Opinião

Constitucionalismo abusivo, legalismo autocrático e infralegalismo autoritário

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11 de abril de 2022, 16h18

Era o ano de 1987. Naquele tempo, o jovem professor e procurador do Estado do Rio de Janeiro Luís Roberto Barroso apresentava como tese no 13º Congresso Nacional de Procuradores do Estado um artigo intitulado "A Efetividade das Normas Constitucionais: Por que não uma Constituição para valer?" [1] denunciando a falta crônica de cumprimento real e efetivo das normas constitucionais. Assim, no afã de superá-la, o professor apresenta uma classificação para as normas constitucionais com o fito de facilitar a identificação da posição jurídica subjetiva na qual investem os jurisdicionados, conferindo-as força normativa.

Desde então o estimado professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) afirmava que "já não se vive mais, como ontem, um tempo em que as portarias e os avisos, quando não as meras ordens verbais, pairavam acima da vontade do constituinte". Não obstante o fato disto representar um grande avanço, ainda era pouco, porquanto era necessário "(…) restituir ao texto da Constituição o seu papel institucional, é preciso reavivar, também, a sua dimensão científica".

Nesse diapasão, e diante da conjuntura jurídica atual, indaga-se: será mesmo que aquele grande avanço de as portarias, avisos, instruções normativas e demais atos infralegais noticiados pelo professor deixaram definitivamente de pairar acima da vontade do constituinte? Ou, por outro lado, pode se dizer que vivemos um retrocesso no que concerne à força normativa da constituição e ao espírito da democracia constitucional?

No Brasil, sobretudo nos períodos mais obscuros da nossa história, reservou-se ao direito constitucional um papel reduzido, periférico e, ao mesmo tempo, injusto. Nele buscou-se o drible e o contorno ao invés do caminho reto; não a verdade, mas a dissimulação.

Com a ascensão do populismo autoritário em diversos países do mundo surgiram novas preocupações atinentes à preservação do constitucionalismo democrático [2]. Na esteira dessas últimas eleições, verificou-se uma tendência à implementação de medidas autoritárias, vocacionadas ao enfraquecimento dos mecanismos de accountability concebidos para restringir a sua atuação; porém, transvestidas de uma aparência de legalidade/legitimidade dando ensejo aos fenômenos do constitucionalismo abusivo, o legalismo autocrático, o infralegalismo autoritário e a infração regulatória.

Não é demais rememorar que o mundo atual vivencia um novo momento de desafio para as democracias liberais, haja vista que desde o século 20 emergiram ditaduras diversas, desde Hitler na Alemanha e Stalin na União Soviética aos modelos baseados nos regimes militares da América Latina, África e Ásia. Nessa toada, após a primeira década do século 21, disseminaram-se em nível global ideologias extremistas que foram canalizadas por figuras que se autointitulam outsiders da política tradicional. Em países com democracias liberais tradicionais, líderes carismáticos, de direita e de esquerda, ascenderam ao poder com discursos abertamente antidemocráticos, propagando o fracasso das instituições políticas e a necessidade de instauração de uma "nova política" para a defesa dos interesses coletivos, porém sem olvidar o viés autoritário.

Logo após a ascensão ao poder, os líderes carismáticos que capitaneavam essas correntes ditas alternativas passaram a implementar uma série de medidas formalmente adequadas ao ordenamento jurídico positivo, porém materialmente voltadas ao enfraquecimento das instituições tradicionalmente vocacionadas à contenção do abuso do poder por parte de agentes políticos e, em especial, do chefe do Executivo.

Não se trata de uma ruptura explícita com o constitucionalismo democrático, mas de uma infiltração sutil do âmago nas instituições. Nesse sentido, ausculte-se o trecho a seguir destacado da obra "Como as democracias morrem" de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2018, p. 81)[3] destacando o seguinte:

"Com efeito, as iniciativas governamentais para subverter a democracia costumam ter um verniz de legalidade. Elas são aprovadas pelo Parlamento ou julgadas constitucionais por supremas cortes. Muitas são adotadas sob o pretexto de diligenciar algum objetivo público legítimo  e mesmo elogiável , como combater a corrução, 'limpar' as eleições, aperfeiçoar a qualidade da democracia ou aumentar a segurança nacional".

A esse respeito, cumpre frisar que o termo legalismo autocrático, cunhado em 2015 pelo professor Javier Corrales, identificou-o mediante o "uso, abuso e não uso da lei" para descrever o que Hugo Chávez fez para consolidar o poder político e marginalizar os concorrentes [4]. Kim Scheppele usa a expressão legalismo autocrático, destacando a extraordinária atenção que os novos autocratas dão ao direito como ferramenta de consolidação do poder, com o mérito de enfatizar a criação deliberada de novos direitos como forma de consolidar o poder político [5].

