Opinião

Súmulas administrativas e insubordinação: o caso da ANTT

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11 de abril de 2022, 9h06

Quando se diz que alguém praticou um ato de insubordinação em sua atuação profissional, o que se pretende usualmente destacar é a ocorrência de uma conduta de desatendimento de uma ordem advinda de ocupante de cargo hierarquicamente superior.

Esta é, precisamente, a situação que parece estar ocorrendo no âmbito da Agência Nacional de Transportes Terrestres desde o início de março deste ano de 2022, especialmente em relação à regulamentação e fiscalização do transporte coletivo de passageiros — seja por fretamento, seja por linha regular. A presente opinião irá revelar e analisar os fatos a seguir descritos a partir de duas perspectivas: 1) a da contradição entre normas internas da ANTT, e 2) a dos potenciais prejuízos decorrentes da inércia da Diretoria Colegiada, órgão deliberativo máximo da Agência, em fazer valer a sua condição de última instância decisória e regulamentadora.

Em dezembro de 2021, a Diretoria Colegiada da ANTT editou a Súmula 11, voltada a regulamentar a situação de pessoas — naturais ou jurídicas — que possuem algum tipo de autorização outorgada pela Agência, mas que, durante o ato de fiscalização nas rodovias, potencialmente estariam realizando atividades diferentes daquelas previstas na autorização. Basicamente, a Súmula em referência estabeleceu que os prestadores de serviços autuados nessas circunstâncias não estão sujeitos ao Regulamento 4.287/2014, editado para estabelecer as sanções por transporte clandestino de passageiros e possibilitar, na ocorrência desta hipótese, a apreensão de veículos.

O que a Diretoria Colegiada da ANTT parece ter considerado para fins de edição da Súmula é que uma discordância interpretativa a respeito da natureza do serviço prestado durante a fiscalização não poderia prejudicar as pessoas que já adquiriram o serviço (seja de linha regular, seja de fretamento) e estão sendo transportadas por pessoa com autorização para operar, ainda que a atividade realizada possa ser diferente daquela autorizada pelo ato de outorga. Nessa hipótese, o serviço prestado simplesmente não poderia ser interrompido, com a imposição de severos danos ao responsável pelo transporte e, principalmente, aos consumidores. É importante esclarecer, sob esse contexto, que a configuração dos serviços de fretamento e de linha regular vem sendo objeto de uma série de discussões judiciais — muitas delas vinculadas à operação de plataformas de intermediação entre grupos que pretendem contratar o transporte coletivo e empresas que prestam serviços de fretamento [1].

Ainda a esse respeito, cumpre destacar que a edição de Súmula pela Diretoria Colegiada encontra fundamento no artigo 52 da Lei 10.233/2001, ao prever que a Diretoria é o órgão de deliberação máxima da ANTT. Por sua vez, o artigo 60 da lei define competir à Diretoria Colegiada o cumprimento dos deveres legais e, ainda, a edição e aprovação do regimento interno da agência reguladora. Além disso, o artigo 61 estabelece o comando hierárquico da diretoria sobre o pessoal e serviços, além da coordenação de competências administrativas.

A lógica hierárquica e de distribuição de competências e atribuições acima descritas é o fundamento para edição e publicação da Resolução nº 5.888/2020, que aprovou o Regimento Interno da ANTT. A esse respeito, é importante destacar que, de acordo com o artigo 13 do RI, "a Diretoria Colegiada é o órgão máximo da ANTT". Além disso, o artigo 14 do regimento em referência prescreve que "a coordenação interna das atividades e competências será exercida pela Diretoria Colegiada, diretamente ou com apoio das Superintendências". Em relação às competências da Diretoria Colegiada, o artigo 15 do Regimento Interno descreve como atribuições "analisar, discutir e decidir, em instância administrativa final, as matérias de competência da ANTT", o que inclui, nos termos do inciso IX, "aprovar enunciados de Súmulas e Manual de Procedimentos".

