Opinião

As novas tecnologias e o devido processo legal

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8 de abril de 2022, 21h22

Os avanços tecnológicos, como é cediço, inundaram o cotidiano de todas as atividades, inclusive a forense. É nesse cenário, por exemplo, que o processo eletrônico se erige como instrumento típico  e, não tarde, único  de documentação de quaisquer atos processuais e contribui, entre virtudes e vícios, à celeridade, segurança e economia processuais. A partir dessa guinada eletrônica, os meios de resolução de conflitos absorveram diversas outras tecnologias, como espaços eletrônicos de lides, instrução probatória online e estruturação de atos jurídicos com design inteligente.

Construiu-se, nesse contexto, um ambiente online de comunicação e de administração de disputas, chamado de Online Dispute Resolution (ODR), que, em sentido amplo, representa os elementos digitais de solução de lides nos sistemas de justiça estatais, privados ou autocompositivos.

Assim, ao invés das partes se encontrarem em um lugar físico para dirimir determinado conflito, utilizam-se da tecnologia, reunindo-se em salas virtuais, em ambiente totalmente online. Nele, apresentam-se, por meio de aplicativos, links ou sites, para que as partes tenham acesso de forma rápida, eficiente e econômica, as propostas às soluções da lide  o que, inclusive, estimula a autorepresentação da parte, que pode acessar o ambiente digital independentemente de advogado [1].

Ainda, a informatização do Direito Processual Civil atinge, igualmente, os institutos desjudicializados do sistema de justiça, que, além de deslocarem o eixo decisório central para fora do Judiciário, agora se apresentam como eletrônicos, tais como os aparelhos online de serviços cartorários. Veja-se que, embora extrajudiciais e informatizados, essas esferas da justiça permanecem vinculadas aos princípios e garantias processuais e constitucionais, devendo servir à publicidade, segurança jurídica e motivação dos atos estatais [2].

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nesse afã, editou, em outubro de 2020, a Resolução n. 350, sobre as diretrizes para a cooperação entre o Poder Judiciário e outras entidades, conferindo destaque à troca de informações relevantes, que deverão ser realizadas principalmente por meios eletrônicos (artigo 8º, §3º, Res. nº 350/20, CNJ); a Resolução atinge também a produção probatória, para que a cooperação jurídica nacional abranja a obtenção e apresentação de provas, bem como os "meios de compartilhamento de seu teor" (artigo 6º, VI, Res. nº 350/20, CNJ). Reforça-se, com isso, o ambiente online destinado à solução de conflitos, à documentação de atos jurídicos e ao desenvolvimento do direito subjetivo.

E não é só a normativa do CNJ que incorpora novas tecnologias. Em seu dia a dia, os operadores do Direito, tal como advogados e membros do Poder Judiciário, revelam o uso de ferramentas de design, em crescente preocupação com a aparência de suas manifestações jurídicas, com o escopo de contornar a prolixidade, atrair o interlocutor para o conteúdo veiculado e simplificar a exteriorização do pleiteado ou decidido.

Outrossim, o Visual Law, cuja essência é o aprofundamento da tecnologia da comunicação, é instrumento para documentos mais sofisticados e com recursos visuais. A despeito de eventuais exageros, aptos a prejudicar a comunicação ao invés de beneficia-la, o movimento é decorrência da absorção do tecnológico e pode tornar a distribuição de informações mais ágil e acessível.

Perceptível, pois, a evolução do que se concebe como processo justo e efetivo. Não poderia ser diferente: o devido processo legal se modifica consoante o desenvolvimento do próprio Direito e da sociedade, motivo pelo qual a formação "do processo devido é obra eternamente em progresso" [3]. Por conseguinte, é fundamental que os sistemas de Justiça incorporem os benefícios que os avanços tecnológicos propiciam, para que se aproximem de um estado ideal de resolução de conflitos e, consequentemente, aperfeiçoem a efetividade da tutela (imposta ou consensual). Com efeito, os meios tecnológicos de informação tornaram-se imprescindíveis aos órgãos públicos [4].

Todavia, permanece a exigência de se observarem as garantias processuais, estampadas na Constituição Federal, nas normas fundamentais do processo civil e ao longo do Codex e leis adjetivos.

Ora, a absorção da tecnologia deve servir aos desejos de efetividade na resolução de conflitos, auxiliando os administradores da Justiça  e não somente às necessidades estruturais do Poder Judiciário. Assim, não obstante relevantes, as problemáticas de custeio e de abarrotamento dos órgãos jurisdicionais estatais não podem dar azo à adoção indiscriminada da tecnologia, sob pena de se privilegiar não o litigante, ansioso pelo adequado fim da lide, mas o próprio Judiciário, atropelando justamente os direitos fundamentais que também compõem o conceito de devido processo legal.

