Defesa da Concorrência

Plataformas digitais no Brasil: um itinerário em franca construção

Autores

  • Mauricio Oscar Bandeira Maia

    é advogado parecerista na área de Direito Concorrencial e auditor do Tribunal de Contas da União. Foi Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica entre 2017 e 2021. É Mestre em Direito pelo Instituto de Direito Público (IDP).

  • Edson Dias

    é ex-chefe de assessoria técnica do Cade e advogado do Vilanova Advocacia.

18 de abril de 2022, 8h00

Em se tratando de novas mídias e plataformas digitais, há, no âmbito da defesa da concorrência mundial, um cenário de intensa reflexão. No Brasil, em especial, observa-se um itinerário em franca e acelerada construção na constante busca por efetividade da política de defesa da concorrência, especialmente capitaneado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Para compreender, ainda que panoramicamente, o modo pelo qual o conselho vem lidando com os múltiplos e diversificados obstáculos impostos pelo tema em epígrafe no país, é necessário, antes, explorar as trilhas iniciais pelas quais o debate se apresentou e se desenvolveu em terras nacionais e, em especial, algumas referências norteadoras da atuação da autoridade da concorrência brasileira a respeito dessa ou dessas matérias.

Spacca
Em relação à economia digital, houve, entre 2020 e 2021, três importantes marcos a serem destacados. O primeiro deles, em meados de 2020, é a elaboração e divulgação ampla do Documento de Trabalho (DT) intitulado "Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados [1]", produzido pelo Departamento de Estudos Econômicos (DEE) do Cade. Dito DT consistiu em detalhado benchmarking internacional voltado a compreender como melhor adaptar o conselho aos desafios da economia digital. Assim, foram revisadas as principais publicações de autoridades e importantes centros de pesquisa quanto ao tema de modo a sumarizar ao Cade e à sociedade a visão de seus pares internacionais, bem como, enquanto decorrência disso, aprimorar e estruturar a atuação da autoridade brasileira nessa seara.

Algumas conclusões aduzidas pelo referido DT, conquanto provisórias, auxiliam na compreensão mais geral da concorrência em mercados digitais. Nesse sentido, o documento indica de que forma a confluência das características mais marcantes das plataformas digitais, ainda que secundariamente também presentes em mercados tradicionais   fortes efeitos de rede e economias de escala, importantes economias de escopo por conta do papel desempenhado por dados, baixíssimos custos marginais e escopo global assiste à consolidação do poder de mercado em pouquíssimos agentes, permitindo, assim, que estes aufiram rendas sem serem ameaçados, de modo crível, por novos competidores.

O documento também apresenta a maneira como dados de participação de mercado são, ao menos parcialmente, proxys inadequadas de poder de mercado de plataformas multilados, em especial quando um dos lados apresenta preço zero. Aduz, ainda, como características específicas, a exemplo de retornos crescentes de escala, externalidades de rede e de dados e outros implicam, a contrario sensu, em possível existência de poder de mercado mesmo em mercados fragmentados. Isso porque o lock-in (ou aprisionamento) de um determinado tipo de consumidor ou cliente fornece à plataforma poder de mercado sobre esse grupo, o que, associado ao poder de intermediação, torna a plataforma um agente com quem as partes precisam contratar ("unavoidable trading partner"). Essa capacidade é ainda mais relevante quando as empresas controlam dados necessários para o desenvolvimento de certos serviços ou produtos. Tais características permitem à plataforma adentrar mercados adjacentes, por vezes de forma passível de ser considerada abusiva.

Nesse quadro, conclui-se, dessa análise disposta no DT em referência, que o poder de mercado em segmentos digitais é capaz de se manifestar em diversas formas, intensidades ou modalidades. Não há, por conseguinte, um único fator-chave que deva ser examinado ou que garantiria, sozinho, o acerto da compreensão da dinâmica competitiva desses setores digitais por parte das autoridades antitruste. Ao contrário, estas autoridades precisam estar atentas às particularidades de cada mercado relevante em apreciação, esquadrinhar cada caso detalhadamente, além de considerar como eventuais vieses e outras características da economia comportamental podem proteger determinadas plataformas da competição.

O segundo importante marco foi concluído ainda mais recentemente e, apesar de tratar de um escopo similar de questões relacionadas à economia digital e à defesa da concorrência, há foco distinto no trabalho. Somente possível em razão do estudo anteriormente comentado e, em alguma medida, existindo certa continuidade entre ambos, em agosto de 2021, foi elaborado e publicizado um Caderno do Cade intitulado "Mercados de Plataformas Digitais" [2], igualmente produzido pelo Departamento de Estudos Econômicos. O aludido material  12º segundo da série "Cadernos do Cade"  — consistiu em documento vocacionado a demonstrar como e a partir de quais critérios e balizas foram empreendidas análises concorrenciais pelo Cade em processos de atos de concentração econômica e apurações a respeito de condutas anticompetitivas nos mercados de plataformas digitais.

