Território Aduaneiro

A "BR do mar" recapeada: pode o Reporto retroagir?

Autores

  • Leonardo Branco

    é sócio do Escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária e Aduaneira (DDTax) doutor mestre e especialista pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU) de Münster pelo Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) é professor no Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) onde coordena o curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio Internacional" e foi conselheiro titular no Carf entre 2015 e 2023.

  • Thales Belchior

    é membro da Comissão de Política Fiscal e Proteção aos Contribuintes da OAB-RJ especialista em Direito Tributário pela FGV/Direito-RJ professor de Direito Tributário e Aduaneiro convidado na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e advogado especializado em Direito Aduaneiro.

12 de abril de 2022, 8h00

Foi publicado em 25 de março o trecho da Lei nº 14.301/2022, instituidora da "BR do mar", programa do qual tratamos nesta coluna (clique aqui), que recria o Regime Tributário para Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária, o Reporto. A regra havia sido vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelo Congresso Nacional, que o ressuscitou antes da Páscoa.

O programa permite que os portos, concessionárias de transporte ferroviário, empresas de dragagem, recintos alfandegados de zona secundária e, na qualidade de centro de treinamento, o Órgão de Gestão de Mão de Obra do Trabalho Portuário (OGMO) efetuem aquisições e importações de bens destinados ao seu ativo imobilizado para a execução de seus serviços com suspensão do imposto de importação (desde que inexista similar nacional), IPI, PIS e Cofins. Após cinco anos e comprovada a destinação dos bens, a suspensão é convertida em isenção, no caso dos impostos, e alíquota zero para as contribuições.

A possibilidade de aplicação dessa regra de suspensão seguida de desoneração tinha se encerrado em 31 de dezembro de 2020. Contudo, a proposta inicial aprovada pelo Congresso, e agora restaurada com a derrubada do veto e consequente promulgação do dispositivo em 24 de março de 2022, "prorrogava" o prazo para permitir a sua aplicação nas aquisições entre janeiro de 2022 a dezembro de 2023 (ou seja, pelo prazo de dois anos).

Em função dessa tramitação legislativa atípica, a norma entrará em vigor mencionando um período já iniciado para a desoneração, durante o qual diversos potenciais beneficiários da benesse já promoveram aquisições tributadas de maneira integral, sob o regime geral.

Esse cenário gera uma relevantíssima e inovadora questão de direito intertemporal a ser dirimida: poderiam as beneficiárias do Reporto alterar o tratamento jurídico anteriormente outorgado para suas aquisições e importações realizadas ao longo deste ano sem o amparo do regime e, consequentemente, solicitar a devolução dos valores já recolhidos, dado que a norma posteriormente promulgada estabelece como marco inicial da sua aplicação uma data pretérita?

A questão exige uma série de considerações jurídicas de considerável complexidade, a começar pela indagação a respeito da própria possibilidade de aplicação retroativa da norma e sobre qual seria a base legal para fazê-lo.

Em primeiro lugar, abstraindo-se o rico debate em torno da natureza jurídica dos regimes especiais [1], é possível se vislumbrar um argumento favorável ao aproveitamento retroativo decorrente justamente da barreira metodológica do artigo 111 do Código Tributário Nacional (CTN), que determina que as regras isentivas se aplicam literalmente, ou seja, sem qualquer restrição que venha a reduzir ou ampliar o espectro da outorga de isenção.

Como a disposição textual do legislador foi atingir as aquisições entre janeiro de 2022 a dezembro de 2023, não há espaço para se desconsiderar o comando da norma mediante a adoção de uma interpretação limitante por parte da Administração. Eventual incompatibilidade do desígnio normativo com o ordenamento no qual se insere deve ser enfrentada pelas vias procedimentais adequadas, sem resistência à sua aplicação plena enquanto estiver vigente e se presumir sua legitimidade.

A este respeito, diga-se, em absoluto pertinente o relato de Carlos da Rocha Guimarães sobre os debates que culminaram no texto final do anteprojeto do Código Tributário Nacional, ao propor à comissão o uso do advérbio "restritivamente" no lugar de "literalmente" para a redação daquele que se tornaria o controverso artigo 111, ao que foi imediatamente admoestado por Rubens Gomes de Sousa, que explicou ser o objetivo do dispositivo delimitar a interpretação ao exato espaço de conformação da lei, sem, no entanto, admitir-se qualquer restrição em prejuízo do contribuinte das concessões nele previstas, o que implicava a impertinência do termo aventado, que foi, como se sabe, rechaçado [2]. A ratio legislatoris indica com bastante clareza a proposta de se passar ao largo da apreciação teleológica na construção da sombra normativa projetada pela isenção, seja para fins de restrição ou de ampliação.

