Opinião

Os filhos "de quatro patas" da pandemia e o crescimento das famílias multiespécie

Autor

  • Gabriela Regina Silva Aguiar

    é advogada instrutora da 4ª Turma do TED/OAB pós-graduanda em Direito Processual Civil pela FGVLaw pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela PUC-SP graduada pelo Mackenzie membra efetiva da Comissão de Direito de Família e Sucessões da Subseção de Santo Amaro da OAB-SP e autora de artigos jurídicos na área familiarista.

6 de abril de 2022, 6h02

A tese aristotélica de que "o homem é um ser social" nunca fez tanto sentido quanto em tempos pandêmicos, não apenas em razão da evidente preocupação e insegurança sobre o porvir que permeou a humanidade com a decretação da pandemia pela OMS (Organização Mundial da Saúde) em março de 2020, mas principalmente pelo alto custo do isolamento social.

Os afetos líquidos, vínculos fluidos e instituições familiares cada vez mais rarefeitas passaram a ser substituídos pela hesitação sobre o futuro da vida humana, mas não só isso: a pandemia do coronavírus despertou verdadeiro apreço pela alteridade, valorizando em larga escala todo tipo de laço que poderia ser criado (ou que já se encontrava sedimentado), endossando o inequívoco valor jurídico do afeto dentro do Direito das Famílias.

Aqueles que já conviviam com outra pessoa ou com um núcleo familiar mais extenso foram obrigados a encarar os desafios da convivência ininterrupta e diuturna, o que em muitos casos catalisou dissoluções de vínculos conjugais já falidos, como ilustra a crescente de 24% na taxa de divórcios no Brasil em 2021, conforme dados do Colégio Notarial do Brasil [1].

Por outro lado, ainda que a solitude seja especialmente atrativa a alguns, quando retirada a possibilidade de interação social presencial torna-se verdadeiro martírio, o que certamente as áreas do conhecimento afins aos fenômenos psíquicos melhor se debruçam do que o presente ensaio.

Todavia, fato é que quando a criatividade chegou ao limite e o contato virtual passou a gerar clara antipatia, as famílias sentiram a necessidade de aumentar os seus membros, o que não necessariamente conduziu a um baby boom, tanto que a taxa de natalidade no Brasil na pandemia registrou queda de 6,2% segundo dados do Portal da Transparência dos Cartórios.

Mas, considerando que não apenas de seres humanos é que as famílias são constituídas, na quarentena verificou-se um exponencial crescimento na procura pela adoção de cães e gatos na ordem de 400%, conforme dados da União Internacional Protetora dos Animais (Uipa-SP) [2].

Com a integração de animais de estimação à rotina de quarentena, home office e cuidados sanitários, muitos paulistanos receberam um afago em meio à complexa maré de insegurança e incertezas trazida pela pandemia, tornando impraticável fechar os olhos para o novo modelo de família que cada vez mais se torna recorrente: a família multiespécie.

Atualmente a doutrina civilista identifica que a família possui evidente função instrumental, de modo que sob um prisma eudemonista [3], a comunhão de vidas presta-se ao progressivo desenvolvimento da felicidade de seus membros, que pela subjetividade do conceito pode ser alcançada das mais variadas formas, inclusive com a presença de animais de estimação.

Como produto da obsoleta visão antropocêntrica do Direito, a legislação civil e todos os diplomas a ela afetos sequer identificavam a dignidade dos animais, tanto que embora haja reconhecida atividade legislativa em prol do reconhecimento do status jurídico de "seres sencientes", na linha do atual entendimento jurisprudencial (ADI 4.983, REsp 1.115.916 e REsp 1.797.175), os animais ainda são tratados como “coisa” perante o Código Civil.

A superação do vetusto entendimento deve ocorrer inclusive pela via legislativa, posto que se o que aproxima os animais dos seres humanos e os afasta das coisas é justamente o fato de terem vida, inegável a titularidade de direitos [4].

Assim, com o desenvolvimento de uma nova fase no Direito Ambiental que, como bem assinalado por Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer [5], inaugura o paradigma jurídico constitucional biocêntrico ou ecocêntrico, passou-se a verificar a (1) atribuição de personalidade jurídica aos animais com o estabelecimento de formas e procedimentos de representação adequada dos seus interesses e direitos pelo Ministério Público, Defensoria Pública, Associações de Proteção aos Animais ou por quem detenha sua guarda (Projeto de Lei nº 145/2021); (2) reconhecimento de sua capacidade processual e legitimidade para reinvindicação judicial dos seus direitos [6] e (3) a cada vez mais crescente preocupação com a sua guarda e convivência familiar (Projeto de Lei nº 62/2019 da Câmara dos Deputados [7]).

Portanto, diante desses avanços normativos e jurisprudenciais haja vista a clara incongruência entre o regime jurídico civilista e a Constituição Federal, a paradigmática mudança no sentido de atribuir direitos fundamentais aos animais não humanos, na esteira do REsp 1.797.171/SP, certamente impulsionou a atual conceituação da família multiespécie.

Se a mínima ingerência estatal nas relações particulares se deve justamente a privilegiar a liberdade dos seus componentes, forçoso concluir que não cabe ao Estado definir o que é família e como ela deve ser composta.

Partindo dessa premissa, a remodelagem proporcionada pelo afeto promoveu demarcações familiares tão plurais a ponto de em determinadas situações valorizá-lo em detrimento dos vínculos biológicos.

