Sabedoria popular

"No Tribunal do Júri, o senso de justiça fica mais próximo da realidade"

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3 de abril de 2022, 7h51

Em 1910, o promotor público Sylvio de Campos se preparava para o segundo Júri da professora Albertina Barbosa, ré por assassinar, com dois tiros à queima-roupa, o bacharel Arthur Malheiros. Cometera o crime para lavar sua honra, pois fora abandonada grávida pelo rapaz depois de um fugaz caso amoroso. Albertina tinha a seu favor parte importante da imprensa e uma absolvição unânime no primeiro julgamento, anulado meses depois pelo Tribunal de Justiça.

Spacca
Fábio Tofic Simantob

No livro O Crime da Galeria de Cristal, o historiador Boris Fausto conta que Campos tinha ciência da dimensão de seu desafio e, em sua sustentação em Plenário, tentou convencer os jurados de que ali não havia espaço para sentimentos. Para isso, citou o sociólogo francês Le Bon, famoso por seus estudos sobre a psicologia das massas, para quem "os jurados não resistem à visão de uma acusada que amamente seu filhinho, ou o desfile doloroso de um grupo de orfãozinhos". Sentimentos não deveriam ser levados em conta, apenas provas. E os jurados tinham de estar atentos porque, sem que se deem conta, são facilmente manipuláveis em suas emoções.

Na visão dos advogados criminalistas Fábio Tofic Simantob e João Imperia, nada poderia ser mais equivocado do que a ótica do promotor Sylvio de Campos. Primeiro porque Júri envolve, sim, sentimento. Não há julgamento justo, ao menos nos casos de crimes dolosos contra a vida, sem que os jurados recorram aos sentimentos para decidir o destino daquele que espera por sua sentença. Citando Valdir Troncoso Perez, Imperia diz que o Júri é um exercício de interpretação da alma humana. E como interpretar a alma sem extravasar sentimentos?

Em conversa com a ConJur, os advogados reafirmaram sua fé no Tribunal do Júri como a forma mais democrática de se fazer justiça. "O Júri se justifica porque é plural. Nunca sabemos o que cada um dos jurados pensa ou viveu, mas sabemos que aquela soma de experiências, muitas vezes, tem um senso de justiça muito refinado", afirma Imperia.

Para Tofic, uma das grandes vantagens do Júri é julgar sem amarras: "O juiz togado cria um molde para julgar. É inevitável, porque ele julga todos os dias. Logo, acaba fixando uma régua. O juiz precisa disso até para manter coerência com julgados anteriores, porque senão podem acusá-lo de julgar casos semelhantes de formas distintas. E quando cria esse molde, o juiz pode deixar de lado e menosprezar as particularidades de casos concretos."

Spacca
João Imperia

O corpo de jurados não tem compromisso com o caso anterior, nem com o seguinte, porque se reúne para fazer justiça em um só caso. "Uma das grandes funções do Tribunal do Júri é individualizar a pena", diz o advogado cuja formação é umbilicalmente ligada ao Plenário do Júri, onde, muitas vezes, defendeu hipossuficientes em atuações pro bono.

Essa confiança no Tribunal do Júri levou Tofic a convidar Imperia a se tornar sócio de Tofic Simantob, Perez e Ortiz, uma das mais respeitadas bancas de advocacia especializadas em Direito Penal do país. Defensor público por 14 anos, mais da metade destes atuando em Júri, Imperia topou o desafio e compõe o time do escritório desde o ano passado. O movimento não é exatamente comum em um mundo em que os crimes econômicos e financeiros dão cada vez mais as cartas e a expansão de programas de compliance nas empresas faz com que o Direito Penal clássico perca espaço.

Tofic explica: "A ideia foi continuar investindo na advocacia criminal raiz. Continuamos a expandir a área empresarial penal, econômica e financeira, mas a experiência em Júri te dá cabedal para atuar até melhor também nestas outras áreas. Seguimos com atuação em crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, compliance, mas não queremos perder a ação do Júri, da Justiça estadual, a atuação no Direito Penal clássico, que guarda um pouco da alma do escritório."