É, nesse contexto, um amplo e multifacetado repositório com o qual se pode compreender a evolução e a consolidação da matéria no Brasil, o tratamento do Cade em uma vasta gama de situações envolvendo temas afeitos à economia digital e as metodologias e padrões de análise que, a depender do caso concreto, foram formulados ou reformulados pela autoridade antitruste brasileira a fim de melhor se adequar aos desafios específicos e substancialmente novos desse tipo de apreciação. Desse modo, o caderno em referência congrega, concomitantemente, a jurisprudência do Cade entre 1995 e 2020 atinente a mercados de plataformas digitais, mas, também, os conceitos e ferramentas de análise úteis a casos atuais ou futuros que tangenciem a temática.

Também aqui, algumas conclusões, ainda que provisórias, auxiliam na compreensão mais geral da concorrência em mercados digitais. Um exemplo singular de sua utilidade é, por exemplo, sua definição de plataformas digitais.

Como resta assente no caderno, não há consenso sobre a definição de plataformas digitais, mas, de forma geral, estas seriam aquelas estruturas intermediárias que conectam dois ou mais grupos de usuários e que se beneficiam de efeitos de rede diretos e indiretos. A expressão "plataforma online" descreve, portanto, uma gama de serviços disponíveis na internet, incluindo e-commerce, mídias sociais, mecanismos de busca, aplicativos, sistemas de pagamento, serviços que compreendem a chamada economia "colaborativa" e outros. Contudo, o estudo avança ao especificar, ainda que provisoriamente e tendo em conta possíveis ajustes futuros, que uma plataforma online é definida como um serviço digital facilitador de interações entre dois ou mais conjuntos distintos e interdependentes de usuários (empresas ou indivíduos) que interagem via internet.

A importância da definição, para além do elevado interesse acadêmico, decorre do fato de possibilitar ao Cade e à sociedade civil em geral avaliarem quais atos de concentração econômica e quais apurações a respeito de condutas anticompetitivas podem ser agrupados como relativos a mercados de plataformas digitais e, ato contínuo, ser examinados comparativamente. É, a partir disso, um importante ato fundador do debate no Brasil em diálogo com as discussões internacionais, que se torna oportuno buscar conclusões que, respeitando as especificidades do caso concreto, retomem elementos e soluções presentes em algum outro caso anterior enquadrado dentro dos limites estipulados e intrínsecos à definição em comento.

Para que se compreenda adequadamente como vem se estruturando dito debate em território brasileiro, é preciso, ainda, que se explore e se contextualize, também, importante iniciativa diretamente ligada às plataformas digitais. Nesse caso, conforme subsequentemente mais bem descrito, o Cade atuou preventivamente, no início de 2021, de modo a que o setor em comento permanecesse competitivo, bem como, a partir de intervenção pontual, sinalizou a outros setores similares a sua postura de acompanhar e monitorar detidamente a evolução dos mercados e, outrossim, a sua prontidão para interceder, se necessário, em prol da promoção da concorrência também quando se tratar de plataformas digitais.

Como terceiro marco, indica-se, em sequência, alguns dos principais pormenores públicos da investigação em andamento no Inquérito Administrativo nº 08700.004588/2020-47 [3] e, portanto, ainda longe de delimitar, de forma mais definitiva, os elementos centrais da apuração em face da Ifood.com Agência de Restaurantes Online S. A (iFood). A Superintendência-Geral do Cade (SG/Cade) impôs, em março de 2021, medida preventiva ao iFood. Com isso, a empresa ficou impedida de firmar novos contratos com acordos de exclusividades e, igualmente, de incluir cláusulas dessa natureza em contratos já celebrados sem essa limitação.

A investigação teve início a partir de denúncia formulada pela concorrente Rappi Brasil Intermediação de Negócios Ltda. (Rappi Brasil) em setembro de 2020. A empresa alegou que o iFood tem posição dominante no mercado de pedidos online de comida e que se beneficiaria dessa condição para adotar práticas restritivas à concorrência, por meio da celebração massiva de contratos de exclusividade com restaurantes parceiros. Ainda segundo a Rappi, a estratégia adotada pelo iFood criaria forte incentivo à adesão dos restaurantes ao modelo de negócio restritivo, o que ocasionaria fechamento do mercado para plataformas concorrentes. Além disso, sustentou que tais condutas teriam potencial de causar barreiras à entrada de novas empresas no setor, principalmente porque seriam utilizadas cláusulas contratuais de longo prazo e aplicadas multas pela rescisão da exclusividade prevista contratualmente.

