Opinião

Justiça negocial é uma petição de princípio

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16 de abril de 2022, 17h06

"Il reo pel volgo è il colpevole. Pel giurista il reo può essere innocente. Ed è grave errore quello di chi, per una prevenzione funesta, osi confondere il senso giuridico di questa denominazione col suo volgare significato" [1].

Durante muito tempo, acreditou-se que a gravidade da acusação autorizaria a Justiça a ignorar as formalidades do processo e os princípios processuais. O raciocínio era resumido no adágio in atrocissimis leviores conjecturae sufficiunt. Quando a imputação ao réu é atroz, que revolta a consciência e piedade humanas, não pode o réu, diz esse adágio, ser tratado da mesma maneira que os demais réus, isto é, os réus presumidos inocentes, com as mesmas garantias do devido processo. A acusação grave e atroz, então, já começa a ser tratada como verdadeira pelo só fato de existir como tal. A Justiça, nesses casos, é lançada em círculo vicioso do qual ela raramente consegue sair, como anotou Malatesta:

"E aqui os pregoeiros de semelhantes teorias perdiam-se logo nos caminhos insidiosos do sofisma. Falavam de delinquentes da pior espécie e de delinquentes que jogam com a impunidade, e falando assim, não reparavam que tomavam como verificado aquilo cuja verificação se discutia; não reparavam que, por essa forma, estando em face de simples arguidos eles os consideravam como réus, a priori, antes de qualquer apreciação. Devendo, em outros termos, estabelecer o que seria necessário para a verificação da criminalidade de um acusado, começavam logo por considerá-lo criminoso, perdendo-se, assim, em um impudente círculo vicioso. E é cobrindo-se com semelhantes sofismas, como com um nobre manto, que a justiça humana tem feito por vezes cair cabeças inocentes, sem pensar, finalmente e sobretudo, que uma só condenação injusta é mais fatal para a tranquilidade humana que dez absolvições não merecidas!" [1].

Veja a crueldade da petição de princípio: a acusação, que deveria ser o ato fundamental que deflagra o mecanismo sagrado de apuração dos fatos  o devido processo legal  se impõe como o ato que elimina esse mecanismo. De fato, quando a imputação contém um crime grave, com uma narrativa chocante, com detalhes horrendos, a acusação, ainda mais quando feita incisivamente e com publicidade opressiva, acaba se resolvendo em uma petição de princípio: é já dar como provado uma afirmação  a imputação criminal  cuja veracidade foi posta a ser verificada justamente com a acusação.

Atualmente, o novo modelo de justiça negociada vem ressuscitando esse modo de raciocinar, mas com o "sinal trocado": para as acusações mais "leves", o processo pode ser abreviado ou até suprimido. A doutrina, ao aceitar passivamente esse tenebroso modo de fazer justiça, não admite imediatamente estar fazendo o mesmo que os antigos que adotavam aquele estranho adágio, quando na realidade está, não se dando conta que a petição de princípio é exata e rigorosamente a mesma: dar como provado algo que se precisa comprovar pelo devido processo.

Pouco importa que a acusação seja "grave" ou "leve", o devido processo legal deve funcionar como condição sine qua non para a comprovação de toda e qualquer acusação, pois é justamente pelo devido processo  e somente por ele  que se saberá se essa acusação, seja qual for o crime imputado, é ou não procedente, como ensinou Benjamin Constant:

"O processo deve ser observado em sua inteireza. As salvaguardas são estabelecidas para a garantia dos fatos e para evitar que pessoas inocentes sejam punidas! Mas quando a questão é de algum crime horrendo e, consequentemente, envolve desgraça total e morte, todas as salvaguardas tutelares são suprimidas com uma só penada, o código penal é fechado e as formalidades são reduzidas! É como se se pensasse que quanto mais séria a acusação, mais supérfluo seu exame. Poder-se-ia argumentar que apenas dos bandoleiros, assassinos e conspiradores seria tirado o benefício do devido processo. Mas antes que os identifiquemos como tal, os fatos precisam ser determinados. Ora, o que é o devido processo senão o melhor meio para a determinação dos fatos? (…). Alguns diriam que podemos distinguir por meio de sinais externos e infalíveis, antes do julgamento ou da inquirição, os inocentes dos culpados, os que deveriam desfrutar da prerrogativa do devido processo dos que seriam privados dele, não é mesmo? Porém, nesse caso, a autoridade judiciária, de qualquer tipo que fosse, não teria significado algum. É exatamente porque não existem tais sinais que o devido processo é necessário; é só porque o devido processo pareceu o único meio de distinguir os inocentes dos culpados que todos os povos livres e humanos demandaram a sua institucionalização" [2].

