A Nova Constituição

A inconstitucionalidade do controle judicial das normas interna corporis

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4 de abril de 2022, 18h16

É incontroversa a possibilidade de controle judicial sobre o processo de elaboração dos atos normativos quando há desrespeito às regras constitucionais. Porém, nos casos em que se discutem normas regimentais das Casas Legislativas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem apontado para a impossibilidade do controle jurisdicional das chamadas normas interna corporis. A distinção é relevante, notadamente, sob a ótica da preservação da harmonia e separação dos poderes, haja vista a necessidade de se equilibrar as ingerências do Poder Judiciário sobre o processo legislativo.

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Em recente julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.297.884, incluído na lista de julgamento do Plenário Virtual encerrado no dia 11/6/2021, os ministros do STF reiteraram referido entendimento e acordaram, por maioria, que não cabe ao Poder Judiciário realizar o controle jurisdicional da interpretação do sentido e do alcance das normas regimentais das Casas Legislativas, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo. Tal matéria teve sua repercussão geral reconhecida no Tema nº 1.120.

O mencionado recurso extraordinário foi interposto por um cidadão, mediante a Defensoria Pública, contra acórdão da Primeira Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT) que, ao julgar arguição de inconstitucionalidade incidental, declarou a inconstitucionalidade formal do artigo 4º da Lei nº 13.654/2018 — no ponto em que a norma alterou a redação do artigo 157, §2º, inciso I, do Código Penal —, sob a alegação de vício no processo legislativo de aprovação da referida lei. Argumentou-se supressão de uma das etapas do processo legislativo constitucional.

A Lei nº 13.654/2018 alterou a tipificação do crime de roubo e suas formas circunstanciadas, em especial aquela praticada mediante o uso de arma, objeto do caso em exame. O recorrente assaltou um ônibus de transporte coletivo, ameaçando o motorista e o cobrador utilizando-se de uma faca. Ele foi preso em flagrante delito e condenado, pelo Juizado Especial Criminal de Planaltina, à pena definitiva de seis anos, dois meses e vinte dias de reclusão, mais quatorze dias-multa, pois aplicou-se a majorante presente no inciso I, do artigo 157, do CP, pelo emprego de arma.

Nesse contexto, a defesa recorreu requerendo sua absolvição ou o afastamento da majorante pelo uso de arma branca, uma vez que não configurada nos termos da lei vigente, visto que a Lei nº 13.654, de 23 de abril de 2018, revogou o inciso aplicado no caso.

O TJ-DFT, porém, negou provimento à apelação ao argumento de que a materialidade e a autoria estavam comprovadas e, quanto ao uso de arma branca, considerou que, como o Conselho Especial do TJ declarou incidentalmente a inconstitucionalidade da lei mencionada, essa decisão deveria ser obedecida pelos órgãos fracionários da Corte. Entendeu-se que houve vício procedimental no Senado Federal relativo a erro na publicação do texto final do projeto de lei aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC).

Diante disso, interpôs-se recurso extraordinário alegando, em suma: desrespeito à soberania popular que é exercida por meio de representantes (parágrafo único, artigo 1º, CF/1988); flagrante ilegalidade do acórdão recorrido, o que afronta o caput do artigo 37 da CF/1988; violação direta à previsão constitucional de que os membros da casa legislativa poderão recorrer da aprovação realizada pela comissão, levando a matéria ao plenário (inciso I, §2º, artigo 58, CF/1988); e à competência do Poder Legislativo, prevista no artigo 65, da Constituição Federal.

No mérito, a Defensoria Pública sustentou não ser possível o controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas, bem como que não haveria vício formal capaz de infirmar a higidez constitucional da Lei nº 13.654/2018, razão pela qual não mais se considera como causa de aumento o emprego de arma. O Ministério Público do Distrito Federal, por sua vez, defendeu o não acolhimento do recurso e reiterou o entendimento de que a legislação seria fruto de um processo legislativo viciado e que não teria observado o devido processo legislativo constitucional.

