Observatório Constitucional

Congresso como ator da jurisdição constitucional democrática

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

9 de abril de 2022, 8h00

A história dos constitucionalismos inglês, francês e norte-americano, cada uma a seu modo, lega-nos elementos fundamentais ao conhecimento do moderno conceito de Constituição [1]. A tradição norte-americana, em especial, permitiu-nos categorizar a Constituição como norma jurídica hierarquicamente superior e, por consequência, definir um órgão jurisdicional com a missão institucional de defendê-la de eventuais ataques de outros poderes.

Gerald Stourzh [2] comentou sua importância para o mundo: "O surgimento da Constituição como lei superior (paramount law), reinando suprema e então invalidando, se procedimentalmente possível, qualquer outra lei de inferior hierarquia no ordenamento jurídico, incluindo as leis ordinárias elaboradas pelo Legislativo, é a grande inovação e conquista do constitucionalismo norte-americano do século XVIII". O judicial review, prática em que o Judiciário declara a nulidade de atos e leis provenientes de outros poderes (Executivo e Legislativo) incompatíveis com a Constituição, é o legado maior dessa tradição constitucional, que se expandiu pelo mundo afora.

Por mais questionada que tenha sido e mesmo hoje o seja, é forçoso reconhecermos que a quase totalidade das democracias constitucionais acolhe tal prática como mecanismo de defesa da Constituição. Nos países onde foi recepcionado, caso do Brasil, o judicial review é compreendido como instrumento fundamental de garantia da Constituição, dos direitos fundamentais e da própria democracia. Tamanha a sua relevância no xadrez do poder, que sua simples previsão textual já permite avaliar o pedigree democrático da ordem constitucional do país.

A experiência acumulada com a tradição do controle judicial deu fôlego a que juízes e cortes se empoderassem, lançando nossos olhares em matéria de controle de constitucionalidade com toda a ênfase sobre o Poder Judiciário. Não por outra razão, Gustavo Zagrebelsky [3], ex-presidente da Corte Constitucional italiana, identificou que o conceito de "jurisdição constitucional", na contemporaneidade, ficou restrito à prática judicial de defender, aplicar e concretizar a Constituição, ainda que saibamos que, em sua acepção literal (iurisdictio — dizer o direito; dizer o direito constitucional), o termo abranja outras formas de proteção constitucional, a exemplo do processo de apuração de responsabilidade constitucional (do que o impeachment é uma das mais sensíveis hipóteses) ou de recusa à aprovação de projeto de lei por inobservância do devido processo legislativo [4].

Basta lembrar, nesse ponto, que países como Inglaterra e França possuem eficientes sistemas de freios e contrapesos, que, a rigor, não se alinham à tradição constitucional do judicial review, mas cumprem papeis de relevo na manutenção do equilíbrio do sistema jurídico e político. O controle judicial das leis, portanto, representa uma entre várias modalidades de defesa da Constituição.

Entretanto, a discussão sobre essas formas alternativas de controle judicial nem sempre tem despertado o merecido interesse seja do ponto de vista político-democrático, seja do ponto de vista jurídico-constitucional. A impressão que dá é a de haver uma dose de otimismo muito grande em torno do controle judicial e de seus "êxitos", deixando-se de jogar luzes sobre outras de suas modalidades possíveis e naturalizando-o ao ponto de torná-lo infenso à crítica e ao debate público.

No caso do Brasil, por exemplo, a Constituição estabeleceu um complexo sistema de jurisdição constitucional em que o Poder Judiciário, e em particular o Supremo Tribunal Federal, exerce inequívoco protagonismo, o que confessadamente se extrai pela simples leitura do caput do artigo 102 da Constituição de 1988: ("Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição").

Isso, no entanto, não significa que seja o controle judicial a única forma de defender a Constituição. Ao lado do próprio Poder Executivo, o Congresso Nacional, no arranjo constitucional de divisão de poderes, tem importante missão constitucional em relação aos abusos normativos, conforme previsão da própria Constituição Federal (v.g.: artigo 49, V; artigo 52, X), que o investe de relevante competência no exercício da jurisdição constitucional.

Vejamos algumas situações em que o controle da constitucionalidade dos atos normativos pode ser igualmente realizado pelo Congresso Nacional, com semelhança de resultado em relação ao controle judicial pelo STF, porém com a vantagem de diluir o ônus político decorrente do atrito entre instituições controladas e controladoras e de reforçar os postulados democráticos do Estado de Direito, vez que é no Legislativo a sede por excelência da expressão da vontade popular.

Em dezembro de 2020, o ministro da Educação editou a Portaria MEC nº 1.038, que determinava, a partir de março de 2021, o retorno das aulas presenciais nas instituições federais de ensino superior. Para sustar os efeitos dessa portaria, apresentou-se o Projeto de Decreto Legislativo (PDL 527/2020) [5] ao argumento de violação da norma constitucional que assegura a autonomia universitária bem como da irrazoabilidade da medida em face do crítico estágio da pandemia da Covid-19 à época. Desde sua leitura em plenário no dia 8 de dezembro de 2020, no entanto, aguarda-se decisão do presidente da Câmara dos Deputados para dar-se o devido prosseguimento ao PDL 527/2020.

Em fevereiro de 2021, no Senado, propôs-se o PDL 55/2021 contra o Decreto nº 10.630, de 12 de fevereiro de 2021, que trouxe uma série de mudanças na legislação para ampliar o acesso a armas de fogo e munição. O presidente do Senado determinou a tramitação conjunta do PDL 55/2021 com outros tantos PDLs em andamento na Casa, que tratavam de matéria correlata [6].