Leia a entrevista

ConJur — O Tribunal do Júri, em sua versão moderna, surgiu porque os juízes faziam parte da nobreza e eram nomeados sem critérios objetivos. O Júri veio da exigência de que os cidadãos fossem julgados por seus pares. Hoje, em que juízes fazem concurso público e são muito mais próximos da realidade dos cidadãos, o Júri ainda tem razão de ser?
Fábio Tofic — O ressurgimento da instituição se deve, sim, a isso. Primeiramente, na Inglaterra, e em seguida como resultado da Revolução Francesa, que não tem um Júri exatamente, mas um modelo escabinado — onde um dos jurados é um juiz togado. Foi um movimento democrático, do povo contra a nobreza: “Chega de juízes que julgam só de acordo com os interesses da aristocracia. O povo deve julgar seus semelhantes”. Hoje não temos mais a aristocracia no poder, mudou a forma de seleção, mas os juízes saem da classe média, classe média alta. Será que mudou tanto? Não é uma crítica, mas uma constatação. Nós, advogados, promotores, defensores, juízes, somos, em regra, de classe social muito diferente daquela do réu que habitualmente frequenta o Júri.

João Imperia — Somos bem diferentes do público preferencial do Direito Penal.

Tofic — E isso não é uma exclusividade brasileira. Os réus do processo penal, em qualquer lugar do mundo, em regra, são os mais pobres.

Imperia — Toda garantia individual — e o Tribunal do Júri, não podemos perder de vista, é uma garantia individual prevista como cláusula pétrea — deve ser lida como contenção do poder. Porque garantia individual nada mais é do que manifestação de contenção do poder estatal, que é uma luta histórica civilizatória. E a ideia de seus pares poderem se julgar, poderem olhar uns para os outros, na minha concepção, faz muito sentido. Para julgar um fato, muitas vezes é preciso de mais do que do Direito. Uma das críticas mais comuns que se faz ao Tribunal do Júri é a de que o leigo não tem condições de julgar. Pois eu digo que ele tem mais condições.

ConJur — Por quê?
Imperia — Porque o conhecimento necessário para julgar um crime de homicídio ou tentativa de homicídio, que é o carro-chefe do Tribunal do Júri, demanda vivência, experiência de vida, muito mais do que a leitura técnica do Direito. Aquele espaço de contenção do poder estatal é para ser ocupado por aqueles que saibam mais da vida do que de Direito. Julgar medo, amor, ódio, irritação, as reações emotivas, demanda experiência de vida real. E cada jurado chega com a sua compreensão de mundo, cada um com sua malinha de experiência de vida. Por isso é que o Júri se justifica, porque é plural. Nunca sabemos o que cada um dos jurados pensa ou vive, mas sabemos que aquela soma de experiências, muitas vezes, tem um senso de Justiça muito refinado.

Tofic — O Márcio Thomaz Bastos falava que o juiz togado cria um molde para julgar. É inevitável, porque ele julga todos os dias. Logo, acaba criando uma forma, fixando uma régua, com as quais julga todos os casos. O juiz precisa disso até para manter coerência com julgados anteriores, porque senão podem acusá-lo de julgar casos semelhantes de formas distintas. E quando cria esse molde, o juiz pode deixar de lado e menosprezar as particularidades de casos concretos. Goffredo da Silva Telles já disse, na década de 1930, que uma das grandes funções do Tribunal do Júri é individualizar a pena. Só ele pode fazer isso, porque ele só julga uma vez. Só julga aquele caso, não tem dever de coerência com o caso anterior, nem com o caso seguinte. E no crime de homicídio, que no Brasil é competência do Júri, as particularidades variam muito de caso para caso. E só o Júri pode entrar e analisar com lupa as particularidades de cada caso. Pergunte a qualquer advogado criminalista quantas vezes, na Justiça togada, ele alegou e conseguiu obter do juiz uma excludente de antijuridicidade, como estado de necessidade, legítima defesa, erro de tipo, que é toda a riqueza da Parte Geral do Código Penal.