O conceito de Súmula, por sua vez, é trazido pelo artigo 120, III, do RI, nos seguintes termos:

"Artigo 120. As manifestações da ANTT ocorrerão mediante os seguintes instrumentos:
[…]
III – Súmula – enunciado, com efeito vinculante em relação às demais unidades organizacionais da ANTT, exceto a Procuradoria Federal junto à ANTT, destinado a tornar público:
a) interpretação da legislação de transportes terrestres; ou
b) entendimento pacífico, reiterado e uniforme proveniente das decisões da Diretoria Colegiada ou das Superintendências".

Por sua vez, as competências vinculadas aos cargos de superintendência estão previstas pelo artigo 43 do Regimento Interno, dentre elas "garantir a uniformidade de entendimentos, interpretações e ações por suas unidades em respeito às Súmulas e diretrizes da Diretoria Colegiada" (inciso VII). Além disso, o artigo 44, X, estabelece que as superintendências podem propor à Diretoria Colegiada a edição ou alteração de Súmulas.

O caso que gerou a presente opinião, contudo, revela hipótese em que um Superintendente não praticou as medidas acima descritas para questionar a Súmula editada pela Diretoria Colegiada e, além disso, parece ter ignorado a própria existência do enunciado para editar a Portaria 27, de 3 de março de 2022, que justamente configurou como clandestinos os serviços descritos pela Súmula e, além disso, expressamente determinou que a fiscalização aplique as sanções relacionadas com a clandestinidade nas autuações — inclusive a apreensão de veículos.

A esse respeito, cumpre destacar que a Portaria incorre em pelo menos duas violações diretas daquilo pacificado pela Súmula editada pela Diretoria Colegiada:

a) A Portaria modifica o conceito trazido pela Súmula a respeito do que seria "transporte clandestino de passageiros". Enquanto a Súmula da Diretoria Colegiada prevê que o transporte clandestino de passageiros "é aquele realizado por pessoa física ou jurídica, sem qualquer autorização lavrada por parte da Agência Nacional de Transportes Terrestres ANTT", a Portaria parece ter o intuito de modificar a orientação dirigida à fiscalização ao padronizar, em seu artigo 1º, parágrafo único, "a expressão clandestino como a terminologia a ser adotada para referencia ao serviço realizado sem prévio ato de outorga ou em desconformidade com a licença, seja operacional ou de viagem".

b) Além disso, a Portaria contraria a Súmula ao determinar a aplicação da Resolução 4.287/2014 mesmo nas hipóteses em que a pessoa natural ou jurídica ostentar alguma das autorizações descritas pela Súmula. Como não é transporte clandestino de passageiros aquele realizado com ao menos uma das autorizações descritas pela Diretoria Colegiada, a Súmula 11 prescreve, expressamente, que "a constatação, por parte da fiscalização, do exercício da atividade de transporte coletivo de passageiros em desconformidade com os limites autorizados pelo ato de outorga, ou mesmo a execução do serviço fora dos limites da LOP ou da Licença de Viagem de Fretamento — LV, não autorizam a aplicação da Resolução nº 4.287, de 2014".

Em sentido diametralmente oposto àquele consolidado pela Súmula, a Portaria 27 é expressa ao prever a possibilidade de adoção dos procedimentos e sanções da Resolução em referência nas hipóteses descritas pela Superintendência. Cite-se, por exemplo, o artigo 2º da Portaria, que prescreve o seguinte:

"A empresa prestadora de serviço regular, que possui apenas o Termo de Autorização de Serviços Regulares (TAR) e determinada Licença Operacional (LOP) válidas no ato da fiscalização, que prestar serviço sob regime de fretamento, sem o Termo de Autorização de Fretamento (TAF) e Licença de Viagem (LV) válidas, terá o serviço de transporte, se fiscalizada, flagrado como clandestino, será submetida ao procedimento previsto na Resolução nº 4.287, de 13 de março de 2014".

