Opinião

Uma nova ótica no STF sobre encontro fortuito de provas e prerrogativa de foro

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1 de abril de 2022, 15h18

A teoria do encontro fortuito de prova consiste em considerar válida a prova que, a despeito de não integrar o objeto de investigação, é encontrada de maneira fortuita, por um acaso, de modo inesperado, durante o regular cumprimento de diligência investigativa, anteriormente autorizada com o objetivo de investigar determinados crimes e pessoas [1].

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Trata-se de teoria limitadora da prova ilícita por derivação, já que, em rigor, a prova seria ilícita, em razão de a decisão judicial que deferira a diligência não prever o alcance daquela materialidade ou daquela autoria. A partir dessa teoria, portanto, relativiza-se a ilicitude dessa prova, considerando-a válida, mesmo sem que a sua produção tenha feito parte da autorização judicial, dada a impossibilidade de previsão de tudo aquilo que poderá ser alcançado pela diligência. É a fortuidade que preserva a licitude.

Para os fins do presente artigo, consideremos o encontro fortuito quanto à pessoa, isto é, a localização inesperada de informações que indiquem possível envolvimento de alguém anteriormente não incluído no escopo de investigação.

Essa descoberta quanto à pessoa adquire especial relevância quando, no curso de investigação que tramite perante o primeiro grau de jurisdição, venham os trabalhos investigativos a encontrar informações que mencionem, envolvam ou induzam à participação de autoridade detentora de prerrogativa de foro, já que esse alcance poderá alterar a competência jurisdicional sobre o feito.

Nesse ponto, os Tribunais Superiores brasileiros, para estabelecer certo critério quanto ao declínio ou não dos autos, desenvolveram entendimento no sentido de que, no decorrer dessas diligências, a mera menção ou meros rumores, boatos — ao nome de autoridade detentora de foro não altera a competência para processamento da investigação. É assim no âmbito do Supremo Tribunal Federal [2], tal como também o é no Superior Tribunal de Justiça [3].

Para que os autos da investigação sejam declinados à jurisdição correspondente ao foro, seriam então necessários indícios de participação da autoridade detentora do foro nos fatos apurados [4].

No entanto, a tenuidade em distinguir mera menção de indícios de participação gera grandes discussões sobre o momento e o quadro indiciário adequado a partir do qual a investigação deve ser declinada para a jurisdição correspondente ao foro da autoridade fortuitamente atingida pelas diligências investigativas. E pior: volta demasiadamente as atenções para a robustez da prova encontrada, ou seja, a suficiência dos indícios para declinar ou não a competência.

Nesse cenário, pensamos ser a precisa aplicação da teoria do encontro fortuito de provas, com especial enfoque na casualidade do encontro, o critério mais eficaz para preservar o princípio do juiz natural e evitar investigações reflexas.

Importante, então, estabelecer que a fortuidade do encontro — e, por consequência, a validade da prova achada — depende do fato de a autoridade estar ou não anteriormente incluída no escopo da investigação. E essa análise deverá recair não sobre um formalismo praticado pelas autoridades investigativas, que dizem quem está ou não sendo investigado, mas essencialmente sobre as informações contidas nos autos. Em suma, deve-se examinar se, a partir do quadro fático, a apuração da participação da autoridade é parte ou não do desenvolvimento lógico e natural das investigações.

Repare que, a partir dessa ótica, não se está realizando uma análise vertical sobre o valor da prova encontrada, mas, sim, aferindo se a investigação, por força de seu conteúdo, naturalmente caminhará pela apuração da autoria da autoridade detentora do foro. Compreender, portanto, a casualidade no encontro da prova é elemento central para aferir o momento em que a investigação deve ser declinada e a extensão de eventual nulidade, caso não ocorra opportune tempore.

Recentemente, essa ótica pode ser extraída de julgamento da Primeira Turma do STF, no qual se buscava a anulação de interceptações telefônicas por investigação reflexa de prefeito. No acórdão publicado no dia 22/02/2022, a Suprema Corte analisou a validade da prova justamente sob essa ótica da fortuidade do encontro — julgado este que, embora embrionário, pode ser precursor de grandes mudanças.

Após julgamento apertado na Sexta Turma do STJ, com a denegação da ordem por três votos a dois, o caso foi submetido pelo Escritório Figueiredo & Velloso Advogados Associados à Primeira Turma do STF no HC 189.115/BA. Sustentou-se, resumidamente, que 1) a investigação havia se iniciado com notícia-crime cujas acusações foram feitas expressamente contra o prefeito; 2) e que os relatórios de interceptação concluíam pelo envolvimento do prefeito – e mesmo assim o juízo de primeiro grau deferida e prorrogava as interceptações.

A Primeira Turma do STF, então, decidiu, à unanimidade, que houve investigação reflexa da autoridade detentora do foro perante o Tribunal.

A matéria, em si, não é nova. O Supremo Tribunal Federal vem coibindo investigações oblíquas[5], nas quais detentores do foro não são incluídos formalmente como investigados, para evitar o declínio de competência. Nessas oportunidades anteriores, a análise do STF — e das demais instâncias do Judiciário — historicamente recai sobre os elementos de prova encontrados, para aferir se tratam de mera menção ao nome da autoridade ou de indício de participação nos fatos investigados. Ou seja, uma aferição essencialmente sobre a robustez da prova encontrada, o que a torna, a nosso ver, casuística e pouco segura.

