Seguros Contemporâneos

Para além do sandbox regulatório

Autor

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

14 de abril de 2022, 8h00

Pedro Alvim, em seu clássico "O contrato de seguro" [1], ensinou e ainda ensina os fundamentos pertinentes a esse tipo contratual a muitas e muitas gerações. Com ele aprendemos, entre tantos outros, aspectos caros à subscrição de risco — o dever de prestar informações na fase precontratual e, mais especificamente, a propósito da importância da máxima boa-fé, além do dever de, por parte de segurados/tomadores, informar à seguradora prontamente circunstâncias capazes de agravar consideravelmente o risco coberto.

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Aos alunos e alunas, a dogmática desse contrato sempre foi apresentada de maneira a enfatizar que a assimetria de informação entre as partes pesava contra as seguradoras, que se viam submetidas ao referido dever de prestar informações completas e verídicas por parte dos proponentes, cujo descumprimento acarretaria o aperfeiçoamento dos seus contratos de forma incorreta, baseando-se em dados não correspondentes à realidade fática.

O massivo advento das novas tecnologias a esses contratos — instrumentos como a internet of things, big data, inteligência artificial, emprego de algoritmos, e.g, vem revolucionando o modus operandi que, por séculos, caracterizou a feitura/operação dos contratos de seguros. Nada obstante a relevância história da obra de Pedro Alvim, é como se, ao olhar para o futuro, pudéssemos inferir que ela não mais será capaz de lidar com as controvérsias que, fatalmente, surgirão, o que nos desafia a buscar critérios hábeis à sua solução.

Melhor explicando a arrojada afirmação, imaginemos que as seguradoras, baseadas em dados disponíveis nas grandes redes ou providos pelas big techs, saibam, em tempo real, a respeito de todos os hábitos de vida dos seus segurados. O que comem, os exercícios que praticam, a velocidade média de seus automóveis, o número de horas que dormem, se consomem drogas, bebidas, fumo etc. Seria isso utópico? Se, no passado, o pêndulo pertinente à assimetria de informação pesava contra as seguradoras, de agora em diante parece que a mecânica inversa é que prevalecerá [2].

Em outra sede, por ocasião de interessante evento promovido pela FGV Direito Rio, tivemos a oportunidade de estudar o primeiro sandbox regulatório organizado pela Susep que, a bem da verdade, correspondeu ao primeiro sandbox criado no país em todos os seus mercados regulados, antes mesmo da CVM ou do Bacen [3].

A iniciativa pioneira da Susep foi inspirada pelo berço dos sandboxes regulatórios a nível mundial, aquele criado pela FCA (Financial Conduct Authority) em 2016 [4].

Relembrando as principais características do sandbox criado pela Susep, vale dizer que ele é exclusivo para empresas concebidas à atividade de seguradora, ou seja, atividades outras, ainda que integrantes da cadeia produtiva dos seguros, não se encontram contempladas por esse novel modelo regulatório, característica que se aparta do sandbox londrino [5].

Ilustrando a assertiva anterior, imaginemos que uma determinada empresa tenha desenvolvido, por intermédio de tecnologias novíssimas, uma maneira mais eficiente de absorver dados e regular sinistros, independentemente de burocracia, preenchimento de formulários, envio de documentos, baseando-se no cruzamento de dados consentidos pelo segurado. Dita empresa, como se disse, dedicada apenas à regulação de sinistros, não poderia aplicar para o ingresso no sandbox de seguros brasileiro, nada obstante o projeto inovador em referência.

Além da dedicação exclusiva à atividade de seguros, outro traço importante desse novo modelo regulatório de seguros refere-se ao desenvolvimento daquilo que se possa considerar como um projeto inovador [6]. Tomando como exemplo o ramo do seguro auto, para que uma seguradora possa aplicar com vistas à entrada no sandbox ela deverá conceber uma nova forma de lidar com esses contratos, apartando-se da modalidade convencional, já conhecida pelo público.