ConJur — Quantas vezes?
Tofic — Eu, acho que nunca. Porque isso depende muito do caso concreto e o juiz tem receio de aplicar a tese e acabar preso àquilo, ficar refém do próprio precedente. O Tribunal do Júri absolve por legítima defesa, aplica erro de tipo. Ninguém aplica mais a Parte Geral do Código Penal — que é a parte mais difícil do Direito Penal, mais sofisticada, mais abstrata, a que mais tem tomos e tomos escritos sobre si — do que o Júri.

ConJur — Um dia eu assistia a um Júri e, na falta de argumentos, o promotor tirou da pasta o currículo de um dos advogados de defesa, super qualificado, leu o currículo e disse aos jurados: “Se o réu fosse inocente, precisaria de um advogado tão caro e com tantas credenciais?”. Uma atuação teatral e com argumento que absolutamente nada tem a ver com o crime, mas que pode convencer os jurados. Júri tem a ver com Justiça ou com teatro?
Tofic — Esse exemplo não se trata de teatro, mas de argumento. Que pode ser perfeitamente respondido, até na mesma moeda. O Tribunal do Júri exige do tribuno — não só do advogado, mas também do promotor — uma reunião de talentos, habilidades, que são absolutamente prescindíveis nas varas comuns. Rapidez de raciocínio, tirocínio, a frase de efeito, é claro, fazem a diferença entre ganhar e perder uma causa. O que há no Júri, que eu não chamaria de teatro jamais, é uma tentativa dos tribunos — e quem consegue fazer isso alcança um nível de excelência — de transmitir, com todo o arsenal semântico que há à disposição, e por meio de expressões verbal e corporal, o sentimento que aquela causa provoca no próprio tribuno. A arma é transmitir aos jurados esse sentimento.

ConJur — Um bom advogado ou promotor de Júri, então, tem de ser emotivo?
Tofic — Quando um advogado se depara com um caso e se convence da injustiça da acusação, seja porque acha que o réu tem de ser absolvido, seja porque acha que tem de ser condenado a uma pena menor, a possibilidade de derrota causa nele um sentimento de dor, de injustiça. Ele precisa, portanto, transmitir aos jurados esses sentimentos. E mostrar que esses sentimentos têm uma razão de ser. O jurado julga com sentimentos, e não está errado, porque a Justiça é um sentimento. Justiça não é um conceito matemático, algo com uma definição puramente objetiva. O que é a Justiça? A Justiça é a Justiça naquele caso.

Imperia — Eu responderia ao promotor que, se ele tivesse as provas do crime, não precisaria recorrer ao meu currículo. Quando dizem que o Tribunal do Júri é um teatro, em regra, o fazem de forma pejorativa para dizer que é um ambiente de menor técnica jurídica, de mais retórica. Mas o processo do Tribunal do Júri é bastante complexo do ponto de vista técnico, com atos significativos antes da pronúncia do réu e ao menos duas fases recursais. É muito mais do que o momento do Plenário. E aqueles que fazem teatro não necessariamente farão um bom Júri, porque Júri não depende da arte cênica, mas de sentimento, somado a conhecimentos jurídicos.