O artigo 58, §2º, inciso I, da Constituição Federal dispõe que "o Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação"; a essas comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe "discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do Plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa".

No caso em tela, o TJ-DFT asseverou que a revogação da causa de aumento da pena para o crime de roubo com o emprego de arma que não seja arma de fogo, ainda que efetivamente aprovada pela CCJC, não foi submetida aos demais Senadores, com a publicação no Diário do Senado Federal, para fins de apresentação do recurso previsto nos §§3º e 4º do artigo 91 do Regimento Interno do Senado [1]. Assim, destacando a parte final do inciso I, do §2º, do artigo 58 da CF/1988 — "salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa" — o Tribunal de origem entendeu que houve verdadeira supressão de oportunidade recursal no processo legislativo.

Ressalta-se que o Supremo Tribunal já havia julgado outros recursos de idêntica matéria, veja-se o ARE nº 1.234.080, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, por exemplo. Nesse julgado, também teria sido detectado vício formal de inconstitucionalidade em temáticas estranhas ao procedimento legislativo constitucionalmente previsto na Seção VIII (artigos 59 a 69) da Constituição Cidadã. Analisou-se particularidades que versavam sobre temáticas de normas regimentais intrínsecas ao âmbito de atuação de cada uma das respectivas Casas Legislativas, isto é, matéria interna corporis.

Vale ponderar que, segundo a doutrina de Hely Lopes Meirelles, os atos interna corporis são questões ou assuntos que se relacionam de maneira imediata e direta com a economia interna de cada uma das Casas Legislativas ou do Congresso Nacional. Esses atos estão sujeitos a um controle especial, pois são exercidos com fundamentação política e a valoração de motivos é insuscetível de controle [2].

Para o ministro Dias Toffoli — relator do RE nº 1.297.884, ora analisado —, o tema guarda estreita relação com a preservação da intangibilidade do princípio fundamental da separação dos Poderes da União, sendo o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, independentes e harmônicos entre si. Citando uma série de precedentes do próprio Supremo Tribunal, o relator, que foi seguido pela maioria dos ministros, votou pelo provimento do recurso para cassar o acórdão recorrido do TJ-DFT, na parte que se reconheceu como inconstitucional o artigo 4º da Lei nº 13.654/2018, a fim de que o tribunal de origem recalcule a dosimetria da pena imposta ao réu.

Argumentou-se que o julgamento da arguição incidental de inconstitucionalidade pelo TJ se restringiu à interpretação do artigo 91 do Regimento Interno do Senado Federal, não tendo sido caracterizada afronta às normas pertinentes ao processo legislativo, dispostas nos artigos 59 e 69 da Carta Magna. Portanto, em se tratando de matéria interna corporis — questões que devem ser resolvidas internamente por cada poder —, constata-se a impossibilidade do controle judicial.

As ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, bem como os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes, Nunes Marques, Roberto Barroso, Gilmar Mendes e o presidente Luiz Fux, seguiram o voto do relator para dar provimento ao recurso extraordinário. Nesse sentido, propôs-se a seguinte tese:

"Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis."

Quanto à tese proposta, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o relator com ressalvas, destacando que o controle constitucional das normas regimentais pode acontecer quando houver violação direta ao texto constitucional, considerando-se como parâmetro de controle toda a Constituição, e não somente as normas pertinentes ao processo legislativo.

No Estado democrático de Direito, o princípio da supremacia da Constituição permite a "incorporação do Parlamento ao Estado de direito e, dessa forma, o direito parlamentar se integra ao ordenamento jurídico geral do Estado e é passível de controle perante os tribunais" [3]. Diante disso, vê-se que todas as atribuições e atos do Parlamento devem guardar estrita observância aos preceitos constitucionais. Para Cristiane Branco Macedo, as normas do direito parlamentar "são de observância obrigatória, pois a correção no processo de criação do direito não é faculdade colocada à livre disposição dos parlamentares" [4].