Então, por exemplo, os ODR, nos quais muitas vezes a parte se vê sem representação técnico-jurídica, precisam atuar para que o envolvido no conflito possa verdadeiramente considerar as decisões colocadas diante de si, assimilar os seus direitos e deveres frente à lide e ter reais motivos para buscar a solução não estatal ou transacionada, que ultrapassem o receio de demora e o custo dos modos tradicionais de resolução do litígio.

No mesmo sentido, a produção e a comunicação probatórias, entre entidades, eletronicamente  como as da Resolução 350/20 do CNJ , não devem se afastar do conteúdo do direito fundamental à prova: instruir as partes e o julgador acerca da verdade dos fatos, orientando-os, à luz da publicidade, contraditório e participação democrática. Portanto, os sujeitos do conflito devem ser integrados às plataformas de cooperação jurídica, na medida em que influam na formação da convicção do julgador, como deve ser em qualquer procedimento em um Estado democrático. Aliás, é bom que se enxerguem as audiências de instrução online com parcimônia e precaução, porquanto, apesar de evitarem o deslocamento de diversas pessoas, permitem manipulação de testemunhas, arranjo de discursos e uma incorreta avaliação pelo julgador do sentimento e modo de agir do depoente.

E o Visual Law e o Design Thinking, ambos ferramentas de melhoria visual na exteriorização de vontades jurídicas, não escapam da imperiosidade de adequação entre uso e garantias fundamentais. Isso porque o documento jurídico deve veicular, com ampla publicidade e precisão, as informações imprescindíveis para a compreensão e aplicação do Direito, com a sobriedade e austeridade que atividade de resolução de conflitos exige. Quando atende a isso, o Visual Law é apto a aprimorar a exteriorização da demanda, a fundamentação das decisões e o contraditório, auxiliando a transformação do espaço litigioso em um ambiente comunicativo; quando não, a tecnologia se transforma em mordaça e atrapalha a assimilação de informações entre os sujeitos envolvidos na lide, dando de ombros às garantias processuais legitimadoras da atividade jurisdicional, como uma eficaz participação no procedimento decisório.

Fato é que o acesso à justiça é basilar do Estado Democrático (artigo 5º, XXXV, CF) [5] e extrapola a noção de mero acesso ao Poder Judiciário; pelo contrário, compreende todas as formas de resolução de conflitos, notadamente as online (como os ODR), através de instrumentos eletrônicos de cooperação (por exemplo, a Resolução 350/20 do CNJ) e de ferramentas de melhoria na comunicação informática (Visual Law e Design Thinking).

Nesse contexto, a tecnologia absorvida pelo sistema de justiça não pode se esquecer dos direitos processuais fundamentais, cujo aperfeiçoamento, deveras, constitui o próprio objetivo da incorporação de ferramentas eletrônicas. Dessa forma, caso a tecnologia utilizada revele descompasso com o contraditório, a eficiência e o acesso a ambiente justo de resolução de conflitos, ela não passará de instrumento de avanço aparente, justificada por um sistema de justiça que diz cessar a litigiosidade com decisões justas e céleres, mas que não consegue cumprir o que prometeu.

Referências bibliográficas:
BOVO, Paula Ferreira. Pequenas relações entre a arquitetura de escolhas das plataformas de resolução de litígios online e a vulnerabilidade das partes auto representadas. Revista Eletrônica de Direito Processual, vol. 22, nº 2, 2021, p. 559-585.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19 ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2017, p. 75 e 77.
GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Novos Estudos Jurídicos, Ano VII, nº 14, abr. 2002, p. 9-68.
HILL, Flávia Pereira. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Desjudicialização e atos probatórios concertados entre as esferas judicial e extrajudicial: a cooperação interinstitucional online prevista na Resolução 350 do CNJ. Revista Jurídica Luso-Brasileira, n. 5, 2021, p. 895-924.
MARTINS, Marcelo Guerra. Inteligência artificial no processo civil brasileiro: eficiência e celeridade à luz do devido processo legal. Revista de Processo, vol. 320, out. 2021, p. 427-448.

[1] BOVO, Paula Ferreira. Pequenas relações entre a arquitetura de escolhas das plataformas de resolução de litígios online e a vulnerabilidade das partes auto representadas. Revista Eletrônica de Direito Processual, vol. 22, n. 2, 2021, p. 559-585.

[2] HILL, Flávia Pereira. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Desjudicialização e atos probatórios concertados entre as esferas judicial e extrajudicial: a cooperação interinstitucional online prevista na Resolução 350 do CNJ. Revista Jurídica Luso-Brasileira, nº 5, 2021, p. 895-924.

[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 19 ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2017, p. 75 e 77.

[4] MARTINS, Marcelo Guerra. Inteligência artificial no processo civil brasileiro: eficiência e celeridade à luz do devido processo legal. Revista de Processo, vol. 320, out. 2021, p. 427-448.

[5] GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. Revista Novos Estudos Jurídicos, Ano VII, n. 14, abr. 2002, p. 9-68.

Autores

  • é advogado e pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

  • é mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina, especialista em Direito Civil e Processual Civil e Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente/SP, estagiário docente do Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente/SP e advogado.

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