Público & Pragmático

Flexibilização do uso de máscaras e proteção coletiva

Autor

  • Matheus Teixeira Moreira

    é advogado pós-graduado em Direito Público pós-graduando em Direito e ESG pela Fundação Getulio Vargas-SP (FGV Law) e coordenador do Núcleo de Consultoria e Assessoria em Direito Público no escritório Justino de Oliveira Advogados.

10 de abril de 2022, 8h00

Mais de dois anos após a deflagração da pandemia de Covid-19 e a positivação de medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional (Espin), muito (ainda) se debate a respeito da utilização compulsória de máscaras de proteção facial. Se nos meses iniciais de 2020 havia uma desnecessária e infrutífera discussão que antagonizava liberdade individual e proteção à saúde pública, atualmente, em 2022, o debate em torno da utilização do equipamento ressurge a partir da flexibilização do uso de máscaras em virtude de decisões tomadas em âmbito infranacional que parecem conflitar com normas federais — ainda vigentes — nas quais a obrigação está mantida, ainda que teoricamente.

Mesmo antes de o coronavírus surgir e alterar significativamente nossas vidas, já era bastante comum encontrar pessoas utilizando máscaras faciais em público, especialmente em grandes cidades do Brasil e do mundo; essa tendência se demonstrava acentuada em períodos de queda de temperatura, quando a transmissão de doenças respiratórias, como gripes e resfriados, é mais costumeira. E isso pois há muito tempo existe a convicção, corroborada cientificamente, de que esse tipo de proteção individual minimiza as possibilidades de infecção viral — e talvez esse seja um dos motivos que explique por que a utilização de máscaras foi uma das primeiras recomendações das autoridades sanitárias na finalidade de conter a disseminação da Covid-19 [1].

Mesmo diante de orientações baseadas em parâmetros científicos, o estímulo ao uso da máscara facial foi alvo de boicote pelo governo federal e esteve no centro de uma campanha difamatória encabeçada pelo próprio presidente da República, que resistiu e persiste resistindo a essa recomendação — dentre outras situações abjetas, como esquecer o momento em que Bolsonaro arrancou a máscara do rosto de uma criança em evento público?

E, como não poderia deixar de acontecer num país governado pelo populismo de direita e que jaz imerso em um contexto de fan democracy [2], os partidários da ideologia antimáscaras logo entoaram o coro e denunciaram aos quatro ventos uma fictícia violação à liberdade individual daqueles que simplesmente não queriam proteger a si mesmos e, principalmente, os outros. A reivindicação dos antimáscaras jamais poderia prosperar, porquanto nunca foi revestida de juridicidade, tampouco de moralidade — à medida que, a partir da ponderação entre o direito à saúde pública e a liberdade de propagar o vírus, obviamente o primeiro teria de ser salvaguardado.

Apesar do insistente ruído contrário à obrigatoriedade do uso, proveniente de uma ínfima minoria de nove por cento da população [3], e em que pese todo o negacionismo que matou e continua matando, a ciência evoluiu e conseguiu desenvolver em tempo recorde imunizantes contra o coronavírus — atualmente, cerca de 75% da população brasileira está imunizada com ao menos duas doses ou dosagem única [4]. O avanço da vacinação, com a consequente redução das taxas de óbito e internação, forneceu uma sensação de controle pandêmico e de retorno gradual à "normalidade".

Em meio a esse cenário promissor, surgiu uma nova controvérsia sobre o uso de máscaras — esta sim, o tema central deste artigo de opinião — e muito diferente da histeria que antagonizava liberdade individual e saúde coletiva; refiro-me, aqui, às recentes iniciativas de governadores e prefeitos em flexibilizar a utilização do EPI, em detrimento das previsões contidas na Lei Geral da Pandemia, ainda em vigor, que mantêm a obrigação.

