Opinião

Breves comentários sobre o delito de violência institucional

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

14 de abril de 2022, 12h02

A vítima, depois de muitos questionamentos, acontecimentos e reclamações, foi lembrada pelos legisladores.

Não é raro, pelo contrário, é comum, a revitimização, que ocorre, segundo a doutrina, quando a vítima é obrigada a reviver os fatos ou, em razão deles, sofre outros atos moralmente violentos e, não raras vezes, contínuos, que a desqualificam, humilham e ferem sua dignidade como pessoa.

No direito objetivo, o diploma que define o que seja violência institucional e revitimização, é o Decreto nº 9.603/2018, que regulamenta a Lei nº 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

Nos termos do seu artigo 5º, inciso I, violência institucional é a "… praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência".

Revitimização, segundo o artigo 5º, inciso II, daquele diploma normativo, é o "discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem".

A definição de revitimização trazida no aludido decreto pode ser aplicada analogicamente ao novo tipo penal de violência institucional, que, como veremos, é omisso nesse sentido.

É comum nas lides forenses que a vítima, malgrado ter sofrido algum tipo de violência ou abuso, muitas vezes de natureza sexual, ainda se sujeite à tese defensiva de sua desqualificação, com a finalidade de refutar a credibilidade de suas declarações, haja vista a ausência de testemunhas presenciais em boa parte dos casos.

Algumas leis já tratavam disso, mas no aspecto processual. Assim é que a Lei nº 13.431/2007, especificamente nos artigos 7º a 12, dispõe sobre a escuta especializada e depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, muito empregada, aliás. Já a Lei nº 11.340/2006 (Maria da Penha), no seu artigo 10-A, §§ 1º e 2º, traz o procedimento para a oitiva especial de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.

O Código de Processo Penal contém dispositivos inseridos pela Lei Mariana Ferrer (Lei nº 14.245/2021). Eles proíbem que, notadamente em crimes contra a dignidade sexual, e no procedimento afeto ao plenário do Júri, a vítima seja atingida na sua esfera psicológica ou mesmo física, sendo vedado ao magistrado, às partes e a seus advogados a manifestação sobre as circunstâncias ou elementos estranhos aos fatos objetos de apuração nos autos e o emprego de linguagem, informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima e de testemunhas. É de responsabilidade do magistrado garantir o cumprimento destas regras, podendo os envolvidos ser responsabilizados penal, civil e administrativamente (artigos 400-A e 474-A).

No mesmo sentido é a Lei nº 9.099/1995, no capítulo que cuida dos Juizados Especiais Criminais. Seu artigo 81, § 1º-A, reza que todas as partes e demais sujeitos processuais presentes ao ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização penal, civil e administrativa, cabendo ao magistrado garantir o cumprimento da regra, vedadas a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos e a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Cabe aos órgãos responsáveis pela persecução penal (juiz, membro do MP e autoridade policial), quando da oitiva dessas pessoas, observar os dispositivos pertinentes para não causar novo dano, agora psicológico, e revitimizar o ofendido.

Devem ser evitadas, quando possível, perguntas vexatórias, humilhantes e discriminatórias, a reconstituição simulada dos fatos, e novos exames periciais em sua pessoa, notadamente em crimes sexuais, o que, decerto, causaria a revitimização e forte constrangimento.

Claro que, dentro de critérios de necessidade e adequação, perguntas ligadas aos fatos podem e devem ser feitas, pela acusação e defesa, mas sem que importem humilhação, degradação ou ofensa à honra pessoal do ofendido. O mesmo ocorre com a produção de outras provas legalmente permitidas, que adentrem à esfera íntima da vítima, desde que absolutamente indispensáveis para a apuração da verdade real dos fatos, sempre com a cautela de não advir a revitimização.

Outra grave violação à dignidade da vítima é sua exposição pública, que deve ser evitada pelos agentes públicos. Seria excelente que os órgãos de imprensa adotassem a mesma atitude, já que nem tudo deve virar notícia, quando o dano resultante da veiculação de imagens e fatos, com a identificação do ofendido, pode trazer sérias consequências psicológicas e mesmo materiais para ele.

Faltava, assim, um dispositivo no âmbito penal que protegesse a vítima e, também, testemunhas de danos psicológicos em razão da investigação e do processo criminal. Por isso, foi publicada a Lei nº 14.321, de 31 de março de 2022, que já se encontra em vigor. Diz o novo tipo penal inserido na Lei nº 13.869/2019, que cuida dos delitos de abuso de autoridade:

"Violência Institucional
Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:
I – a situação de violência; ou
II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).
§ 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.
Art. 3º — Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação".

A primeira observação que deve ser feita é que o delito somente pode ser cometido por agente público, posto que se trata de modalidade de abuso de autoridade (crime próprio).

No entanto, como todo crime próprio, pode haver a participação de particular, que, conhecendo a qualidade pessoal do agente público, concorre de qualquer modo para a prática do delito, seja como coautor ou partícipe (artigo 30 do CP).

O sujeito passivo do delito pode ser tanto o homem quanto a mulher, muito embora, nos crimes sexuais, a maioria das vítimas seja do sexo feminino.

No tipo fundamental, a conduta consiste na submissão da vítima de infração penal (crime ou contravenção) ou testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos que a leve a reviver, sem estrita necessidade: 1) a situação de violência, ou 2) outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização.