ConJur — O senhor já escreveu que o Júri é a forma mais democrática de Justiça. Mas, muitas vezes, a atribuição da Justiça é justamente ir contra a corrente para garantir direitos? Não é perigoso submeter a Justiça à vontade da maioria?
Tofic — Sim, seria perigoso. Mas vivemos em um Estado Democrático de Direito, não apenas Estado Democrático. Somos democráticos e de Direito. Seria extremamente democrático colocar as pessoas em praças públicas e julgá-las por maioria de votos. Mas não seria de Direito, ao menos não do Direito moderno, baseado em princípios e regras que prestigiam os direitos humanos, por exemplo. Quando se fala em Júri democrático, não é no sentido de lançar alguém ao voto arbitrário, sem critérios, para decidir se esse alguém vai para a prisão ou não. O Tribunal do Júri é democrático no sentido em que permite que as pessoas do povo possam tomar uma decisão extremamente importante na vida de um semelhante. E funciona dentro das balizas do Estado Democrático de Direito, porque o Júri não pode condenar alguém que um juiz togado não tenha, antes, pronunciado, indicando a ocorrência de prova material e de indícios fortes de autoria daquele réu.

Imperia — Há uma cláusula democrática importante no Tribunal do Júri, que está muito associada à clemência, que é a seguinte: o poder emana do povo. Se o poder emana do povo, emana dele, inclusive, o poder de punir ou de não punir. Logo, a representação do Tribunal do Júri nada mais é do que o próprio povo exercendo o poder. E o sistema do Júri guarda também a importância do juiz togado. Defender o Tribunal do Júri não é desvalorizar o Judiciário togado, tanto que é um juiz que irá determinar qual o standard probatório mínimo para submeter alguém ao Júri. A importância do juiz togado se dá, ainda, para afastar o in dubio pro societat, porque ele não existe. Na dúvida, não se manda alguém para a fogueira. Na dúvida, afasta-se da fogueira. O juiz togado é esse guardião.

Tofic — O sistema, em tese, é feito para que alguém só possa ser condenado por um Tribunal do Júri em uma situação em que um juiz togado também condenaria. Em tese! Ou pelo menos em que, se um juiz togado condenasse, não haveria ilegalidades no caso. Poderia haver até uma injustiça, mas aí são outras avaliações que se fazem. O que a sentença de pronúncia faz é dizer que uma condenação, no caso, teria sustentação jurídica. Se o réu deve ser mesmo condenado, só o Júri poderá dizer. Mas, importante frisar, a absolvição não precisa de suporte jurídico.

ConJur — Nenhum suporte?
Tofic — Pode haver toda a base para uma condenação, mas se o Júri decidir absolver, por razões que não interessam a ninguém, pode absolver. Essa questão está colocada no Supremo para futura decisão, se o Júri pode absolver mesmo contrariando evidências. Na minha concepção, é claro que pode, porque, senão, não tem razão de ser.

ConJur — O Júri ainda é soberano? Recentemente, o Supremo decidiu que a legítima defesa da honra não pode ser alegada no Júri. Agora, há essa questão sobre se os jurados podem absolver, ainda que contrariem, para isso, a prova dos autos. Que soberania é essa?
Tofic — O que o Supremo decidiu é que alegar legítima defesa da honra é inconstitucional, é uma tese inconstitucional. Mas creio que a Corte irá, afastada essa hipótese de alegação de legítima defesa da honra, garantir a soberania do Júri para que os jurados possam, de fato, ter o poder de votar pela absolvição independentemente de quaisquer fatores ou argumentos.

Imperia — A decisão do Supremo sobre a inconstitucionalidade da legítima defesa da honra pode encontrar problemas do ponto de vista operacional, porque podemos assistir a um impasse se algum réu, por meio de seus representantes, decidir que irá insistir em alegar essa tese. Mas, sob o ponto de vista do controle de constitucionalidade, não vejo problemas na decisão do Supremo. Os ministros fizeram uma interpretação conforme a um dispositivo de lei que estabelece os requisitos mínimos para legítima defesa e fixou que a única alegação que não cabe, por inconstitucional, é a de legítima defesa da honra. Não acho que tenha sido ativismo judicial e, na prática, veio em boa hora porque não cabe mais esse tipo de argumento em nossa sociedade.