Nada obstante, alguns estudiosos apontam ser cabível o controle judicial sobre a interpretação de normas regimentais. José Alcione Bernardes Júnior, por exemplo, entende que o Supremo não se apropriou de sua função fiscalizadora e contramajoritária do devido processo legislativo e que essa omissão ampara a ditadura das maiorias [5]. No mesmo sentido, Álvaro Ricardo de Souza Cruz afirma que, ao reputar interna corporis a interpretação dos regimentos internos das Casas Legislativas, o STF assume uma postura omissa e imprópria ao Estado democrático de direito, levando ao prejuízo da supremacia da Constituição [6].

No julgamento do Tema nº 1.120, ora analisado, o ministro Marco Aurélio divergiu da maioria e votou pelo desprovimento do recurso extraordinário. Argumentou que a inconstitucionalidade do ato normativo foi assentada em controle difuso, declarando-se expressamente a inconstitucionalidade (formal) do artigo 4º, da Lei nº 13.654/2018, que revogou o inciso I do §2º, do artigo 157, do Código Penal, com efeitos ex nunc (não retroativo) e inter pars (tão-somente em relação ao fato a que se refere a decisão).

Nessa toada, questionou o ministro: "como concluir, a esta altura, que se tem controvérsia julgada, na origem, relativa a norma interna da Casa Legislativa?". Para o ministro Marco Aurélio, o recurso extraordinário deveria ser desprovido, haja vista que o tribunal de origem havia declarado a inconstitucionalidade do ato legislativo que deu nova redação ao artigo 157, do CP. Vale dizer, o voto divergente não reconheceu que a matéria declarada inconstitucional pelo tribunal de origem seria interna corporis.

De acordo com a consagrada doutrina de Peter Härbele, "os tribunais devem ser extremamente cautelosos na aferição da legitimidade das decisões do legislador democrático" [7]. Assim, a regra geral é que não cabe ao Poder Judiciário realizar o controle judicial de matéria imediata e diretamente relacionada à economia interna de cada uma das Casas Legislativas ou do Congresso Nacional. Porém, se a norma regimental viola a Constituição Federal, faz-se necessário o controle judicial para fazer cessar a situação de inconstitucionalidade.

Nesse sentido posicionou-se o Supremo Tribunal Federal no julgado em tela, ao concluir que normas regimentais não são passíveis de controle quando não ofensivas à constituição, sendo, portanto, matéria interna corporis. O entendimento prestigia, de um lado, o princípio democrático, ao preservar a autonomia das Casas Legislativas na interpretação de suas normas internas e, de outro, assegura a supremacia da constituição ao permitir que o Judiciário realize o controle as normas que ofendam diretamente o texto constitucional e as normas pertinentes ao processo legislativo ali insculpidas.


[1] RISF. Artigo 91. (…) § 3º No prazo de cinco dias úteis, contado a partir da publicação da comunicação referida no § 2º no avulso eletrônico da Ordem do Dia da sessão seguinte, poderá ser interposto recurso para apreciação da matéria pelo Plenário do Senado.
§ 4º. O recurso, assinado por um décimo dos membros do Senado, será dirigido ao Presidente da Casa.

[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1999. Págs. 639-640.

[3] MACEDO, Cristiane Branco. A legitimidade e a extensão do controle judicial sobre o processo legislativo no Estado Democrático de Direito. 2007. Disssertação (Mestrado em Direito) – Universidade de Brasília. Pág. 94.

[4] Idem. Pág. 215.

[5] BERNARDES JÚNIOR, José Alcione. O controle jurisdicional do processo legislativo à luz da teoria sistêmica. Cadernos da Escola do Legislativo. Belo Horizonte, v. 8, nº 13. Janeiro-dezembro, 2005. Págs. 169-172.

[6] CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. Págs. 308-311.

[7] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional — A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. Pág. 45.

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