Opinião

Tráfico de drogas nunca foi equiparado a hediondo

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7 de abril de 2022, 7h14

Discute-se se o crime de tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06), após a vigência da Lei 13.964/2019, deixou de ser considerado equiparado a hediondo.

A discussão foi iniciada em artigo publicado pelos defensores públicos Érico da Silveira e Felipe Takayassu [1] e desde então muitos juízes de primeiro grau adotaram o posicionamento [2]. Até agora não tivemos ciência de nenhuma decisão dos tribunais superiores. Certo, porém, que a discussão ganha espaço no cenário nacional, já contando com manifestações favoráveis de Procuradores de Justiça e até mesmo com pedidos de instauração de IRDR.

Após muito refletirmos sobre a tese, inclusive em diálogo direto com os autores do texto originário, chegamos à conclusão de que a Lei 13.964/2019 não afastou a hediondez por equiparação do crime de tráfico de drogas. Tal equiparação nunca existiu.

Tratar o crime de tráfico de drogas como equiparado a hediondo tornou-se um vício de linguagem tão incrustrado no pensamento dos operadores do Direito e legisladores, que a nova lei deu regramento diferenciado aos crimes equiparados a hediondo, mas sem se referir propriamente quais são eles; também afirmou que a forma "privilegiada" do tráfico (causa de diminuição de pena do §4º da artigo 33 da Lei 11.343/06) não é equiparada a hediondo, tal como o Poder Judiciário, que reluta enxergar a falta de legalidade na equiparação, e que no HC 118.533 (STF) afastou a hediondez por equiparação do tráfico quando há aplicação de causa de diminuição de pena prevista no §4º.

O vício de linguagem veio facilitar o tratamento dos crimes previstos no mandamento de criminalização constitucional do artigo 5º, XLIII da CF/88, em conflito com o próprio mandamento.

Por que nunca percebemos que o crime de tráfico de drogas nunca foi equiparado a hediondo? Porque o tratamento infraconstitucional do crime de tráfico de drogas era exatamente o mesmo, senão pior, do que o regramento atinente aos crimes hediondos. Somente agora há tratamento jurídico diverso em relação à progressão de regime prisional.

A redação anterior do artigo 2º, §2º da Lei 8.072/90 (revogada pela lei "anticrime") dispunha: "§2º A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do artigo 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984";

Nota-se referência expressa aos crimes narrados no caput do artigo 2º da Lei, dentre eles o tráfico de drogas, dilatando os prazos para a progressão de regime prisional, tal como os crimes hediondos.

Após a Lei 13.964/2019 os prazos das progressões de regime passaram a ser concentrados no artigo 112 da Lei de Execução Penal (LEP  Lei 7.210/84) e, sobre os crimes equiparados a hediondo passou a dispor: "V  40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário; VII – 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado". Não há referência expressa ao crime de tráfico de drogas ou sequer menção aos crimes elencados no artigo 2º da Lei 8.072/90, mas mera referência aos crimes hediondos e equiparados. E quais são esses?

Cuida-se de um mandado de criminalização constitucional, que por sua vez explicita e dirige ao legislador o dever de proteção de determinado bem jurídico. São limitações à liberdade de configuração do legislador penal, implicando numa obrigação de fazer. Portanto, o legislador está obrigado a seguir a orientação constitucional, dentro dos limites estabelecidos, isto é, pode ampliar a proteção do bem jurídico (como fez em relação ao livramento condicional e à progressão de regime), mas nunca apresentar proteção deficiente [3]. Como será visto adiante, o legislador infraconstitucional deu o tratamento adequado ao tráfico, nos limites da CF/88 e até além.

Outros são os limites. Em razão do princípio da legalidade, da taxatividade (proibição de analogia in malan partem), vedação da interpretação favor rei [4] e da interpretação pro homine [5], para que determinado crime seja considerado hediondo ou equiparado a hediondo, deverá existir texto legal que expressamente indique tal natureza.

A Constituição Federal/88, no artigo 5º, XLIII estabelece: "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem" (o mandado de criminalização é expresso para os fins mencionados – esse é o limite da proteção deficiente). A Lei 8.072/90 traz redação similar: "artigo 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I – Anistia, graça e indulto; II – fiança" (o legislador infraconstitucional atendeu ao mandado de criminalização tal como indicado). O artigo 44 da Lei 11.343/06 igualmente estabelece as mesmas diretrizes e ainda acrescenta algumas: "Os crimes previstos nos artigos 33, caput e §1º, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos. Parágrafo único: Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico" (o legislador ampliou o âmbito de proteção do mandado de criminalização para dispor sobre o livramento condicional, liberdade provisória e conversão da PPL por PRD) [6].