ConJur — Vale tudo para convencer um Júri?
Imperia — Há um dispositivo de lei do Código de Processo Penal que fixa argumentos vedados em Plenário. E esse dispositivo existe para dizer o seguinte: aqui não pode tudo. Há regras. Mas quando a Constituição estabelece a plenitude de defesa, não estabelece a plenitude de acusação. E, como eu disse antes, garantias individuais são instrumentos de contenção do Estado. A defesa tem liberdade para trazer argumentos metajurídicos. Já a acusação nunca será legítima se pedir condenação com argumentos metajurídicos.

ConJur — Quais argumentos são vedados?
Imperia — Fazer menção à decisão de pronúncia como argumento de autoridade, por exemplo: “Olha, se ele foi pronunciado é evidente que ele tem que ser condenado”. Ou fazer menção ao silêncio do réu, às algemas do réu, argumentos metajurídicos que, evidentemente, favorecem a acusação. O CPP traz delimitações claras para o Estado. Não vale, por exemplo, o argumento que você assistiu o promotor fazer contra o advogado: “Se o réu fosse inocente não precisaria de um advogado tão qualificado”. Qual a legitimidade de uma eventual condenação com base em um argumento como esse? A acusação não pode tudo. O que existe é a plenitude de defesa, não de acusação. E é a Constituição que estabelece um regime de plenitude de defesa.

ConJur — É possível garantir a imparcialidade de um Júri em crimes de grande repercussão e cobertura intensa da imprensa, como os casos Suzane Richthofen, Isabela Nardoni ou Boate Kiss? Como lidar com a publicidade opressiva para manter a higidez do Júri?
Tofic — Esse é um problema que não tem solução ótima. É preciso estudar mecanismos para mitigar um pouco o problema, porque ele é insolucionável. Clamor público em casos que geram comoção existe desde que o mundo é mundo, basta ver o crucifixo que está em quase todas as repartições públicas, inclusive do Judiciário. Esse é um drama da Justiça Penal.

ConJur — E como mitigar o problema?
Tofic — O advogado Roberto Podval sustentou uma tese num caso com a qual eu concordo. É polêmica, mas faz sentido. Ele disse mais ou menos o seguinte: “Estão há cinco anos atacando os meus clientes, crucificando, jogando pedras, demonizando. Por cinco anos a população só lê a acusação nos jornais, nas manchetes e na TV. O telespectador não lê os depoimentos, não analisa as provas, não vê nada da defesa. A solução, para o necessário equilíbrio do julgamento, é transmitir ao vivo todo o julgamento”. Faz todo o sentido, porque o jurado, quando entra em um julgamento como esse, fica com a sensação de que nenhuma decisão que não seja a condenação pela pena mais alta será compreendida por quem está do lado de fora. O público não vai entender. Por mais que ele queira dizer o que ouviu, o que vi, o que mostraram a ele naquelas horas de julgamento, as pessoas não vão entender. Há o receio até de ser linchado na porta do fórum.

ConJur — O julgamento foi televisionado?
Tofic — Não, mas ele usou essa tese, que eu acho correta, na apelação. No Júri a portas fechadas, ninguém sabe o que acontece. Então, é preferível que todos “participem” de tudo. Que veja os argumentos da defesa, as provas, os laudos, enfim, as respostas à acusação.

ConJur — Se hoje há a transmissão ao vivo das sessões do Supremo, por que não do Júri?
Tofic
— Exato. Qual é o grande momento da defesa em um caso de homicídio ou tentativa de homicídio? É o Plenário do Júri! É onde a defesa tem espaço, voz. É o momento de fazer as pessoas conhecerem os dois lados, a complexidade dos casos. Acredito que quando o jurado tiver a sensação de que o que ele decidir será compreendido pelas pessoas que estão do lado de fora, terá mais independência para tomar a decisão.

