Questão de Gênero

Primeiras impressões sobre a violência institucional

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8 de abril de 2022, 8h00

Como já pontuamos anteriormente, é exemplificativo o rol de violências previstos na Lei Maria da Penha. A Lei nº 14.321/22, publicada no dia 1º de abril de 2022, prevê expressamente mais uma sorte de violência: a violência institucional, que não se dirige necessariamente a mulheres em situação de violência doméstica e familiar, mas a vítimas e testemunhas de crimes violentos.

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Embora por muito tempo a vítima tenha sido alijada do processo penal, as ciências criminais têm voltado seus olhares para a pessoa sobre quem recai a conduta criminosa e também para aquela que experiencia o crime (o que, por si só, já é bastante traumático). Seguindo esta guinada, a Lei nº 14.321/22, publicada no dia 1º de abril de 2022, criou um novo tipo penal, inserindo dispositivo na Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/19): o artigo 15-A, que recebeu a rubrica de "violência institucional".

Vejamos o texto da lei:

"Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:
I – a situação de violência; ou
II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º. Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).
§ 2º. Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro."

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O processo de revalorização da vítima no processo penal teve uma outra recente manifestação, que foi a Lei nº 14.245/21, chamada Lei Mariana Ferrer, sobre a qual já tivemos oportunidade de nos manifestarmos. Tal norma teve o intuito de garantir o respeito às regras de conduta processual que visem a zelar pela integridade física e psicológica da vítima de crimes contra a dignidade sexual.

No entanto, não podemos limitar a aplicação do novel tipo penal às vítimas de crimes contra a dignidade sexual. A despeito de serem as maiores destinatárias da violência institucional, elas não são as únicas.

Além das já citadas leis, outros instrumentos legislativos se destinam a evitar a violência institucional e a revitimização, como a própria Lei nº 11.340/06 e a Lei nº 13.431/17. A Lei Maria da Penha, em seu artigo 10-A, disciplina o depoimento das vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher, assim como a Lei nº 13.431/17 prevê a escuta especializada e o depoimento especial de crianças e adolescentes [1].

Aliás, o Decreto nº 9.603/18 que regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017 (a qual estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência) nos auxilia a compreender e diferenciar a violência institucional e a revitimização. Vejamos:

"Art. 5º — Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:
I – violência institucional – violência praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência;
II – revitimização – discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem;"

Podemos afirmar, então, que tais dispositivos legais formam um microssistema de garantias e proteção à dignidade das vítimas de crimes violentos. Tais instrumentos visam assegurar que as vítimas não sejam compreendidas apenas como objeto ou meios de prova, mas sim, como pessoas dotadas de dignidade e que merecem proteção em um momento de extrema vulnerabilidade. Vale reiterar que, no atual estágio do constitucionalismo, a dignidade da pessoa humana é o núcleo das constituições, seu valor supremo.

Mas, afinal, o que podemos esperar da tipificação da violência institucional como crime de abuso de autoridade?

Passemos a analisar o tipo para compreendê-lo e tecermos nossas considerações:

Como mencionado, o crime vem previsto no artigo 15-A da Lei de Abuso de Autoridade, lei esta que exige que as condutas ali previstas sejam dotadas de elemento subjetivo especial (especial fim de agir) conforme inteligência de seu artigo 1º, §1º: "As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal".

Assim, para que o agente responda pelo crime, ele deve agir com a finalidade específica ali mencionada, o que resulta em ser difícil a caracterização do tipo. Além dessa finalidade específica, o agente apenas responderá pelo crime se presente o elemento normativo do tipo consubstanciado na ausência da estrita necessidade (artigo 15-A, caput). Não basta que o agente pratique a conduta descrita com a intenção ali prevista. Há também a necessidade de que sua atuação se faça de forma desnecessária.

Resta evidente o quão subjetivo e aberto é o tipo, cuja aplicação certamente será de difícil aplicação prática.

Como sujeito ativo do crime temos qualquer autoridade pública, conforme descrito no artigo 2º da Lei nº 13.869/19. Quanto a esse ponto, não nos cabe tecer maiores comentários, mas uma ressalva deve ser feita a título de ilustração e/ou curiosidade: recorda-se o leitor e a leitora que a inovação legislativa em estudo veio a se somar à denominada Lei Mariana Ferrer? Pois bem. Aquela lei recebeu tal denominação em alusão ao caso em que a vítima teve sua dignidade desrespeitada no curso da instrução criminal pelo patrono do então réu. Ocorre que se o fato se desse hoje, este patrono não se enquadraria como sujeito ativo do crime em estudo, por não se se tratar de agente público.

Há que se reconhecer ainda que, assim como os outros instrumentos legislativos que compõem o mencionado microssistema de proteção à vítima, a nova lei é repleta da carga punitivista e midiática que cerca o atual cenário legislativo criminal. Assim como expusemos em artigo anteriormente publicado nesta coluna [2]:

"O atual cenário de política criminal caminha de mãos dadas com o que vem sendo denominado Estado pós-democrático. O Direito, em grande medida, perdeu o caráter normativo e os agentes sociais articulam políticas criminais movidos pelo senso comum e pela repercussão midiática. O Direito Penal de urgência é imediatista e tem feições apenas simbólicas que, no longo prazo, lhe retiram credibilidade e, consequentemente, força. A Lei Mariana Ferrer é reação legislativa à divulgação de uma audiência de instrução e julgamento de uma suposta violência sexual que foi amplamente divulgada na mídia, em que a comunicante foi seriamente interpelada e até mesmo humilhada pelos atores da persecução penal."

Ressalte-se que não pretendemos desqualificar a lei ou propagar sua não aplicação. No entanto, temos a consciência de que a mera tipificação de condutas não é capaz de implicar sua não ocorrência. Sabemos do valor simbólico que tais dispositivos penais trazem consigo. Porém, a proteção insuficiente não pode esbarrar nos excessos punitivistas trazidos por uma tipificação extremamente aberta, que viole o princípio da taxatividade.

Cumpre, ainda, pontuar que em razão da redação repleta de elementos normativos, pouco taxativa, pode haver por parte dos aplicadores da lei, interpretações das mais diversas. E a interpretação e convencimento jurídico do aplicador a respeito desses elementos normativos não pode ensejar o crime de abuso de autoridade. Isso em razão da vedação ao chamado crime de hermenêutica trazido pelo §2º do artigo 1º da lei 13.869/19, o qual prevê que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.

A criminalização da conduta tem, então, o valor de alertar o operador público do sistema de persecução penal quanto às suas práticas revitimizadoras por vezes consideradas inevitáveis (não o são!). Ao trazer a vítima para os holofotes da persecução penal, a norma tem a qualidade de caminhar, ao menos simbolicamente, em direção ao primado constitucional da Dignidade da Pessoa Humana embora, na prática, creiamos que a configuração do crime será de difícil comprovação.

Certo é que, como delegadas de polícia que somos, devemos pautar nossa atuação e a atuação dos agentes da autoridade pela legalidade e sempre no afã de garantir o respeito à dignidade de todos os atores da fase pré processual, evitando a ocorrência da vitimização secundária daquela que já está em alto nível de vulnerabilidade.

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