Opinião

Uma rosa para Rosah e para todas as mulheres do Direito Constitucional

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5 de abril de 2022, 7h04

É louvável a ideia concretizada pelo Supremo Tribunal Federal de publicar mais um texto de seleção temática, desta feita, o novíssimo "Produção de Mulheres em Direito Constitucional", asseverando que "a iniciativa se justifica porque, embora haja significativas obras sobre temas constitucionais escritas por mulheres, esses trabalhos, em geral, não encontram o mesmo eco na comunidade acadêmica quando comparados a trabalhos de renomados constitucionalistas do gênero masculino".

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Rosah Russomano
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Trata-se, aparentemente, de uma bem intencionada tentativa de aplacar e superar o machismo acadêmico, muitas vezes também de viés institucional. Assim, para concretizar uma maior divulgação de excelentes trabalhos acadêmicos das mulheres brasileiras, e, nas palavras do presidente da Corte, ministro Luiz Fux, que faz o prefácio, tal se torna urgente pois: "É necessário não apenas dar voz às mulheres, mas também amplificar essa voz e fazer coro com elas. Nesse sentido, ressalta-se o poema Eu-mulher, de Conceição Evaristo".

Paradoxalmente, produções acadêmicas e institucionais são relevantes e perigosas, pois ao mesmo tempo em que sugerem uma maior atenção a certos temas, autoras e autores, pesquisadoras e pesquisadores, jogando luzes em certo grupo de produções, muito embora, como óbvio, também possam produzir sombras em tantas outas e outros, além da sempre presente hipótese de deixar de fora outras não citadas. De fato, o caso mostra uma grande ausência, profundamente sentida e que precisa ser referida e ressaltada, qual seja, a constitucionalista doutora Rosah Russomano.

Para uma reflexão inicial, citemos o verbete da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, que menciona: "nasceu em Pelotas no dia 31/10/1919. Casou-se com Alcides de Mendonça Lima, seu mestre e orientador na Faculdade de Direito de Pelotas. Colou grau naquela Faculdade em 1947. Foi professora de Direito Constitucional e Direito Administrativo da mesma faculdade, onde iniciou e desenvolveu sua admirável carreira no magistério superior. Participou de diversos empreendimentos relevantes na área do Direito, atuando inclusive nos trabalhos da Comissão que redigiu o Anteprojeto da Constituição Brasileira de 1988, sob a coordenação de Afonso Arinos de Melo Franco. Publicou vários livros e colaborou em inúmeras revistas jurídicas. Faleceu em Pelotas no dia 18/05/1999, aos 79 anos de idade. É considerada por todos os analistas da Ciência do Direito como 'mulher inteligentíssima e percuciente, dotada de extraordinário saber jurídico e marcante nobreza de caráter, virtudes que sempre a notabilizaram'".

Escrevendo sobre "O Pioneirismo das alunas da Faculdade de Direito de Pelotas (RS)", a pesquisadora Valesca Brasil Costa ressalta: "a história da Faculdade de Direito de Pelotas por meio das mulheres, as quais estão inscritas na história da mesma, como: Heloísa do Nascimento (primeira professora de Direito do Brasil); Sophia Galanternick, (primeira mulher promotora pública no RS); Maria Soares, (juíza de Direito no interior do RS); Rosah Russomano, (primeira mulher a receber titulo de professora Emérita na UFPel); Gilda Russomano (que deu a honra de ser a primeira mulher no Brasil a ser diretora de uma Faculdade de Direito)".

Impossível não recordar o famoso discurso proferido na paraninfa de 1947 por Rosah, sobre a condição feminina (título: "A libertação social da mulher"), em que disse: "A mulher, contudo, acompanhando o roteiro das reivindicações cívicas, adquiriu o direito público, antes de obter outras concessões. Com sua participação ativa na vida social, sentiu-se que sua influência seria benéfica também na vida política dos povos, contribuindo para a formação sistematizada do direito. Daí, surgiu o voto feminino, mesmo pesando sobre ela o ferrete de sua suposta incapacidade. E tão significativo foi esse passo decisivo, para o alcance do objetivo final, que a mulher casada exerce aquele direito independente do consentimento marital. Se, pois, em verdade, ela coopera na política do país; se conseguiu aprimorar sua intelectualidade, garantindo sua subsistência, a libertação jurídica há de ser estatuída, fatal e inevitavelmente".

Também convém não esquecer o fragmento das memórias do desembargador Ladislau Fernando Röhnelt quando de sua entrevista ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sobre sua passagem pelo famoso ginásio Pelotense, em que menciona: "um colégio público de grau secundário, mantido pelo município, dotado de um seleto quadro de professores, dos quais recebi as melhores informações acerca do estado das ciências da época, as quais, mais tarde, me seriam muito úteis aos meus estudos universitários. O Pelotense era um ginásio aberto aos dois sexos, o que me ensejou conhecer e relacionar-me por muito tempo com Rosah Russomano, aquela que seria depois uma das mais eminentes constitucionalistas do país, de saudosa memória, graças a cuja inteligência o Brasil jurídico foi enriquecido com obras de apreciável valor científico".