A considerar que apenas novos projetos terão vez, sob a perspectiva das seguradoras tradicionais, por assim dizer, o sandbox, ao menos em princípio, não implica em problemas concorrenciais, uma vez que as novas entrantes não disponibilizarão contratos/produtos como os seus. Serão, como se afirmou, novos contratos, com forte pegada tecnológica, o que tem o fim de atrair novos participantes para o mercado de seguros brasileiro.

Importa registrar, ainda, que o prazo de permanência de uma nova entrante no novo modelo regulatório deverá ser determinado, in casu, 36 meses, o que se fez considerando que não seria equilibrado criar condições regulatórias mais favoráveis às novas entrantes ad aeternum, prejudicando, assim, as seguradoras postas fora da caixa de areia [7].

Por ocasião da mencionada pesquisa elaborada em 2021 no âmbito do evento da FGV Direito Rio, afirmamos, com convicção, que aquele primeiro sandbox, organizado pela Susep, havia sido um sucesso, representado pela escolha de onze novos projetos/produtos, que culminaram na aprovação de dez novas entrantes [8], que preencheram um espaço até então deixado completamente vazio pelo mercado segurador convencional. Ao primeiro sandbox, sucedeu-se o segundo, qualificado por vinte e um novos projetos e, a considerar o sucesso das duas primeiras iniciativas, não haveria razão lógica para interromper esse movimento.

Foi diante desse status que prosseguimos pesquisando, quando, então, tivemos a oportunidade de ler, entre outras [9], a monografia elaborada por Dirk A. Zetzsche, Ross P. Buckley, Janos N. Barberis e Douglas W. Arner, intitulada "Regulating a Revolution: From Regulatory Sandboxes to Smart Regulation" [10].

Nada obstante o fato de essa monografia ter sido publicada em 2017, período no qual, no Brasil, nem mesmo se cogitava da implementação de um sandbox regulatório, a revelar a diferença daquilo que se observa, por exemplo, na Europa, comparativamente à nossa realidade, ela já chamava a atenção a alguns efeitos colaterais provocados pela regulação baseada nos sandboxes.

Em síntese essencial decorrente dos limites dessa coluna, tem-se que, metaforicamente, os mercados e a regulação funcionariam como a água no curso de um rio. Se for mais "fácil" seguir à direita do que à esquerda, porque ali há um desnível ou menos obstáculos, assim a água (o mercado) o fará [11].

Dessa maneira, os referidos autores criticam o modelo regulatório baseado em caixas de areia porque, no limite, elas criariam condições mais favoráveis a alguns, em detrimento de todos os outros participantes do mercado. Eles também comentam, negativamente, a respeito dos limites em quantidade para os projetos escolhidos, por melhores que sejam os critérios aplicados pelos órgãos reguladores.

Melhor explicando, o primeiro sandbox Susep escolheu dez novas seguradoras. Ora, e se, ao invés de dez, houvesse quinze ou vinte ótimos projetos, com francos benefícios à concorrência e aos consumidores de seguros em geral? Por que, assim, limitar a dez seguradoras [12]?

A crítica prossegue propondo uma comparação talvez exagerada, ao refletir que o modelo sandbox seria, em alguma medida, equivalente àquilo que se observa nos paraísos fiscais, caracterizados por, e.g., tributar a renda em condições mais brandas. Entre pagar o imposto sobre a renda segundo a alíquota de 30% (sistema tributário convencional) ou 15% (paraíso fiscal), claramente haveria empresários em busca do modelo mais brando [13].

Em termos regulatórios, se o sandbox é mais atrativo justamente por ser menos oneroso/burocrático, o texto sinaliza pela existência de um movimento de mercado chamado de race to the bottom ou de regulatory arbitrage, que consiste em perseguir a espécie regulatória que lhe seja mais confortável, não necessariamente observando pilares essenciais como a concorrência, proteção aos consumidores, higidez econômico-financeira etc [14]. Noutras palavras, é como se, paradoxalmente, o sandbox se convertesse num entrave ao desenvolvimento, ao invés de ser um fomentador à inovação.