Recordemos o histórico do processo legislativo de interesse ao caso: nos meses iniciais da pandemia, o Congresso Nacional debatia os detalhes do Projeto de Lei 1.562/2020, responsável por alterar a Lei 13.979/2020 para dispor sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras, além de outras regras acessórias; remetido à Presidência da República, vários dispositivos do PL foram vetados, o que levou a uma descaracterização do projeto em si; em face da medida tomada pelo Planalto, partidos políticos ajuizaram uma série de arguições de descumprimento de preceito fundamental no STF [5] e, posteriormente, o próprio Congresso derrubou o veto. E, apesar de toda a celeuma, o PL em questão foi convertido na Lei 14.019, de 2 de julho de 2020.

Mais de 48 meses após a publicação da Lei 14.019/2020, alguns estados e municípios passaram a flexibilizar a obrigação; exemplo recente é o estado de São Paulo, que, em 17 de março, decretou o término da exigência de uso de máscaras em ambientes fechados, exceto em transportes públicos e em unidades de saúde [6]. Nesse sentido, surge a indagação: as decisões de governadores e prefeitos pela derrubada do uso de máscaras contrariam o conteúdo de normas federais editadas no início da pandemia? E mais: essas decisões estão de acordo com parâmetros científicos e com a jurisprudência de crise que eclodiu durante o estado pandêmico-emergencial?

Cumpre asseverar, inicialmente, que em 1º de abril, quando este artigo já estava em estado avançado de elaboração, foi publicado no Diário Oficial da União a Portaria Interministerial MTP/MS nº 17, a qual prevê, no item 8.2.4, que "[f]icam dispensados o uso e o fornecimento das máscaras cirúrgicas ou de tecido de que tratam os itens 4.2.1, 7.1 e 8.2 desta Portaria nas unidades laborativas em que, por decisão do ente federativo em que estiverem situadas, não for obrigatório o uso das mesmas em ambientes fechados". Em tese, a novidade trazida pela portaria em questão colocaria fim ao conflito entre normas locais e federais; contudo, persiste a dúvida em relação à aplicabilidade da Lei 13.979, com as modificações promovidas pela sobredita Lei 14.019.

Parece-nos contraproducente debruçarmo-nos sobre este debate sem relembrar o importantíssimo julgado do STF na ADI 6.341/DF, de relatoria do então ministro Marco Aurélio: na ocasião, o Supremo Tribunal ratificou o entendimento segundo o qual é concorrente a competência entre os entes federados para legislar e impor medidas de combate à Covid-19.

O decisum veio em um contexto de politização da pandemia, quando o governo federal travava batalhas jurídicas contra governadores de vários estados-membros em virtude de diferentes (e contraditórias) posturas na gestão da pandemia. A posição do Supremo em resguardar a autonomia dos entes subnacionais foi essencial para evitar consequências ainda mais desastrosas do que aquelas que infelizmente atingiram o Brasil devido ao negacionismo e à omissão estatal.

Além do reconhecimento da competência concorrente, a decisão em comento fixou parâmetros concretos que devem ser observados na melhor realização do direito constitucional à saúde, e aqui referimo-nos à necessária observância de critérios científicos: isto é, a efetivação do direito à saúde perpassa pela vinculação das políticas públicas às evidências científicas e às diretrizes de entidades de referência, como a Organização Mundial da Saúde.

Nesse sentido, salvo melhor juízo, é possível concluir que, a um, estados e municípios possuem competência para adotar medidas próprias em relação à gestão pandêmica e, portanto, as decisões de flexibilização do uso de máscaras em seus territórios seriam a priori válidas; e, a dois, que essas mesmas medidas de enfrentamento à Covid-19 devem ter respaldo científico, para evitar políticas públicas elaboradas com base em achismos. Nesse sentido, resta investigar se a flexibilização do uso de máscaras, neste momento, viola as recomendações pautadas na ciência.

Para grande parte dos especialistas no tema, a medida de flexibilização é precoce, tendo em vista que a pandemia persiste e, apesar da vacinação já avançada, o Brasil não evoluiu significativamente na estruturação de outros instrumentos importantes no mapeamento e combate ao coronavírus, como as testagens em massa. Isso prejudica a transparência e a confiança nos dados oficiais relacionados à pandemia e reflete que a flexibilização, especialmente em ambientes fechados, não se mostra coerente com as tendências de infecção [7].