A rigor, a acusação, enquanto acusação, reclama uma desconfiança inicial para que o devido processo legal tenha algum valor como garantia do cidadão. É como se a veracidade da acusação, nada obstante o recebimento da denúncia, tivesse de ser desacreditada o tempo todo pelo juiz enquanto ela não for cabal e irretorquivelmente provada pelo acusador. É isso, afinal, o que a presunção de inocência significa: a acusação, e não o réu, é que deve ser vista com desconfiança. A nossa repulsa à justiça negocial é justamente que ela perverte toda essa lógica sagrada do processo: ela apresenta a acusação como um ato em favor do qual deve vigorar uma espécie de presunção de veracidade, e contra a qual o acusado não teria nada a fazer senão concordar com ela e obter uma "melhora" na sua situação processual, afinal, culpado ele já é. O acusado, ainda não comprovado culpado, faz o acordo como culpado para "evitar o processo", como se esse evitar o processo não fosse precisamente suprimir aquilo que é para o Estado condição sine qua non para saber… se a acusação era verdadeira. Pura petição de princípio! É aceitar a acusação como provada pelo só fato de ela ter sido lançada.

A justiça negociada, como se percebe, traz em sua essência uma insuportável inconstitucionalidade, pois suprime a mais sagrada de todas as garantias fundamentais da pessoa humana: a de que ninguém será considerado culpado até prova em contrário. Como explica Pisapia, o alto significado moral e civil da presunção de inocência é buscar evitar "che per il solo fatto di essere soggetto al processo, l’imputato possa essere considerato colpevole o quasi colpevole" [3]. A justiça negociada faz exata e precisamente isto: faz coincidir a noção jurídica de "réu" com a noção vulgar de "réu", e então considera culpado o réu pelo só fato de ser réu, por meio de uma visão que faz coincidir o interesse repressivo não com a busca da verdade através do contraditório, mas com o aceitação a priori e unilateral de uma acusação não efetivamente submetida ao escrutínio sine qua non do devido processo, e, portanto, ainda não provada. E nem se alegue que essa justiça negociada, por exigir a participação de defensor e a homologação judicial, respeita assim o devido processo legal, pois, como argutamente ponderou Geraldo Prado, o núcleo da justiça negociada, nas suas mais variadas formas (transação penal, acordo de não persecução, acordo de delação, suspensão condicional do processo), "consiste exatamente em o imputado ‘abrir mão’ do devido processo legal" [4].

Negar a presunção de inocência nos crimes leves não é menos grave do que negá-la nos crimes graves, pois o que ela está a determinar é um valor a priori que guia a política repressiva de um determinado Estado. Como anotam Badaró e Lopes Júnior [5], ela é antes de tudo um princípio político. Ela tem o seu valor pré-processual: justamente o de se exigir, para qualquer acusação que recaia sobre a pessoa humana, o devido processo para que o Estado possa considerá-la culpada. Os Estados que pretendem instaurar uma política repressiva de perseguições e condenações sabem que precisam começar por enfraquecer esse valor no seu aspecto político, cuja consequência necessária desse enfraquecimento é a supressão do devido processo.

Nada obstante a flagrante inconstitucionalidade da justiça negociada, por suprimir o devido processo legal inteira e descaradamente, ela vem sendo recebida com um irrefletido entusiasmo, muito menos por ser algo bom do que por ser algo novo. Se é verdade que o misoneísmo é prejudicial ao progresso humano, não se deve esquecer que aceitar o novo pelo novo também pode ser prejudicial a esse progresso. Vale adotar, nesse aspecto, o alerta de Manzoni: "Nem sempre o que vem depois é progresso" [6].


[1] CARRARA, Francesco. Programma del corso del Diritto Criminale, Vol. II, Quinta Edizione, Lucca, Tipografia Giusti, 1877, p. 415.

[2] MALATESTA. A lógica das provas em matéria criminal, Trad. J. Alves de Sá, Livraria Teixeira, São Paulo, 2ª Edição, p. 94.

[3] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Trad. Joubert de Oliveira Brízida, Editora Topbooks: Liberty Classics, Rio de Janeiro, 2007, p. 269. (sem destaque em itálico no original)

[4] PISAPIA, Gian Domenico. Compendio di Procedura Penale, 2ª Edizione, Cedam, Padova, 1979, p. 79.

[5] PRADO, Geraldo. Transação penal, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 224 apud, Vinícius Gomes de Vasconcellos, Colaboração premiada no processo penal, 3ª Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2020, p. 42.

[7] "Non sempre ciò che vien dopo è progresso". (MANZONI, Alessandro. Sentenze e pensieri, Tipografia Pio Istituto Turazza, Treviso, 188, p. 194)

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