Ao final da interessante reflexão, os autores concluem que ao invés de regular por intermédio de sandboxes, caberia às autoridades responsáveis caminhar no sentido de uma regulação, como um todo (e não apenas através das caixas de areia), menos densa — a chamada smart regulation — o que tornaria desnecessária a criação dos sandboxes [15].

Nada como beber de outras fontes, não necessariamente melhores do que as nossas, senão diferentes, que seja, para que sempre tenhamos nossos olhos e nossa mente abertos àquilo que já vem sendo praticado em mercados seguradores mais desenvolvidos que o brasileiro.

Para que se tenha apenas uma ideia, o FCA, no Reino Unido, tornou o seu modelo de sandbox aberto de forma permanente, e não mais escolhe apenas entre os melhores projetos. Regula-se a atividade, não a pessoa por ela responsável. Se os requisitos relacionados à inovação estiverem presentes, haverá espaço à entrada naquela arena, por mais que esse modelo aberto não corresponda, exatamente, à referida smart regulation.

Em termos de aproveitamento dos sandboxes regulatórios organizados pela Susep, o nosso entendimento é de que ele foi, ao menos até aqui, positivo para o mercado brasileiro. Basta observar, comparativamente, o número de seguradoras em exercício no mercado antes e depois, além de lembrar que as entrantes trouxeram tecnologia e inovação em prol dos segurados, com ótimos benefícios a toda a cadeia produtiva de seguros.

No médio prazo, talvez, as críticas trazidas pelos referidos autores poderão fazer sentido considerando a realidade brasileira. É, portanto, nossa tarefa continuar pesquisando e experimentando a partir das ricas experiências estrangeiras, tropicalizando-as com as necessárias adaptações à realidade nacional.


[1] ALVIM, Pedro. O contrato de seguro. Rio de Janeiro: Forense, 1983. A obra conta ainda com mais duas edições, publicadas em 1986 (2ª edição) e 1999 e 2001 (3ª edição).

[2] No mundo tecnológico, caracterizado pela inexistência de fronteiras, os cinco continentes parecem ter sido substituídos pelas quatro big techs, Apple, Google, Microsoft e Facebook (ou Metaverso, o novo nome adotado por essa companhia). A ilustração das quatro gigantes da tecnologia em forma de ilhas (continentes) pode ser vista em BAKKER, Maarten. DE RIJKE, Vincent. Is "Open Insurance" the next Uber of the industry? Disponível em: https://www.innopay.com/en/publications/open-insurance-next-uber-industry, visitado em 11/3/2022.

[4] O extrato da pesquisa referida foi publicado em forma de artigo. Seja permitido referir ao nosso GOLDBERG, Ilan. The InsurTechs in Brazil: a legal and regulatory analysis. Revista de Direito Administrativo, v. 280, n. 3, p. 149–182, 2021.

[5] Res. CNSP 381/2020. "Art. 2º — Para fins desta Resolução, define-se: I – ambiente regulatório experimental (Sandbox Regulatório): constitui-se em condições especiais, limitadas e exclusivas, a serem cumpridas por sociedades seguradoras, na forma determinada por esta Resolução, por prazo limitado;" (Grifou-se).

[6] Também na Res. CNSP 381/2020: "Art. 1º Estabelecer as condições necessárias para a autorização e o funcionamento, por tempo determinado, de sociedades seguradoras participantes exclusivamente de ambiente regulatório experimental (Sandbox Regulatório) que desenvolvam projeto inovador mediante o cumprimento de critérios e limites previamente estabelecidos.” A Circular Susep nº 598, de 2020, assim conceitua projeto inovador: art. 2, "V – projeto inovador: desenvolvimento de produto e/ou serviço no mercado de seguros que seja oferecido ou desenvolvido a partir de novas metodologias, processos, procedimentos ou de tecnologias existentes aplicadas de modo diverso".