Dentre suas obras, claro, os expressivos livros "Curso de Direito Constitucional", "Anatomia da Constituição", "O Poder Legislativo na República", "Dos Poderes Legislativo e Executivo", "Você Conhece Direito Administrativo?", além de centenas de artigos difundidos sobre temas constitucionais os mais diversos, publicados Revista de Informação Legislativa, como "Função social da propriedade", "O Senado e o bicameralismo federal brasileiro", "A fixação de prazos na Constituição de 1967", "Facetas da Constituição de 1824", "Sistemas eleitorais e justiça eleitoral", "Ontem e hoje o voto distrital no Brasil", "Imunidades parlamentares", " Facetas da "Comissão Afonso Arinos: e eu", " Enfoques constitucionais da pena e a problemática de sua execução", "O Ministério Público e o Procurador-Geral da República", "Liberalismo e democracia social", dentre muitos e inúmeros outros, que lhe habilitaram, sem favor nenhum, na sua destacada participação na Constituinte de 1987-88, cujos debates na comissão de sistematização sobre temas centrais para as mulheres, um tema que parece estar em busca de autoras e autores.

No momento em que o Supremo Tribunal Federal celebra a produção acadêmica das mulheres no Direito Constitucional, com a bela e sempre relevante contribuição de um elevado grupo de pessoas, tanto para elaborar a lista e recolher as contribuições, que precisam ser mais conhecidas e sempre divulgadas, pois temos uma tradição dúplice: mulheres pioneiras como a senhora Myrtes de Campos e a doutora Rosah Russomano, ao tempo em que muitas das pioneiras caem no esquecimento generalizado, inclusive em coletânea que deveria ser referência central.

Finalizando a presente reflexão em forma de homenagem póstuma, lembramos, ainda, do ato simbólico de entregar uma rosa em riste para o outro, como um convite ao exercício da analética, de Enrique Dussel, enunciada em seu "filosofia da libertação", "na dialética ampliada, porque incorpora a possibilidade da construção de outra versão dos fatos a partir daquele que antes era silenciado, com base na alteridade do distinto e na exterioridade do sistema", pois: "a consciência ética é um encontro complicante, uma analética unidade de dois momentos: a voz-do-Outro e o ouvido aberto da Totalidade. A abertura pelo sim-ao-Outro ou amor-de-justiça que irrompe no Outro como outro benevolentemente". Aqui, uma primeira hipótese de uma rosa analética para (e a partir de) Rosah.

Num outro sentido, falando sobre rosas, lembramos ainda de "Boola", texto clássico de Duncan Kennedy, um dos pais fundadores do "CLS – Critical Legal Studies", ao dizer sobre a importância da imagem mais forte, por ele presenciada nos anos de graduação, enquanto estudante de direito em Yale, em 1960: um homem e uma mulher jovens, entregando rosas para os integrantes da Guarda Nacional, chamados para proteger as lojas na rua contra saques ou apenas contra possíveis e temidos atos de desobediência civil no período do julgamento dos Panteras Negras, em New Haven.

Resumia Duncan Kennedy, sobre a força daquela imagem: "Os caras da Guarda Nacional inicialmente estavam aterrorizando em seus uniformes, com seus rifles, mas uma olhada mais de perto revelou dentro deles uns garotos de colégio tipo classe média alta, não se esforçando para parecer insensíveis, apenas embaraçados, desviando os olhos enquanto os portadores das rosas se aproximavam deles ao longo da calçada. Uma garota perguntou: 'Ei, Joe, o que você está fazendo aqui?' Mas também havia faces de trabalhadores e algumas faces raivosas do tipo 'seu babaca'. Havia faces brancas e negras na linha. As rosas não eram inocentes".

Por fim, temos uma outra imagem possível das rosas, de um outro tipo de metáfora, naquela que se eternizou nos protestos capitaneados por Espertirina Martins, na famosa "Guerra dos Braços Cruzados", uma greve que ocorreu na cidade de Porto Alegre, em 1917, e sobre a qual o poeta GOG também eternizou na música "Buquê de Espertirina", narrando o momento em que durante o protesto, duramente reprimido com violência pelas forças estatais, contou com a manifestante avançando com um buquê de rosas que continha um presente escondido.

É a partir das três imagens, tão diferentes entre si, uma rosa para um diálogo aberto (do Outro, com o Outro e para o Outro, e a partir do Outro), além de uma outra rosa para os canos fumegantes dos armamentos adversários, e uma outra rosa para debelar e repelir a violência de uma dolorosa agressão oficial, que fica aqui, portanto, emulado o ato de estender uma rosa. Uma rosa para o Supremo e para todas as mulheres alunas e pesquisadoras de Direito Constitucional. Uma rosa para Estado e para as instituições, e, ainda, para aquelas que estão à margem deles. E, claro, uma rosa para Rosah, eternamente presente!

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