Mas, ainda que assim não fosse, uma análise mais detalhada da legislação é igualmente apta a revelar a inexistência de qualquer óbice à edição de norma de desoneração retroativa. Embora a maioria das normas jurídicas brasileiras apenas produza efeitos prospectivos, o direito brasileiro permite que elas promovam efeitos em relação a fatos jurídicos passados desde que assim estabeleçam de maneira explícita e não incorram em violação a outros direitos maiores protegidos pela Constituição.

Essa possibilidade é extraída da interpretação a contrario sensu do inciso XXXVI do artigo 5º da Magna Carta (que ressoa na lei de introdução às normas do direito brasileiro) ao proibir a norma jurídica de afetar retroativamente apenas a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido como pressupostos objetivos da segurança jurídica, o que se volta ao não comprometimento da credibilidade institucional do direito.

Ocorre que o lançamento não se enquadra em qualquer um desses conceitos jurídicos por ser, como se sabe, passível de revisão e alteração posterior, como se depreende do artigo 149, inciso I, que textualmente prevê a revisão do ato por alteração superveniente da lei, que é justamente o caso do trecho restaurado da Lei nº 14.301/2022, tendo o legislador remendado a fresta exposta pelo veto presidencial no tapete asfáltico da BR do Mar com o piche da restauração do Reporto.

Observe-se que a restrição à modificação do lançamento favorável ao contribuinte é apenas de ordem temporal, uma vez que a alteração de critério jurídico do artigo 146 do Código Tributário Nacional é, por evidente, comando dirigido à autoridade fiscal. Em outras palavras, deve o fundamento do lançamento ser mantido até a constituição definitiva do crédito tributário, sendo vedada a sua alteração ou substituição. A derrubada do veto, com a fixação do prazo para o programa, derrui justamente a base positiva que sustentava o lançamento dos tributos.

Está-se diante de vera exclusão de crédito tributário, na forma proposta pelo Capítulo V da codificação tributária brasileira, cujo artigo 176 determina ser "(…) sempre decorrente de lei (…) o prazo de sua duração", bastando que o interessado faça prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos para a sua concessão, o que unge com o óleo do indébito o tributo recolhido durante o curso do período de sua prorrogação.

Sobre este particular, pertinente o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça no AgRg no AREsp 187.172-DF [3], cuja ratio decidendi se originou do reconhecimento do direito de o contribuinte não ser cobrado independentemente de ato declaratório expedido pelo Poder Executivo, desde que demonstre estarem cumpridos os requisitos determinados pela legislação.

Na verdade, mais do que uma hipótese de não incidência legalmente qualificada, na clássica definição de José Souto Maior Borges [4], a isenção "(…) opera no próprio campo normativo, definindo os contornos da hipótese tributária" [5], e somente após a supressão dos fatos insuscetíveis à tributação, como aqueles abarcados pela norma isentiva, é que existe a possibilidade de o legislador fixar aqueles que serão oferecidos à imolação fiscal, o que impede o próprio surgimento da obrigação tributária.

Em idêntico sentido, a Constituição empregou regra específica de irretroatividade tributária para proteger o contribuinte e limitar o poder dos entes federativos por meio da alínea "a" do inciso III do artigo 150, de modo a vedar a promoção de exigências tributárias quanto a fatos econômicos já concretizados, restrição que encontra maior concreção nos artigos 9º e 144 do Código Tributário Nacional.

Todavia, conquanto as normas sejam claras no sentido de vedar a criação ou o aumento retroativo do ônus tributário, elas nada mencionam quanto à eventual impossibilidade de afastamento ou redução retroativo de tal ônus por meio de norma que estabeleça isenção total ou parcial em relação a fatos geradores já efetivados.

Como se percebe, a intenção do legislador foi limitar a irretroatividade apenas às alterações legislativas prejudiciais aos contribuintes, já que não há razão para vedar que as normas jurídicas tributárias prevejam efeitos sobre fatos pretéritos dado que a decisão de renunciar retroativamente à arrecadação ou à aplicação de penalidades é prerrogativa do Poder Legislativo.