No que tange a expressão infralegalismo autoritário, os professores e pesquisadores da FGV, Oscar Vilhena, Ana Laura Barbosa e Rubens Glezer, ao observarem as estratégias adotadas por Viktor Orbán, na Hungria e Chávez, na Venezuela, perceberam que no Brasil a corrosão e subversão das instituições se dava por mecanismos infralegais mediante o abuso das prerrogativas constitucionais [6].

Nesse sentido, foram detectadas algumas estratégias que tem o condão de burlar o poder legislativo e a institucionalidade para flexibilizar o acesso às armas, fragilizar as instituições de controle e vigilância, atacar o pluralismo e a diversidade no setor cultural e desmantelar políticas ambientais [7]. Corroendo assim quatro áreas-chave que atingem o pluralismo e os direitos fundamentais, quais sejam: segurança, os órgãos de controle, o meio ambiente e a cultura.

O infralegalismo autoritário combina a edição de atos infralegais, modificações na estrutura burocrática (por ação ou omissão) e a criação de diretrizes por meios para-institucionais (ordens ilegais ou ameaças). Por meio desse repertório, que se tenta legislar sem a necessidade do Congresso Nacional, subvertendo assim a finalidade das instituições que protegem direitos sociais e individuais ou desmantelando-as, bem como fragilizando instituições de investigação e controle [8].

Já a infração regulatória, compreende os casos que são mais difíceis de serem detectados, estes muitas vezes circulam abaixo do radar e dizem respeito a uma segunda camada dos atos infralegais, haja vista que os atos corrosivos podem ser praticados tanto pela própria autoridade máxima do poder executivo, mas também podem ser determinados por interposta pessoa, que age na condição de mandatário, servindo como mero instrumento de sua vontade. Isto ocorre normalmente em órgãos capturados pelo governo e cujas nomeações seguem a lógica de aparelhamento, compadrio e identidade ideológica, podendo englobar atos e portarias ministeriais, atos normativos de agências reguladoras, e demais órgãos politicamente aparelhados.

Dessa maneira, a classificação entre as modalidades de infração regulatória subdivide-se em: 1) infração regulatória direta: quando há uma violação frontal, direta, aberta, ostensiva à lei ou à Constituição Federal e 2) infração regulatória oblíqua: quando há uma violação indireta, sutil, disfarçada, sub-reptícia, oblíqua. Portanto, por meio de um comportamento formalmente adequado, realiza-se um contorno, um drible a um determinado dever, a uma proibição ou a uma limitação normativa que podem ensejar consequências danosas ao Estado, incluindo evasão fiscal de vultuosas quantias [9].

Um exemplo de infração regulatória à Constituição pode ser extraído da Portaria nº. 604/2021, expedida pelo Secretário da Cultura que proíbe o uso da linguagem neutra, no mesmo esteio da ADI 7019/RO, de relatoria do ministro Edson Fachin [10]. Violando o direito fundamental à liberdade de expressão, plasmadas nas formas de expressão, bem como nos modos de criar, fazer e viver, expressos nos artigos 5º e 216 da CRFB/1988.

O que todos esses conceitos tem em comum é que são estratégias nefastas que abrem caminhos sombrios para a realização de ataques aos direitos fundamentais, ao pluralismo e às minorias. Destruindo a transparência pública, por intermédio de imposições indevidas de sigilo e de práticas obscuras, minando assim a previsibilidade e a segurança jurídica e as instituições do Estado de Direito.

No âmbito da ADPF 622/DF, que trata do caso do Conanda, o ministro Luís Roberto Barroso lançou mão dos conceitos de legalismo autocrático e constitucionalismo abusivo, definindo o constitucionalismo abusivo como a "(…) prática que promove a interpretação ou a alteração do ordenamento jurídico, de forma a concentrar poderes no chefe do Executivo e a desabilitar agentes que exercem controle sobre a sua atuação" [11].

Dessa maneira, a decisão teve o mérito de reconhecer que as competências discricionárias do presidente da República não podem ser exercidas em prejuízo da democracia e dos direitos fundamentais e que, nessas situações, cumpre ao STF intervir para a preservação dos princípios constitucionais. Além de fixar a importante tese, nos seguintes termos: "É inconstitucional norma que, a pretexto de regulamentar, dificulta a participação da sociedade civil em conselhos deliberativos".

Noutro giro, a ministra Cármen Lúcia, no julgamento das ações do denominado Pacote Verde [12], declarou que havia a promoção de uma "cupinização silenciosa e invisível a olhos desatentos" dos órgãos de fiscalização e controle do meio ambiente [13].

Na seara da cultura, o constitucionalismo abusivo ou legalismo autocrático se verifica na omissão propositada na ausência da indicação de diretores da agência diante das vacâncias, incluindo a cadeira do Diretor-Presidente, que após a renúncia em novembro de 2019, instaurou-se um sistema de rodízios para que a mesma composição arranjada se perpetuasse no poder [14]

Frise-se que o objetivo de todos esses institutos segue sendo a perpetuação e a concentração do poder em detrimento do pluralismo democrático. Fundando-se na falta de transparência e na tentativa de destruição das instituições da democracia constitucional.