De qualquer forma, fica evidente que a CF/88 e as Leis 8.072/90 e 11.343/06 não equipararam o crime de tráfico de drogas ao crime hediondo, mas tão somente conferiram-lhe tratamento diferenciado (em razão da gravidade e do mandado de criminalização), para os fins especificamente (taxativamente) apontados, dentre eles, a inafiançabilidade e a insuscetibilidade à graça, anistia e indulto, além da fração diferenciada para o livramento condicional. Interpretar tais dispositivos legais sob justificativa da "intenção do legislador" (mens legis) ou para preencher a lacuna (para estender os efeitos à progressão de regime) é vedado pela proibição do ativismo judicial (papel do legislador) e da analogia in malan partem.

A lei infraconstitucional poderia ter apontado o crime de tráfico de drogas como equiparado a hediondo, mas não o fez. Resguardou-se copiar o texto constitucional e ampliar a proteção em relação ao livramento condicional e outros. Sobre o crime de tortura, inclusive, diga-se o mesmo. O artigo 1º, §6º da Lei 9.455/1997 estabeleceu: "O crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia".

De maneira diferente o legislador tratou o crime de terrorismo (Lei 13.260/2016), ao expressamente apontar: "Aplicam-se as disposições da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, aos crimes previstos nesta Lei", isto é, aos crimes de terrorismo aplica-se as disposições da Lei dos Crimes Hediondos, equiparando o terrorismo a hediondo (ainda que sem uma redação tão clara – mas taxativa).

Recentemente o STJ [7] e o STF [8] decidiram que as alterações promovidas pela Lei 13.964/2019 sobre a progressão de regime resultaram em uma lacuna impossível de ser preenchida pelo Poder Judiciário, consistente na diferenciação entre reincidência genérica e específica (sem previsão de % diferenciada ao reincidente genérico). Para tanto valeram-se, dentre outros, do princípio da legalidade, da taxatividade (e derivado da vedação de analogia in malan partem) e vedação da interpretação favor rei, princípios orientadores deste presente caso.

Nota-se, portanto, não se tratar de afastamento da hediondez, mas sim de se reconhecer que o crime de tráfico de drogas nunca foi equiparado a hediondo. A CF/88 insere o tráfico de drogas no mesmo mandado de criminalização dos crimes hediondos, mas não exige que o tratamento seja idêntico em relação à progressão de regime, de tal forma que se torna perfeitamente possível chegar à seguinte conclusão: embora o tráfico de drogas tenha tratamento igual aos delitos hediondos em relação a inafiançabilidade, a insuscetibilidade à graça, anistia e indulto e livramento condicional, isso não permite que se chegue à conclusão de que este delito é, em si, equiparado a hediondo.

Ademais, sobre a redação do artigo 112, §5º da LEP: "Não se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de tráfico de drogas previsto no §4º do artigo 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006", esclarece-se ser vedada a interpretação em sentido contrário (a contrario sensu), seja por conduzir à equiparação de todos os crimes aos hediondos, senão o tráfico de drogas previsto no §4º do artigo 33 da Lei 11.343/06, tal como em função das orientações interpretativas acima já trabalhadas, merecendo destaque a proibição de arguir a intenção do legislador (REsp 1.910.240, já mencionado).

E mais, uma norma teoricamente benéfica não pode nunca ser utilizada em desfavor do interessado na norma. Seja pela força constitucional da vedação da analogia in malan partem (que seria consequência lógica da interpretação a contrario sensu), seja pelo silêncio normativo advindo com a nova lei, a conclusão óbvia a que se chega é de que o tráfico de drogas jamais foi equiparado a hediondo.

Outro importante argumento que corrobora a conclusão aqui tecida diz respeito ao próprio mandado de criminalização constitucional, que aponta que os crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e "drogas afins" devem ter tratamento mais gravoso, indiretamente indicando que outros crimes previstos na Lei 11.343/06 também deveriam ter tratamento mais gravoso, tais como o crime de associação para fins de tráfico de drogas (art. 35 da Lei de Drogas) e de financiamento do tráfico de drogas (artigo 36 da Lei de Drogas).

Contudo, é pacífico na jurisprudência do STJ que tais crimes não são hediondos ou equiparados [9], demonstrando que a interpretação a contrario sensu é admitida apenas em benefício do réu. Exemplo disso encontramos no artigo 44 da Lei de Drogas, taxativo quanto ao tratamento diferenciado em relação aos delitos dos artigo 33, caput e 34 a 37, cuja interpretação em sentido contrário conduz à conclusão de que os demais crimes não merecem tal tratamento. O sentido contrário do artigo 112, §5º da LEP estabelecesse norma gravosa, tornando ilegal a interpretação a contrario sensu.

