Reflexão sobre o momento em que o Quixote foi armado cavaleiro
17 de abril de 2022, 8h00
Há parte de nós mesmos que não compreendemos até que lermos o Quixote. Com essa forte imagem o crítico norte-americano Harold Bloom nos lembra a humanidade do cavaleiro da triste figura. Esse lado humano do Quixote consistia justamente na tênue divisão que fazia entre realidade e fantasia. Quem de nós não fantasiamos o tempo todo? Como seria a realidade sem algum delírio que nos acene com alguma esperança? Não há nada, absolutamente nada, que nos impeça de sonhar.
Prático, o dono da venda perguntou ao Quixote se ele trazia dinheiro. O quase cavaleiro respondeu que não. Afirmou que sinceramente não se lembrava de ter lido nos tomos de cavalaria se cavaleiros andantes carregassem o vil metal. Sentindo-se o padrinho do Quixote, o dono da estalagem observou que era necessário que se carregasse dinheiro, camisas limpas e algum unguento, para socorrer feridas que ocorressem. Tentou colocar um limite na fábula que o Quixote vivia.
O Quixote deixou então suas armas sob uma pia. Dava voltas. Em vigília, aguardava a passagem da noite. Para abastecer-se de água um peão que por lá passava retirou as armas do Quixote. Enfurecido, Quixote atacou o intruso, com violência, em desagravo, com a mente em Dulcinéia. Não admitiu tamanha ousadia por parte do peão. Revidou. As pessoas que lá estavam atiraram pedras no cavaleiro que tomavam por maluco. A saraivada só terminou com a intervenção do estalajadeiro. José Veríssimo, um precursor da crítica literária moderna no Brasil, enfatizava que o Quixote era o protetor da fraqueza humilde contra a violência forte.
Realizou-se a cerimônia. O estalajadeiro segurava um livro de registro de vendas, que tomaram por um livro sagrado. Como mandava o ritual, golpeou o Quixote. Duas mulheres (Tolosa e Moleira), respectivamente, providenciaram a espada e as esporas, que o Quixote já trazia consigo. Agradecido, o cavaleiro determinou que a partir de então as mulheres tratassem seus pais por "Dom", e exigissem que fossem tratadas por "Donas". Estendia a elas privilégios de nobreza. Percebe-se a grandeza dessas mulheres, no acolhimento dos delírios daquele homem de quem todos riam. Chama a atenção no Quixote, lembra-nos San Tiago Dantas, a repercussão múltipla que suas aventuras projetavam nos demais personagens da narrativa. O Quixote não fala para si. Não há monólogos. É sociável, aberto, convive com todos, ainda que nos limites de sua suposta insensatez.
Armado cavaleiro, o Quixote deixou a estalagem em busca de aventuras. O dono do lugar nada lhe cobrou. Sentia-se aliviado com a partida daquela estranha figura. Nas palavras de Unamuno, o Quixote estava preparado para defender os serviçais e os humildes. Uma opção certa, humana, de uma espécie humana extinta, ou quase extinta.
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