Diante do exposto, percebe-se que o passar do tempo não significa necessariamente uma evolução, pois a trajetória da humanidade é marcada de períodos de avanços e retrocessos.

Dessa maneira, aquele tema que o então jovem professor e hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal (e que continua professor) Luís Roberto Barroso entendia superado durante sua apresentação no XIII Congresso Nacional de Procuradores do Estado, volta a ser debatido em pleno ano de 2022. Importando na óbvia, porém difícil conclusão de que não se tem o controle sobre os acontecimentos de uma sociedade complexa, heterogênea e plural.

Naquela altura do campeonato era algo realmente impensável assistir a esses "dribles infralegais" que colocam de ponta cabeça a pirâmide de Kelsen desenhada por Adolf Merckl. E hoje continua sendo algo quase que inacreditável, tal como aquelas manchetes da vida real que o leitor se pergunta se aquilo é verdade, Fake News ou uma postagem do Sensacionalista.

Portanto, diante desta pequena reflexão vale rememorar o pensamento do filósofo grego Epicteto traduzido na frase: "o que importa não é o que acontece, mas como você reage". Pois só assim o populismo autoritário será identificado e combatido.


[1] Barroso, Luís Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de Direito Administrativo nº 197, p. 30.

[2] Segundo Luís Roberto Barroso, o constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século 20, derrotando diversos projetos alternativos e autoritários que com ele concorreram. O Estado democrático de direito é o produto da fusão de duas ideias que tiveram trajetórias históricas diversas, mas que se conjugaram para produzir o modelo ideal contemporâneo. Portanto, constitucionalismo significa Estado de direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. Democracia, por sua vez, traduz a ideia de soberania popular, governo do povo, vontade da maioria. O constitucionalismo democrático, assim, é uma fórmula política baseada no respeito aos direitos fundamentais e no autogoverno popular.

BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalismo Democrático: a ideologia vitoriosa do século XX. Ribeirão Preto: Migalhas. 2019. pág. 13 – 15.

[3] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. p. 81.

[4] "My argument focuses on the use, abuse, and non-use of the rule of law".

CORRALES, J. The Authoritarian Resurgence: Autocratic Legalism in Venezuela. Journal of Democracy, vol. 26, nº. 2, abril. 2015, p. 38.

[5] SCHEPPELE, Kim Lane. Autocratic Legalism. The University of Chicago Law Review. 85:545, 2018. p. 548.

[6] GALF, Renata. Bolsonaro adota 'infralegalismo autoritário' contra democracia, apontam pesquisadores. Folha de São Paulo. Publicado em 11 de janeiro de 2022. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/01/bolsonaro-adota-infralegalismo-autoritario-contra-democracia-apontam-pesquisadores.shtml>. Acesso em 04/04/2022.

[7] GALF, Renata. 'Infralegalismo Autoritário' de Bolsonaro afeta 4 áreas-chave do governo; entenda. Folha de São Paulo. Publicado em 13 de janeiro de 2022. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/01/infralegalismo-autoritario-de-bolsonaro-afeta-4-areas-chave-do-governo-entenda.shtml>. Acesso em 04/04/2022.

[8] GLEZER, Rubens e BARBOSA, Ana Laura Pereira. Conama em chamas: entre o infralegalismo autocrático e a catimba constitucional. Publicado em 09 de agosto de 2021. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/conama-em-chamas-09082021>. Acesso em 04/04/2022.

[9] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. Condecine e Poder Regulamentar: um ensaio sobre a infração regulatória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021. p. 67-90.

[10] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 7019 / RO, relator (a): ministri Edson Fachin, decidido em 17/11/2021. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15348733215&ext=.pdf>. Acesso em 03 de janeiro de 2022.

[11] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 622, relator (a): Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 01/03/2021, Processo Eletrônico DJe-097, divulgado em 20/05/2021, publicado em 21/05/2021. p. 2.

[12] O denominado "Pacote Verde" inclui as seguintes ações em trâmite no STF: ADPF 760, ADPF 735, ADPF 651, ADO 54, ADO 59, ADI 6148 e ADI 6808.

[13] PERÓN. Isadora. Julgamento da ‘pauta verde’ é interrompido e Cármen Lúcia retomará voto na quarta-feira. Valor Econômico. Publicado em 31 de março de 2022. Disponível em: <https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/03/31/stf-retoma-julgamento-sobre-pauta-verde.ghtml>. Acesso em 04 de abril de 2022.

[14] MARANHÃO JUNIOR, Magno de Aguiar. As Aventuras da Ancine e sua Diretoria na Terra do Nunca. Publicado em 04 de junho de 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-jun-04/maranhao-aventuras-ancine-diretoria-terra-nunca>. Acesso em 04/04/2022.

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