a matéria de fundo. Ocorre que o interesse direto na modulação surge, via de regra, após a conclusão do julgamento, o que dificulta à Corte deter, no fim da deliberação, os elementos fáticos e jurídicos necessários para proceder a eventual juízo de modulação.

Assim, não são raras as vezes em que o Supremo deixou tal apreciação para um momento posterior, merecendo destaque, sob esse ângulo, o julgamento do RE 574.706, a partir do qual verifica-se uma crescente tendência do uso dos embargos de declaração para essa finalidade.

Todavia, essa prática, principalmente em matéria tributária, mostra-se extremamente prejudicial à segurança jurídica e o próprio RE 574.706 é um bom exemplo desse efeito pernicioso, tendo em vista o longo intervalo entre a fixação da tese de julgamento e a decisão sobre a modulação (quatro anos).

Essa situação decorre do fato de que tratamos o julgamento da modulação como parte dissociada do julgamento de mérito. E esse é o ponto que gostaríamos de enfatizar: modulação de efeitos é parte do mérito da demanda.

Entendemos que a análise de mérito apenas está finalizada quando houver a manifestação do Tribunal acerca de quando o acórdão produzirá efeitos. Observa-se que a não manifestação imediata sobre a modulação de efeitos — ao menos em relação aos casos tributários – vem causando um cenário de instabilidade extrema para os Tribunais de segundo grau aplicarem as rationes decidendi definidas pelo STF.

Se parece inadequada a apreciação imediata da modulação sem a consideração de todos os elementos necessários para um juízo fundamentado, a prorrogação por tempo indeterminado também amplia o cenário de incertezas. Imbuídos de tal preocupação, sugerimos que a votação da modulação se dê por meio de um incidente próprio a ser necessariamente instaurado após a análise da controvérsia de fundo e fixação das respectivas teses de julgamento. A proposta de instrumentalização dessa regra será feita a seguir.

Ao fim do julgamento da controvérsia, com a fixação do dispositivo da decisão, e logo após a fixação de tese (em repercussão geral ou outras hipóteses), o Tribunal deverá se manifestar sobre se haveria ou não motivos para a modulação de efeitos, seja em decorrência de mudança de jurisprudência, seja por outras razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social. Nesse momento, entendendo, por maioria absoluta, que haveria motivos para ensejar a atribuição de efeitos prospectivos, será instaurado um incidente de modulação de efeitos e o julgamento da ação ou do recurso será integralmente suspenso. Isso evitaria que os Tribunais a quo aplicassem as rationes decidendi sem que tenham sido definidos os efeitos temporais da decisão, como ocorreu no RE 574.706 e se repete no RE 1.072.485 [3].

As partes, inclusive os amici curiae já admitidos, bem como outras associações de classe e representativas de setores da economia e órgãos técnicos (públicos ou privados), terão, então, um prazo razoável para se manifestar sobre a modulação, já adiantando as razões e fundamentos pelos quais são a ela contrários ou favoráveis. Poderão apresentar dados sobre os impactos econômicos dessa decisão, estudos, pareceres e propostas de resolução, contendo ou não ressalvas. As entidades e órgãos que se manifestarem nos autos pela primeira vez nesta fase serão admitidos ou não pelo relator na condição de amicus curiae, em decisão irrecorrível.

Após essa fase instrutória, o relator deverá liberar o feito para inclusão em pauta, com prioridade sobre os demais, considerando que se encontra pendente apenas a produção de efeitos temporais do julgado. Em face do julgamento do incidente de modulação, poderão ser opostos embargos de declaração apenas nas hipóteses previstas no artigo 1.022 do CPC/2015, os quais não terão efeito suspensivo.

Do mesmo modo, em face da decisão que, após a resolução do mérito e fixação de tese, denegar a instauração do incidente de modulação de efeitos, poderão ser opostos embargos de declaração, que também não terão efeito suspensivo, mas deverão ter prioridade para liberação e inclusão em pauta, sendo sugerido o prazo de duas sessões ordinárias para seu julgamento. Além de conferir segurança jurídica e transparência, essa proposta a ser implementada de lege ferenda devolve aos embargos de declaração os seus efeitos ordinários, retirando deles a função de instar a Corte a se manifestar sobre a modulação.

Com essa sugestão, pretende-se possibilitar que os interessados pelos desfechos possíveis, quanto à modulação, possam se manifestar de forma isonômica, ao contrário do que ocorreu no RE 714.139 [4].

Acreditamos que essas singelas ideias poderão contribuir para o aperfeiçoamento da jurisdição constitucional brasileira, tendo como base as principais controvérsias relativas à modulação temporal de efeitos das decisões surgidas a partir de julgamentos em matéria tributária.


[1] STF. Pleno, RE nº 586.453. Relator ministro Ellen Gracie, redator p/ acórdão ministro Dias Toffoli, julgado em 20/02/13. DJ de 06/06/13.

[2]STF. Pleno. Re n° 638.115-ED-ED, relator ministro Gilmar Mendes, julgados em 18/12/19, DJ de 08/05/20.

[3] STF, Tribunal Pleno, RE 1.072.482, relator ministro Marco Aurélio, DJe 02.10.2020.

[4] Como amplamente noticiado, após a finalização da resolução da matéria de fundo nesse caso, o Presidente suspendeu o julgamento para evitar que a tese de repercussão geral fosse aplicada sem que tivesse havido deliberação de modulação de seus efeitos. Ocorre que o redator para acórdão, ministro Dias Toffoli, se reuniu apenas com os representantes de uma das partes envolvidas na demanda, os Estados, decidindo, após, pela modulação, em desconsideração ao contraditório. Notícia disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=477591&ori=1. Acesso em 11.04.2022.

Autores

  • é doutoranda e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), sócia do escritório Mannrich e Vasconcelos Advogados, ex-assessora de Ministro no STF, cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem e professora da pós-graduação lato sensu em Direito Tributário do IDP.

  • é pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha), doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); e especialista em Direito Tributário pela FGV/SP. Foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal para assuntos tributários. Advogado.

  • é advogada, doutoranda em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ex-Assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal, autora do livro "Federalismo Fiscal Brasileiro e as Contribuições" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017) e cofundadora do coletivo jurídico Elas Discutem.

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