Um ponto que parece ser comum entre os especialistas é o equívoco e a precipitação em liberar o uso de máscaras em ambientes fechados, à medida que a transmissão da Covid-19 se dá principalmente pelo ar e a curtas distâncias [8]. Portanto, os decretos de flexibilização devem ser avaliados um a um, mediante uma análise que considere critérios como razoabilidade e proporcionalidade e, é claro, parâmetros científicos.

Por derradeiro, ficamos com o fato comprovado por estudos e investigações acadêmico-científicas que evidenciam "a importância do uso de máscaras no controle epidemiológico de doenças transmitidas pelo ar" [9]. Nesse sentido, consideramos que a utilização da proteção facial ainda é crucial no combate à disseminação da Covid-19 e de doenças respiratórias em geral e é uma medida que não deve ser abandonada de forma permanente — pelo contrário, deve sempre ser incentivada, principalmente para os indivíduos que estiverem contaminados ou demonstrarem sintomas da enfermidade.

Logo, além da expectativa (e da cobrança) que se deve ter em relação às autoridades públicas para uma efetiva proteção à saúde coletiva, espera-se que o bom senso também seja o norte das atitudes da população, imersa em um ambiente de notória mudança cultural no qual a utilização de máscaras passa a ser vista como um instrumento de proteção não apenas individual — mas coletiva.


[1] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Recomendações sobre o uso de máscaras no contexto da COVID-19: orientações provisórias. 5 de jun. 2020. p. 7.

[2] Fan democracy (ou democracia de torcedores) refere-se a um processo que envolve midiatização da política, a qual passa a ser identificada com uma forma de entretenimento que confunde a posição de eleitores/cidadãos com a posição de efetivos torcedores. Nesse sentido: "há uma semelhança tridimensional entre as comunidades de fãs em torno de ‘gêneros’ de entretenimento (sejam estrelas, programas ou estilos) e os círculos políticos em torno de candidatos, partidos ou ideologias". (tradução nossa) in: VAN ZOONEN, Liesbet. Imagining fan democracy. European Journal of Communication, 39(19), 19-39, 2004.

[3] G1. Datafolha divulga pesquisa sobre o uso de máscara e percepção dos brasileiros em relação à pandemia. 25/9/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/09/25/datafolha-divulga-pesquisa-sobre-o-uso-de-mascara-e-percepcao-dos-brasileiros-em-relacao-a-pandemia.ghtml. Acesso em: 3/4/2022.

[4] G1. Mapa da vacinação contra Covid-19 no Brasil. Atualizado em 7/4/2022. Disponível em: https://especiais.g1.globo.com/bemestar/vacina/2021/mapa-brasil-vacina-covid/. Acesso em: 3/4/2022.

[5] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADPF 714, 715 e 718, DJe: 24/2/2021.

[6] BBC BRASIL. Covid: que Estados acabaram com exigência de máscaras? E o que a ciência diz sobre isso. 18/3/2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60796913. Acesso em: 3/4/2022.

[7] NEXO. Flexibilização de máscaras não tem base em evidências. 17/3/2022. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2022/03/17/%E2%80%98Flexibiliza%C3%A7%C3%A3o-de-m%C3%A1scaras-n%C3%A3o-tem-base-em-evid%C3%AAncias%E2%80%99. Acesso em: 4/4/2022.

[8] EXAME. É cedo demais para liberar o uso de máscaras no Brasil? 8/3/2022. Disponível em: https://exame.com/ciencia/e-cedo-demais-para-liberar-o-uso-de-mascaras-no-brasil/. Acesso em: 4/4/2022.

[9] REVISTA PESQUISA FAPESP. Estudos detalham a eficiência das máscaras. Ed. 312, fev. 2022. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/estudos-detalham-a-eficiencia-das-mascaras/. Acesso em: 4/4/2022.

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