ConJur — Nos Estados Unidos, julgamentos relevantes são sempre levados a Júri popular, inclusive casos cíveis. No Brasil, o Júri julga somente crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados. É um bom modelo ou deveríamos expandir o Júri?
Imperia — Não creio que o Júri deva abarcar outros tipos de delito. Primeiro, por um problema operacional. Pensemos em uma cidade como São Paulo, por exemplo, violenta, com altos índices de crimes contra o patrimônio. Imagine se todos os crimes contra o patrimônio fossem ao Tribunal do Júri. Não seriam julgados em um prazo razoável. Outro ponto é que o processo no Tribunal do Júri é complexo porque lida com casos complexos, com situações em que a pessoa foi levada ao extremo da vida ou está sendo acusada de algo que eventualmente nega, mas que pode gerar a ela uma injustiça muito grande. Isso demanda, sim, um processo complexo que, necessariamente, é mais moroso do que casos de crimes patrimoniais.

ConJur — Mas o senso de justiça do Júri que os senhores frisam não julgaria melhor, inclusive, casos de menor potencial ofensivo?
Imperia
— Não sei se melhor é a expressão correta. Certamente, poderíamos ter resultados diferentes. Por exemplo, o menino pobre que vive em uma favela e vende ali pequenas quantidades de drogas. Aos olhos do juiz togado, muitas vezes, não existe a distinção entre esse rapaz e um traficante pesado — por falta de conhecimento daquela realidade ou da dinâmica social complexa de uma comunidade. Mas aos olhos de um Tribunal do Júri, em que há jurados que sofrem abordagem policial, conhecem o que é a periferia, como se vive em comunidades, quais são as dificuldades sociais e econômicas pelas quais passa um rapaz como esse, talvez o olhar fosse mais apurado.

Tofic — O jurado pode saber, por exemplo, que o fato de o réu falar muitas gírias não faz dele um bandido. Que essa linguagem é da própria da comunicação local, do universo dele. Mas, muitas vezes, a forma de falar pode amedrontar um juiz togado, porque nos bairros onde ele mora as crianças e os adolescentes falam de outra forma.

Imperia — Exatamente por isso eu creio que o senso de justiça do Júri seria mais apurado em casos assim.

ConJur — Então, por que não expandir a competência do Júri?
Imperia
— Primeiro por conta do problema funcional, organizacional. Impossível, com a nossa realidade, conseguir que haja justiça em tempo razoável para o volume de demandas que teríamos. E também porque é possível abordar o problema sob outros pontos, como repensar a política nacional de combate às drogas, que aprisiona gente pobre com pouca droga. Não necessariamente a solução estaria no Tribunal do Júri, mas em outros lugares.

Tofic — Sabe o que seria o ideal, mas é utópico? É tão ideal que não pretendo como real. O Júri deveria ser a última instância das pessoas que não têm mais nenhum recurso judicial. O cidadão foi condenado por todas as instâncias, não há mais recurso, teria o direito ao Júri. A última chance de ele conseguir a absolvição. Seus pares decidiriam se ele deve ou não deve pagar por aquele crime. E se analisarmos friamente, o Tribunal do Júri funciona praticamente assim no Brasil. Porque um juiz togado — embora a sentença de pronúncia não seja sentença condenatória — precisa, para pronunciar o réu, afirmar ali elementos mínimos. E, sinceramente, muitas vezes a pronúncia é dada em situações em que o juiz condenaria. Tenho essa impressão. Então, o Júri é a última instância para o réu saber se vai ser condenado ou absolvido.

ConJur — E sobre a expansão da competência do Júri?
Tofic
— Pensemos, por exemplo, nos crimes financeiros. Podemos imaginar como seria complicado para os jurados analisar provas de crimes financeiros. Se houve ou não houve a operação, qual era o objetivo da operação, questões técnicas refinadas de processos volumosos.