Note-se que a norma penal obriga, sob pena de punição, à observância pelo agente público de várias daquelas regras processuais protetivas. Muitas vezes a prova requerida, as perguntas feitas, um aparte mal formulado, ou outros atos processuais ou procedimentais, não são estritamente necessários. Podem até ser interessantes para uma parte ou outra, mas não se fazem indispensáveis, seja para a acusação ou defesa. Nestas hipóteses, tratando-se de procedimento dispensável, que já tenha sido realizado adequadamente ou que invada indevidamente a esfera física ou psicológica de vítima de infração penal ou testemunha de crime violento, que a leve a reviver a situação de violência sofrida (vítima) ou percebida pelos sentidos (testemunha), bem como outras situações geradoras de sofrimento ou estigmatização, o crime restará caracterizado.

Situação que comumente ocorre é o agente público (membro do Judiciário, do Ministério Público ou Autoridade Policial) permitir que terceiro, que pode ser o advogado ou mesmo o autor da infração penal ou testemunha, intimide a vítima de crimes violentos, levando-a à indevida revitimização. Nesta hipótese, a pena cominada no tipo fundamental é aumentada de dois terços (§ 1º).

Anoto que, neste caso, se a intimidação realizada pelo terceiro envolver violência à pessoa ou grave ameaça, para favorecer interesse próprio ou de terceiro relacionado ao feito em andamento, poderá ser caracterizado o crime de coação no curso do processo (artigo 344 do CP), que prevê punição com pena de um a quatro anos de reclusão e multa, sem prejuízo da correspondente à violência.

Na coação no curso do processo, o sujeito usa de violência ou grave ameaça contra autoridade (juiz, delegado de polícia etc.), parte (autor, réu, membro do Ministério Público etc.), ou qualquer outra pessoa que funciona ou é chamada a intervir em processo judicial ou administrativo, inquérito policial ou procedimento do juízo arbitral (testemunha, perito, vítima, jurado, escrivão etc.), com a finalidade de favorecer interesse próprio ou alheio relacionado ao processo ou procedimento.

Aliás, cuidando-se de processo que envolva crime contra a dignidade sexual, a pena pela coação no curso do processo é aumentada de um terço até a metade (parágrafo único).

Nestas hipóteses, o agente público que permitiu que o terceiro intimidasse a vítima, com o emprego de violência ou grave ameaça, por ter o dever legal de agir e evitar a produção do resultado, podendo fazê-lo, além do crime de violência institucional, também responderá, juntamente com o terceiro, por coação no curso do processo, mas por omissão, nos termos do artigo 13, § 2º do Código Penal (omissão penalmente relevante).

No caso de o próprio agente público intimidar a vítima de crimes violentos, de modo a gerar indevida revitimização, a pena do tipo fundamental é aplicada em dobro (§ 2º). Cuida-se de situação mais gravosa do que a prevista no § 1º porque o próprio agente público é o causador da desnecessária revitimização.

Também é possível, tendo a intimidação à vítima se dado por violência física ou grave ameaça, que o agente público, além do delito de violência institucional, responda por coação no curso do processo, se houver a finalidade de favorecer interesse próprio ou alheio relacionado ao processo ou inquérito policial em curso.

Poderá ocorrer concurso entre o delito de violência institucional e de coação no curso do processo, haja vista a diversidade de desígnios e de bens jurídicos tutelados. A espécie de concurso de crimes (formal ou material) dependerá da análise do caso concreto, quando se verificará, inclusive, se não há absorção de um delito pelo outro.

Saliento que, nos casos dos §§ 1º e 2º, do dispositivo em comento, a norma se refere especificamente à vítima e de crimes violentos, não alcançando a testemunha, que é protegida apenas no tipo fundamental ("caput").

Quando a norma penal se refere a vítima de crimes violentos, fê-lo de maneira genérica, atingindo tanto os cometidos com o emprego de violência contra a pessoa quanto a grave ameaça. Não é razoável punir com maior rigor quando, vg., o estupro ocorreu com violência física e não o fazer quando o modo de execução é a grave ameaça, já que o resultado da conduta é o mesmo. A revitimização advirá de igual maneira.

No meu modo de ver, errou o legislador ao inserir o dispositivo entre os crimes de abuso de autoridade, já que a punição, ordinariamente, não alcançará o particular, como o advogado, que, não raras vezes, tem como estratégia desmerecer o caráter da vítima, de modo totalmente inadequado e desnecessário. O melhor seria que o tipo penal fosse inserido no capítulo do Código Penal que trata dos crimes contra a administração da justiça, cujo autor, em regra, pode ser qualquer pessoa (crime comum).

A pena é pífia e o delito é de competência do juizado especial criminal (Lei nº 9.099/1995), podendo haver transação penal (artigo 76) e, no caso de propositura de ação, suspensão condicional do processo (artigo 89). Pode, inclusive, ser proposto acordo de não persecução penal se não houver violência ou grave ameaça na conduta e presentes os demais requisitos legais (artigo 28-A, do CPP).

Além do mais, para a ocorrência de crime de abuso de autoridade, dentre os quais a violência institucional, exige-se o elemento subjetivo do tipo específico (antigo dolo específico), que é a vontade livre e consciente de abusar da autoridade que está investido, consubstanciado na finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal (artigo 1º, § 1º, da Lei nº 13.869/2019).

Com efeito, na prática, será muito difícil a produção da prova e demonstração da tipicidade formal em razão da especial finalidade (elemento subjetivo do tipo).

Veio em boa hora o novo tipo penal e, mesmo com suas imperfeições, será instrumento efetivo para que, notadamente vítimas de crimes sexuais, não sejam revitimizadas e humilhadas perante o sistema de persecução penal.

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