Interpretar desta forma, além de respeitar os princípios constitucionais orientadores deste presente caso (já citados parágrafos acima), respeita, também, a própria função do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito, que é, segundo Zaffaroni [10], "de contenção e redução do poder punitivo". Isso não significa, por óbvio, que as demais disposições constitucionais e infraconstitucionais a respeito dos delitos da lei de drogas que de alguma forma se assemelham a mandamentos de delitos hediondos não sejam respeitadas. Pelo contrário: faz com que o que não se está previsto permaneça inexistente, como ao se concluir que o tráfico nunca foi equiparado a hediondo e que, com a lei "anticrime" cheguemos à conclusão de que por se tratar de crime comum (com tratamento diferenciado em relação à fiança, graça, anistia e indulto) cometido sem violência ou grave ameaça, deve obedecer às frações de 16% se primário e 20 % se reincidente específico na prática de crime de tal natureza.


[1] DA SILVEIRA, Érico Ricardo; TAKAYASSU, Felipe de Mattos. Tráfico de drogas e a progressão de regime: a lei anticrime e a não hediondez do delito. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-18/tribuna-defensoria-trafico-drogas-progressao-regime-delito-comum .

[2] Para acesso facilitado, acesse a pasta compartilhada disponível no: https://www.instagram.com/puxandopena/

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2015. p.490/494; SILVA, Luciana Caetano; et. al. Indicações constitucionais de criminalização. In: PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Constitucional: a (des) construção do sistema penal. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 305/324; e Voto do ministro Gilmar Mendes no HC 118533, relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199  DIVULG 16-09-2016  PUBLIC 19-09-2016.

[4] Diretriz do Estado democrático de Direito que dispensa ao réu um tratamento diferenciado, baseando-se precipuamente na predominância do direito de liberdade, quando em confronto com o direito de punir do Estado.

[5] Assegura, no conflito de normas, aquela que mais amplia os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.

[6] Não podemos ignorar que o dispositivo citado foi parcialmente declarado inconstitucional, incidenter tantum, no Habeas Corpus 104.339/SP de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no que se referia à expressão "liberdade provisória". Destacamos também que, assim como houve declaração de inconstitucionalidade de parte do art. 44 da Lei de Drogas, o mesmo ocorreu com a expressão "vedada a conversão em penas restritivas de direitos" do §4º do artigo 33. Tal decisão ocorreu inicialmente (2010) por meio do Habeas Corpus 97.256/RS, de relatoria do ministro Ayres Britto, e, posteriormente, com a Resolução número 5 do Senado Federal (2012).

[7] "Ainda que provavelmente não tenha sido essa a intenção do legislador, é irrefutável que de lege lata, a incidência retroativa do art. 112, V, da Lei nº 7.210/1984, quanto à hipótese da lacuna legal relativa aos apenados condenados por crime hediondo ou equiparado e reincidentes genéricos, instituiu conjuntura mais favorável que o anterior lapso de 3/5, a permitir, então, a retroatividade da lei penal mais benigna" (REsp 1.910.240-MG, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 26/05/2021, DJe 31/05/2021);

[8] "2. A Lei 13.964/2019, ao alterar o artigo 112 da LEP, não tratou, de forma expressa, das condições para progressão de regime do condenado por crime hediondo ou equiparado reincidente em crime comum, somente disciplinando a gradação da reprimenda do apenado primário (inciso V) e do reincidente específico (inciso VII). 3. O silêncio normativo, contudo, deve ser saneado em atenção aos princípios norteadores da hermenêutica penal, cumprindo observar a proscrição à analogia in malam partem. 4. Havendo dois incisos que, por analogia, poderiam ser aplicados ao apenado (no caso, o inciso V e o inciso VII), o dispositivo mais benéfico ao acusado (inciso V) é a única solução possível, pois a adoção do critério mais gravoso inevitavelmente importaria afronta ao princípio da vedação à analogia in malam partem e do favor rei" (RHC 200879, relator(a): EDSON FACHIN, Segunda Turma, julgado em 24/05/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-113  DIVULG 11-06-2021  PUBLIC 14-06-2021)

[9] AgRg no AgRg no HC 678.393/RJ, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 28/09/2021, DJe 04/10/2021.

[10] ZAFFARONI, E. Raúl. BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan. 2003, 4ª edição, página 41

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