[7] Res CNSP 381/2020. "Art. 4º — A Susep publicará edital de participação para processo seletivo do Sandbox Regulatório, o qual deverá prever, no mínimo: I – o prazo de participação no Sandbox Regulatório, não podendo ser superior a 36 (trinta e seis) meses, contados a partir da efetiva data do começo da comercialização dos planos de seguro ou 60 (sessenta) dias após a expedição pela Susep da autorização temporária, o que ocorrer primeiro;" (Grifou-se).

[9] Vale referir também a ALLEN, Hilary J. Sandbox Boundaries. 22 Vanderbilt Journal of Entertainment and Technology Law 299 (2020). Disponível em: https://scholarship.law.vanderbilt.edu/jetlaw/vol22/iss2/3; CONHEADY, Gina. Is fintech ready for a global regulatory sandbox? Disponível em: https://www.algoodbody.com/insights-publications/is-fintech-ready-for-a-global-regulatory-sandbox; e ALLEN, Jason Grant. LASTRA, Rosa María. Border Problems: Mapping the Third Border. Disponível em: https://doi.org/10.1111/1468-2230.12506.

[10] ZETZSCHE, Dirk A. et al. Regulating a Revolution: From Regulatory Sandboxes to Smart Regulation, 23 Fordham J. Corp. & Fin. L. 31 (2017).

[11] A equiparação dos mercados e da regulação ao fluxo da água nos rios foi feita por Jason Grant Allen e Rosa María Lastra: "The topography of markets is such that, like water, financial activity flows downhill and around high points." (op. cit. p. 4).

[12] "Sandboxes, as currently conceived, are not scalable—the eighteen (cohort 1) or twenty-four (cohort 2) participants59 in the U.K. FCA sandboxes are insignificant relative to the over 56,000 licensed market participants in the United Kingdom.60 For this reason, sandboxes need to be made smarter and equipped to self-monitor activity within them, as opposed to just being a process-driven application method for entry, typically for a limited time, to a regulatory safe space, as they are currently." (ZETZSCHE, Dirk A. op. cit. p. 46).

[13] "For example, one commentator has noted that former tax havens, having capitulated to pressure to meet international standards with regard to preventing tax avoidance and evasion, are now increasingly adopting loose financial regulatory regimes to attract businesses associated with cryptoassets and blockchain." (OMRI, Marian. Blockchain Havens and the Need for Their Internationally-Coordinated Regulation. Available at 20 N.C. J.L. & TECH. 529, 531. 2019).

[14] "The ability for a market participant to choose their own regulator can lead to what is known as "race to the bottom," a phenomenon where jurisdictions compete to lower their regulatory standards in order to attract business, resulting in a general deregulatory trend.” (ALLEN, Hilary J. Sandbox Boundaries. 22 Vanderbilt Journal of Entertainment and Technology Law 299 (2020). Disponível em: https://scholarship.law.vanderbilt.edu/jetlaw/vol22/iss2/3. p. 309). A respeito da regulatory arbitrage, "Professor Victor Fleischer defines regulatory arbitrage as 'a perfectly legal planning technique used to avoid taxes, accounting rules, securities disclosure, and other regulatory costs' that 'exploits the gap between the economic substance of a transaction and its legal or regulatory treatment'." (FLEISCHER, Victor. Regulatory Arbitrage, 89 TEx. L. REV. 227, 229. 2010).

[15] "All in all we argue for the development of a Smart Regulatory approach that seeks to lower the entry barriers to financial markets for both FinTech, RegTech and TechFin, while keeping the sentries at the entry gates." (ZETZSCHE, Dirk A. op. cit. p. 97-98).

Autores

  • é advogado e parecerista, doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Ucam, professor convidado da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento, da Emerj e da Escola de Negócios e Seguros e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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