Tampouco o artigo 144 do Código Tributário Nacional impede a retroação benigna do ônus tributário, pois menciona que se deve aplicar a lei vigente para a data de ocorrência do fato gerador sem vedar alteração retroativa para fins de modificação da lei em referência. A margem é proposital, pois o intento é no sentido de justamente possibilitar a desoneração retroativa, já a alínea "a" do inciso III do artigo 150 da Constituição da qual retira seu fundamento de validade (e que, portanto, deve ser levada em consideração para interpretá-lo) já veda, por conta própria e sem necessidade de qualquer complemento, o aumento da pressão fiscal que surpreenda inadvertidamente o contribuinte.

De toda sorte, a aplicação da desoneração para o período integral é a única medida que assegura a plena eficácia da vontade popular consignada no processo legislativo, que não deve ser prejudicada pela sua promulgação tardia em função do veto e de sua posterior rejeição. Caso se impeça a produção de efeitos quanto ao período pretérito, na prática o Poder Executivo terá reduzido, por via transversa, o prazo de dois anos que o legislativo entendeu como aceitável para a desoneração tributária do Reporto e que deverá ser refletido nas leis orçamentárias.

Não há de se perder de vista, na apreciação de programas de incentivos, que a norma visa incentivar um setor estratégico e de infraestrutura brasileiro, de maneira que a possibilidade de desoneração para a integralidade do período previsto atende a interesses e predicados maiores que a simples arrecadação tributária, tratando-se, antes, da expressão de um mecanismo voltado ao atingimento de fins almejados pelo formulador das políticas nacionais.

Uma vez que se optou, para a consecução de tal propósito, pelo instituto jurídico da isenção com prazo certo com a fixação do termo de início em lei, é possível, como se pode perceber, o entendimento segundo o qual o preceptivo normativo publicado deva ser aplicado para suspender os tributos (e posteriormente desonerá-los) para aquisições e importações já realizadas dentro de seu prazo de aquisição, sobretudo para aquelas empresas já previamente habilitadas ao Reporto nos termos da Instrução Normativa RFB nº 1.370/13, situação que tornará os valores recolhidos anteriormente indébitos aptos a serem ressarcidos.

É bastante questionável, como se pode perceber, tanto do ponto de vista da segurança jurídica da Administração como dos particulares, a técnica legislativa escolhida no sentido de se estabelecer uma data fixa para a aplicação do regime especial, a se ter em vista a dificuldade de se prever com a necessária exatidão o momento em que a lei será promulgada, e a experiência ensina, nas palavras sobre o tempo e o Direito de François Ost, como "(…) o perdão não é isento de perigo" [6].


[1] Para o presente artigo, partimos da premissa adotada pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.310.141 de que o regime representa uma isenção condicionada, categoria sobre a qual tivemos a oportunidade de debater no I Seminário de Direito Tributário Aduaneiro coordenado e promovido pelos professores Onofre Alves Batista Júnior e Paulo Roberto Coimbra Silva na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ocorrido em 14/3/2022, disponível no link: https://youtu.be/6q4M4MLWbFc.

[2] GUIMARÃES, Carlos da Rocha. "Interpretação literal das isenções tributárias". In: BALEEIRO. Proposições tributárias. São Paulo: Editora Resenha Tributária, 1975, passim.

[3] Adicione-se ao acórdão em referência, sob a relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, ainda, a posterior edição da Súmula nº 612 do Superior Tribunal de Justiça: "O certificado de entidade beneficente de assistência social (Cebas), no prazo de sua validade, possui natureza declaratória para fins tributários, retroagindo seus efeitos à data em que demonstrado o cumprimento dos requisitos estabelecidos por lei complementar para a fruição da imunidade".

[4] BORGES, José Souto Maior. Isenções tributárias. São Paulo : Sugestões Literárias, 1969.

[5] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 2022, Capítulo XVI, Item 2.2.

[6] OST, François. O tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p. 44.

Autores

  • é conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Carf, doutorando, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU-Münster) como bolsista DAAD, coordenador do curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio internacional" no IBDT e do curso "Tributação do Mercado Financeiro e de Capitais" no IBDT e na Apet, professor de Direito Tributário e Aduaneiro no IBDT, Ibet, FGV, FIA, Fipecafi, Inova e IDP (pós-graduação) e FK-Partners (exame CFP).

  • é advogado no escritório Machado Meyer Advogados.

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