ConJur — Mas se o conhecimento do juiz togado é deficiente para julgar o caso de um rapaz que distribui pequenas quantidades de droga, ele não terá a mesma deficiência para compreender a realidade do mundo econômico e empresarial?
Tofic — A diferença é que a deficiência do juiz togado no caso de crimes financeiros tende a ser superada, cada vez mais, com a especialização. As próprias varas federais especializadas já enfrentam um pouco essa questão. Temos, sim, a tendência de ter antipatia em relação àquilo que nós não compreendemos bem. E isso pode gerar julgamentos preconceituosos. Mas creio que esse risco não será mitigado com a adoção de Júri para crimes financeiros. Há outro ponto importante: fatos referentes a crimes financeiros quase extrapolam o Direito Penal. Trata-se de um novo Direito Penal, que tem características cada vez mais distantes do Direito Penal clássico. São normas penais em branco. A operação jurídica para se afirmar se um fato é ou não é crime financeiro é sofisticada, às vezes os próprios juristas têm dificuldade de acompanhar. Há tecnicismos jurídicos envolvidos nessas ações penais de crimes financeiros que ficariam muito distante da capacidade de compreensão de um jurado, que não é um técnico. No Júri, na verdade, as questões mais técnicas acabam decididas pelo juiz togado, na pronúncia. Os jurados têm de decidir sobre provas, se o crime aconteceu ou não, se o réu é o autor ou não, e os motivos, as causas.

Imperia — Tem outro ponto relevante. A existência do Tribunal do Júri não pressupõe a falta de legitimidade do juiz togado. Quando dizemos que o jurado está mais próximo da realidade social, isso não significa que ele tenha mais legitimidade. Eu entendo que o senso de justiça do jurado é diferente, porque ele olhará para lugares e questões que o juiz togado, talvez, não olhe. Mas o juiz togado segue pleno de legitimidade e essa legitimidade está na fundamentação de suas decisões. Quando digo, por exemplo, que o jurado teria mais sensibilidade para julgar crimes de tráfico de drogas, não quero dizer que a decisão seria melhor ou pior. Ela seria diferente, teria um senso de justiça diferente que, neste caso, poderia ser mais realista. Mas, repito, isso não retira a legitimidade de um juiz togado.

ConJur — É possível democratizar ainda mais o Júri?
Tofic — O Júri ainda é muito composto por cidadãos da classe média. Aquilo que falamos sobre a realidade do jurado estar mais próxima da realidade dos réus, às vezes, é uma meia verdade. Porque o morador das comunidades, das favelas, não está no Júri. Não faz parte do corpo de jurados a senhora que mora na periferia, sai todos os dias para trabalhar e depende de horas de transporte público para chegar ao serviço. Ela não é convocada para o Tribunal do Júri. O sistema de seleção dos possíveis jurados ainda é muito discricionário e isso faz com que a sociedade, em algumas ocasiões, não esteja necessariamente bem representada ali.

ConJur — O que mais os senhores mudariam no Tribunal do Júri?
Imperia — A disposição cênica. Não consigo entender como até hoje, no Brasil, nós aceitamos que a acusação fique ao lado direito do juiz e a defesa, do outro lado do Plenário, longe, distante, como um incômodo para o qual é preciso dar um lugar.

Tofic — Como aquele cachorro tolerado pela gerência, do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa.

Imperia — Isso! E essa é uma discussão que está posta no Supremo. E não é um debate menor. Essa disposição cênica desequilibra a necessária paridade de armas. Porque o jurado entra na sala e vê que a pessoa que fala contra a defesa está ao lado da maior autoridade daquele espaço. Isso prejudica a defesa, que já entra com pontos negativos no Júri, e é vista distante da Justiça.

Tofic — A defesa já entra sempre perdendo. Porque o processo é a acusação — as provas, a denúncia, a sentença de pronúncia. Tudo isso é a acusação. Por isso o Plenário do Júri é o grande momento da defesa, porque a defesa é o argumento. O processo é feito pela Estado, não pela defesa, que tem participações muito pontuais até o Plenário do Júri. Daí a importância de discutir essa disposição.

Imperia — O correto seria que as partes ficassem em frente do juiz, como funciona dos Estados Unidos, uma ao lado da outra, em frente ao magistrado. Essa mudança traria um ganho democrático e prestigiaria a paridade de armas.

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