Na hipótese descrita pelo artigo citado, uma empresa, mesmo ostentando um termo de autorização outorgado pela ANTT, poderá sofrer sanções vinculadas ao transporte clandestino na fiscalização in loco, mediante utilização, justamente, da Resolução cuja aplicação foi expressamente vedada pela Diretoria Colegiada da ANTT. É importante reiterar que a aplicação da Resolução em referência pela Portaria é, precisamente, aquilo que fundamenta as apreensões previstas pelo Anexo 1, porque nem a Resolução 233/2003, nem a Resolução 4.777/2015, também citadas pela Portaria, estabelecem a sanção de apreensão.

Como se percebe, a situação descrita na presente opinião revela, além da ausência de justificativa para edição da Portaria, a expressa contradição entre as disposições da Portaria e os enunciados vinculantes da Diretoria Colegiada da ANTT. Além de todos os dispositivos que tratam da organização hierárquica da Agência, as condutas descritas parecem violar, de maneira relevante, o artigo 30 do Decreto-Lei nº 4.657/1942, também conhecido como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LINDB, segundo o qual "as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas".

Essa perspectiva de violação a segurança jurídica vem sendo abordada por ações judiciais que buscam a decretação de nulidade da Portaria, algumas delas em sintonia com os argumentos acima descritos. É de se notar, contudo, que a situação poderia ser resolvida de maneira muito mais simples e eficiente, com a revogação da Portaria. Não é essa, contudo, a solução mais provável, dada a aparente inércia da Diretoria Colegiada da ANTT. A ausência de adoção de medidas, por si, é uma ocorrência com repercussões jurídicas que poderão ser eventualmente levantadas em relação à Diretoria da Agência, inclusive por consumidores lesados pela contradição evidenciada pela presente opinião.


[1] Embora esta opinião não adentre, profundamente, nesse debate, é pertinente destacar que há quem considere que o serviço prestado por intermédio das plataformas pode configurar, em algumas situações, um transporte irregular. Há quem considere, por outro lado, que a criação de uma plataforma para conexão entre interessados e prestadores de serviço não desvirtua em absolutamente nada a natureza do fretamento. Essa discussão, aliás, não representa uma novidade para o Poder Judiciário, conforme se verificar a partir das duas decisões abaixo, extraídas do repertório de jurisprudência do e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO — MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO — DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO — TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIRO — FRETAMENTO — LIVRE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE ECONÔMICA – UTILIZAÇÃO DE PLATAFORMA TECNOLÓGICA (APLICATIVO) E FRETAMENTO EM CIRCUITO ABERTO COM MAIS DE UM DESTINO (MULTITRECHO) — PRETENSÃO À ABSTENÇÃO DE FISCALIZAÇÃO E AUTUAÇÃO PELA ARTESP — MEDIDA LIMINAR — INDEFERIMENTO EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO — PRETENSÃO À CONCESSÃO DA REFERIDA MEDIDA EXCEPCIONAL (TJ-SP, Agravo de Instrumento nº 2302628-54.2020.8.26.0000, relator desembargador Francisco Bianco, 5ª Câmara de Direito Público, julg. em 26/05/2021). Transporte por fretamento — O transporte coletivo tem grande regulamentação. E justamente pela novidade das plataformas digitais nesse tido de transporte é que não se encontra situação clara de proibição a ele — Temos então uma situação de não vedação, estabelecida por força do princípio de que ninguém é obrigado afazer ou deixar de fazer alguma coisa a não ser em virtude de lei. De outro lado, o progresso é irresistível e, assim como o serviço pretendido se instalou no transporte individual, era previsível que se estabelecesse no coletivo — Por ora, então, não se nota prejuízo aos transportados, mas apenas situação que fere interesse especialmente dos ávidos cobradores de impostos – Recurso provido (TJ-SP, Agravo de Instrumento nº 2302630-24.2020.8.26.0000, relator desembargador José Luiz Gavião de Almeida, 3ª Câmara de Direito Público, julg. em 31/03/2021).

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