Tendo em vista que a adoção de cláusulas de exclusividade por agentes com essas características tem alto potencial de prejudicar a concorrência entre as empresas, a SG/Cade optou pela concessão da medida preventiva supracitada, com o intuito de preservar as condições competitivas do setor. Ademais, nos termos da SG/Cade, soma-se a isso o fato de que o iFood estaria firmando contratos majoritariamente com restaurantes considerados estratégicos, os quais atuariam enquanto chamariz de clientes para as plataformas. As exclusividades estariam sendo firmadas, inclusive, mesmo após a abertura do IA pelo Cade, circunstância essa certamente impulsionadora da adoção da medida preventiva.

Detalhando os elementos fundamentais da medida de urgência deferida em face do iFood, ainda em vigor, ressalta-se que a empresa em destaque não pode firmar novos contratos contendo a indigitada exclusividade. Além disso, a SG/Cade também estabeleceu que o iFood não deverá alterar contratos já celebrados sem cláusula de exclusividade, para fazer constar a previsão restritiva, até a decisão final do caso. Ainda, ressalta-se que, no escopo da medida preventiva, a SG/Cade definiu que o iFood poderá manter os contratos com cláusula de exclusividade já firmados com parcela de restaurantes que integram a sua carteira. No entanto, ao término da vigência, esses contratos somente poderão ser renovados com o dispositivo de exclusividade caso seja interesse de ambas as partes, e desde que a empresa observe o limite de um ano de duração (sem limite de renovações por igual período), até decisão final sobre a ilicitude ou não da conduta pelo Cade. A medida preventiva permanece, em face da continuidade das investigações em sede de IA, em pleno vigor.

Isto posto, tem-se que o referido IA ainda em andamento é, em continuidade aos esforços de sistematização e consolidação do debate a respeito da economia e das plataformas digitais no Brasil representados pelo DT e pelo Caderno, um claro desdobramento do empenho contínuo do Cade em fortalecer sua atuação e seu conhecimento desses setores. Não se sabe ao certo e nem haveria como sabê-lo em se tratando de apuração em seus estágios ainda iniciais o resultado do IA que atualmente examina eventuais condutas anticompetitivas atinentes ao setor de serviços de pedido e entrega online de comida, mas é possível perceber, desde já, que a autoridade brasileira tem um itinerário em franca e acelerada construção.

Contemporaneamente, pensar em políticas de defesa da concorrência é, sob risco de inefetividade em caso de inobservância disso, pensar sobre como plataformas digitais afetam a dinâmica concorrencial, suscitando ou não ajustes da política. Nesse sentido, o referido IA e, em especial, os efeitos potencialmente benéficos decorrentes da medida preventiva em referência, consumam, por ora, a trajetória brasileira em busca de aprimorar seu entendimento a respeito do que significa preservar e promover a concorrência nesse brave new world.

Assim sendo, algumas breves conclusões do itinerário brasileiro. Adotou-se aqui três marcos, elaborados e publicados entre 2020 e 2021, dentre aqueles aos quais se considera mais importantes, mas vários outros talvez pudessem também ser adotados a partir de outros critérios de escolha. Selecionar e descrever DT, caderno e IA, conforme detalhado nos parágrafos anteriores, foi opção intencional em face da natureza profundamente interligada entre eles: cada um desses limites transpostos redefiniu os anteriores, bem como oportunizou o próximo avanço.

São, portanto, devedores dos atributos dos objetos aos quais buscam capturar e representar: mercados e plataformas digitais, em sua dificuldade de serem caracterizados e estudados sob a ótica tradicional da defesa da concorrência, exigem, justamente por isso, que as autoridades da concorrência busquem compreendê-los e incorporá-los em sua gramática. Assim, em sua capacidade de inovação disruptiva e paradigmática, com eventuais benefícios a todos os atores implicados, as plataformas digitais vêm gradativamente se transformando, também, em elemento galvanizador de mudanças radicais de parte considerável do arcabouço teórico-prático utilizado por autoridades da concorrência em suas análises, de sorte que toda conclusão nessa seara é, espantosa e brilhantemente, provisória: estas, inclusive.


[1] Versão integral disponível aqui

[2] Versão integral disponível aqui 

[3] Versão pública integral disponível aqui

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