O relator dos PDLs, senador Marcos do Val, emitiu parecer acolhendo em parte o pedido de alguns dos PDLs, rejeitando aqueles que não foram suspensos pelo STF, que também tinha sido acionado em face desse mesmo decreto, e emitiu parecer favorável em relação aos dispositivos já suspensos pela corte. Até a presente data, porém, o processo de votação dos PDLs não foi concluído.

Em reação à Portaria Secult/MTUR nº 44, de 5 de novembro de 2021, do Secretário Especial da Cultura do Ministério do Turismo [7], que vedava a exigência de passaporte sanitário para a execução ou participação em evento cultural financiado pela Lei Rouanet, propuseram-se na Câmara dos Deputados os PDLs 987/21, 979/21 e 980/21, todos de 8 de novembro, ao argumento de violação do pacto federativo, da livre promoção da cultura e da saúde pública. Os PDLs em questão, contudo, sequer foram despachados pela presidência.

Em outro caso mais recente, citamos o Decreto nº 10.935, de 12 de janeiro de 2022, que dispõe sobre a proteção das cavidades naturais subterrâneas existentes no território nacional. Tanto no Senado por força do PDL 27/2022, quanto na Câmara através do PDL 4/2022, referido decreto foi impugnado, sem prejuízo da propositura das ADPFs 935 e 937, que tramitam no STF com o mesmo objeto.

Observemos que, em face das normas acima referidas, todas infralegais, houve impugnações perante o Congresso Nacional (Câmara e/ou Senado), que poderiam ter sido diretamente dirigidas ao STF, a exemplo do que ocorreu com o Decreto nº 10.935/2022 ou ainda com a Portaria MTP Nº 620, de 1º de novembro de 2021, que proibia ao empregador, na contratação ou na manutenção do emprego de trabalhador, exigir o comprovante de vacinação, cuja eficácia foi suspensa por decisão liminar do STF.

O que queremos destacar, sob a ótica de nossa análise, é que tanto o Legislativo quanto o Judiciário são fóruns apropriados ao questionamento e escrutínio da constitucionalidade de atos normativos, com a vantagem de que contra o Congresso Nacional o argumento de déficit de legitimidade democrática não se sustenta.

A impugnação de atos normativos perante o Congresso Nacional concede uma espécie de "respiro democrático" relativamente à sobrecarga que recai sobre juízes e tribunais investidos do poder de julgar a constitucionalidade de atos normativos, aliviando sobretudo o Supremo do ônus político de ter de confrontar diuturnamente atos presidenciais e/ou ministeriais, o que para um ambiente político tensionado cria condições para a retomada da harmonia entre os três poderes.

Delicados como sabemos serem os limites do exercício da jurisdição constitucional; a literatura atual sobre o tema é vasta, sendo de se ressaltar o já clássico conceito de "juristocracia", que ganhou ampla projeção com a obra Ran Hirschl [8], para compreender o fenômeno da expansão judicial, da judicialização da política e da eventual usurpação judicial do poder. Então, quando a função de guarda da Constituição é institucionalmente compartilhada, especialmente por órgãos revestidos de legitimidade democrática, reforçam-se as bases democráticas das instituições brasileiras ao mesmo tempo em que se garante a intangibilidade da Constituição.

Principalmente no cenário atual em que, no mundo e no Brasil, vive-se um período em que a própria ideia de democracia e de Constituição parece estar em xeque. A literatura nacional e internacional reporta diversas crises constitucionais e democráticas, sendo recorrente a utilização de novos conceitos como "erosão democrática", "erosão constitucional" e "práticas desconstituintes" [9], no qual se recomenda às cortes e juízes assumirem posições estratégicas para firmar-se a resistência democrática às investidas contrárias às instituições e à Constituição.

A tradição semântica e histórica do judicial review nos revela o otimismo com a opção da defesa judicial da Constituição. Porém, a defesa de uma jurisprudência ofensiva contra iniciativas antidemocráticas cobra seu preço político e enfrenta limites institucionais. Mais do que nunca, revela-se a importância de que o Judiciário não seja visto como única autoridade competente para refrear os impulsos abusivos de agentes políticos contrários à Constituição e à democracia e que o Congresso Nacional também seja compreendido e atue como partícipe dessa imprescindível missão institucional, arvorando-se efetivamente de suas competências constitucionais estabelecidas.


[1] Diversas contribuições teóricas resgatam esses percursos, por todos vide: SALDANHA, Nelson Nogueira. Formação da teoria constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 49-91.

[2] STOURZH, Gerald. Constitution: changing meanings of the term from the early Seventeenth to the late Eighteenth century. In: Conceptual change and the Constitution (Terence Ball and John Pocock orgs.). Lawrence: University Press of Kansas, 1988, p. 47.

[3] Cf. ZAGREBELSKY, Gustavo. La legge e la sua giustizia. Bologna: Il Mulino, 2008, p. 311-322.

[4] Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 823-839.

[8] Cf. HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press, 2007.

[9] Vide: GINZBURG, Tom. The Jurisprudence of anti-erosion. Drake Law Review: Vol. 66, 2018, p. 823-853; MEYER, Emilio Peluso Neder. Constitutional erosion in Brazil. Oxford; New York: Hart, 2021.; PAIXÃO, Cristiano. Práticas desconstituintes no Brasil contemporâneo: o etnocídio dos povos indígenas. Disponível em: https://jornalggn.com.br/cidadania/praticas-desconstituintes-no-brasil-contemporaneo-o-etnocidio-dos-povos-indigenas-por-cristiano-paixao/.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE) e do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), procurador do Estado de Pernambuco, advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

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