Cirurgicamente, Germana Belchior e Maria Ravely [8] esclarecem: "(…) Ser pai ou mãe vai muito além do ser ou não ser imposto pelo ordenamento jurídico, é sentir-se, todos os dias, responsável e amar incondicionalmente aquele ser, independentemente de ser uma pessoa ou um animal". e se o afeto na relação humano-animal é facilmente aferível, por que negar a relação paterno ou materno-filial?

Ora, o animal claramente é um filho do afeto, segundo a doutrina de Maria Berenice Dias [9], posto que na família multiespécie não só há sentimentos de amor e cuidado, mas os seus tutores abdicam de determinados atos em prol de seus animais, a exemplo de viagens, evitar determinados produtos de limpeza em virtude de alegrias e até mesmo retornar mais cedo para casa a fim que o animal não fique tanto tempo só.

Assim, se filhos são, se lhes é destinado amor, carinho e todos os cuidados inerentes a essa relação, tanto que diante da inércia do legislador em acompanhar as mudanças da sociedade aos animais, a jurisprudência caminha pela aplicação das normas de proteção aos filhos (humanos), deve-se, analogicamente, estender a eles todos os direitos decorrentes de tal condição, a exemplo do direito de propriedade.

Sem que se adentre na discussão de eventual capacidade sucessória dos animais, o direito de propriedade também existe sem que necessariamente precise ocorrer o óbito do seu tutor, o que se verifica em situações como o impedimento de sua circulação em áreas condominiais comuns.

Em circunstâncias como essa, a tão defendida dignidade dos animais e a sua titularidade de direitos fundamentais é completamente desconsiderada, reforçando o entendimento de que coisas são, e por o serem merecem serem tratados não como protagonistas dos núcleos familiares que integram, mas como meros coadjuvantes.

Necessário frisar, contudo, que não se advoga pela aplicação irrestrita do direito de circulação dos animais nos espaços condominiais, até porque dentro da liberdade de constituir família cada núcleo estrutura-se como bem entender, com ou sem animais, o que merece igual respeito e consideração.

Todavia, o que não se pode admitir é que a sociedade civil, na contramão do esforço doutrinário e jurisprudencial, reforce o entendimento de que os animais são coisas, negando a realidade de tantas famílias multiespécie.

O papel contramajoritário do Poder Judiciário e das instituições que são expressão do regime democrático deve ser prestigiado a todo momento, não podendo ser admitido desarrazoados retrocessos, sobretudo pois reconhecer e regulamentar uma realidade não significa dizer que ela passa a ser mandatória a toda sociedade.

À luz da evolução dos agrupamentos familiares ao longo do tempo, conclui-se que ainda que mudem os valores, a quantidade de membros e as suas características, o intuito de constituir família permanece o mesmo. E se como colocado por Luiz Edson Fachin [10], a família como fato e fenômeno antecede, sucede e transcende o jurídico, quem será capaz de categorizar a família tradicional brasileira?


[1]FAMÍLIA. Instituto Brasileiro de Direito. Divórcios crescem 24% no Brasil em 2021 e chegam a 37 mil no primeiro semestre. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8746/Div%C3%B3rcios+crescem+24+por+cento+no+Brasil+em+2021+e+chegam+a+37+mil+no+primeiro+semestre.

[2] BRASIL, CNN. Adoção de cães e gatos cresce durante a quarentena. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/adocao-de-caes-e-gatos-cresce-durante-a-quarentena/.

[3] Eudemonismo é a doutrina que tem como fundamento a felicidade como razão da conduta humana, considerando que todas as condutas são boas e moralmente aceitáveis para se buscar e atingir a felicidade. Assim, família eudemonista é aquela que tem como princípio, meio e fim a felicidade. (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões:ilustrado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 296).

[4] LEITÃO, Alexandra. Os espetáculos e outras formas de exibição de animais. p. 17 In: DUARTE, Maria Luísa GOMES, Carla Amado (Coord) Direito (do) Animal. Coimbra: Almedina, 2016.

[5] SARLET, Ingo; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de Direito Ambiental. 2ª ed. São Paulo: Grupo GEN, 2021, p. 156.

[6] CONJUR. TJ-PR decide que animais podem ser parte em ação judicial. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-16/tj-pr-decide-animais-podem-parte-acao-judicial.

[7] DEPUTADOS, Câmara dos. Projeto permite que animais figurem individualmente como parte em processo judicial. Disponível em; https://www.camara.leg.br/noticias/726009-projeto-permite-que-animais-figurem-individualmente-como-parte-em-processo-judicial/.

[8] BELCHIOR, Germana Parente Neiva; DIAS, Maria Ravely Martins Soares. Os animais de estimação como membros do agrupamento familiar. In: Revista Brasileira de Direito Animal, v. 15, nº 3, Set-Dez 2020, p. 31-52. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/38788/21900.

[9] DIAS, Maria Berenice. Filhos do afeto – Questões Jurídicas.2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 34.

[10] FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de Família: curso de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 60.

Autores

  • é advogada do escritório F. Jogo Advogados Associados, graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de São Paulo (PUC-SP) em Direito de Família e Sucessões, membra efetiva da Comissão de Direito de Família e Sucessões da Subseção de Santo Amaro da OAB-SP e autora de artigos jurídicos.

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