O julgamento do HC 189.115/BA, nesse ponto, se diferencia da análise corriqueira do Judiciário e, ao que tudo indica, estabelece uma outra ótica sobre a matéria, na medida em que depositou o olhar não sobre a suficiência dos indícios produzidos pelos diálogos interceptados, mas sobre o fato de estar ou não a autoridade detentora do foro sendo investigada. Em outras palavras, ao invés de um juízo de valor sobre a suficiência da prova encontrada, o STF utilizou como critério para examinar a validade dos atos a fortuidade do encontro, isto é, o quão por acaso e inesperado ele ocorreu. Expliquemos.

No voto do ministro relator Dias Toffoli, aderido pelos demais ministro da Turma, a ótica utilizada para analisar a validade da prova foi, in verbis,perquirir […] se houve investigação por via oblíqua ao paciente ou o encontro fortuito de provas”. A partir desse método de análise, concluiu o ministro relator que “não se trata aqui de simples menção ao nome do paciente titular à época de foro por prerrogativa da função, nem, muito menos, de encontro fortuito de provas”. E completa: “Isso porque, tal como referido pelos eminentes ministros Sebastião Reis Júnior e Rogério Schietti Cruz, ao votarem vencidos no RHC interposto para o Superior Tribunal de Justiça, desde a notitia criminis apresentada por vereador da edilidade houve referência expressa a suposto envolvimento do paciente, então prefeito (…)”.

Com relação propriamente à prova (interceptações telefônicas), o acórdão entendeu que “buscavam as autoridades provas efetivas do envolvimento do paciente, procedendo a verdadeira investigação por via reflexa”. Desta forma, conclui que “as circunstâncias até aqui demonstradas, associadas ao fato de que a própria notitia criminis apresentada fazia referência expressa a suposto envolvimento do paciente, então prefeito de [nome da cidade], tornavam impositiva, desde o início, a remessa da persecutio criminis para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o que, por não ter ocorrido opportune tempore, maculou os elementos de prova arrecadados em seu desfavor”.

É verdade que o acórdão não explora profundamente a fortuidade dos elementos de prova localizados nas interceptações, muito menos firma teses sobre esta ou aquela forma de analisar a matéria (encontro de provas de autoridade detentora de foro e declínio de competência). Porém, a metodologia utilizada pelo acórdão estabelece um importante precedente, pois, como já dito, direciona o olhar para a casualidade do encontro da prova, e não só para a robustez do indício.

Como se viu, a ratio decidendi do acórdão foi justamente considerar que, após a notícia-crime imputar crimes ao prefeito, a partir desse momento, não haveria mais que se falar em encontro fortuito de provas, porquanto a autoridade detentora do foro já se encontrava no escopo da investigação. Mesmo não se tratando a notícia-crime de um meio de prova, mas tão somente de informação, o fato de a autoridade integrar a linha natural de investigação é suficiente para declinar a competência à jurisdição correspondente ao foro.

E, pensamos, é correto que assim seja. Se a notícia-crime estabelece a limitação qualitativa e o objeto do inquérito policial, mesmo não sendo meio de prova, afasta a posterior aplicação da teoria do encontro fortuito de provas. Sobre essa limitação qualitativa do inquérito, leciona Aury Lopes Jr. que “o inquérito policial serve essencialmente para averiguar e comprovar os fatos constantes na notitia criminis. (….) Logo, o inquérito policial nasce da mera possibilidade, mas almeja a probabilidade” [6].

Dessa forma, a notícia-crime estabelece, ao menos inicialmente, o quadro fático a ser apurado, dela decorrendo as primeiras linhas de investigação. Logo, se na notícia-crime a autoridade detentora de foro já é envolvida, e se para a apurar esse crime uma das consequências lógicas é também averiguar a possível participação do detentor da prerrogativa, qualquer encontro posterior de provas contra a autoridade não poderá ser tido como fortuito, como obra do acaso. Até porque, uma vez registradas essas informações nos autos, é dever dos órgãos de investigação apurar a autoria de todos aqueles que integrem a hipótese investigada. Afinal, o inquérito almeja a probabilidade.

No caso concreto, de fato, se viu uma análise não sobre um elemento de prova, mas de informação: a notícia-crime. Isso, porém, não afasta a importância do precedente, mesmo em casos que não tratem dessa hipótese de notícia-crime. Essa forma de analisar o caso, sob a ótica da fortuidade, constrói um importante precedente sobre a análise do momento adequado para o declínio. A partir do ponto em que as informações nos autos indicarem que a apuração da participação da autoridade detentora do foro faz parte do natural e esperado desenvolvimento das investigações, devem os autos ser declinados. Compreendemos ser esta, em suma, a ratio decidendi, que poderá reverberar em inquéritos que envolvam, em diferentes graus, autoridades detentoras de foro.

A relevância do julgamento, portanto, advém dessa forma de análise, com maior enfoque na casualidade do encontro, e não só na robustez dos elementos até então contidos nos autos. Cremos ser esta a forma mais segura e adequada para preservar o princípio do juiz natural.

O cenário atual é de autorizar que a investigação tramite no primeiro grau de jurisdição até que surjam indícios de participação, sem observar que, antes desse estágio, é possível que a linha de investigação já seja muito clara — e até esperada — no sentido de também apurar a participação da autoridade detentora do foro [7]. Disso decorre que a investigação permanecerá perante juízo não correspondente ao foro, até que as meras menções se transmudem em indícios de participação. E, para que isso ocorra, será a autoridade investigada — ainda que não oficialmente — perante juízo diverso do da sua prerrogativa. Ora, não cabe à jurisdição diversa ao foro apurar se, por trás das meras menções, há indícios de participação, sob pena de transformar o fortuito em regra, em uma linha ordinária — mas não oficial — de investigação.

Daí a importância desse enfoque maior na fortuidade do encontro. Se, como visto, a prova seria ilícita, não fosse a teoria do encontro fortuito de prova, o método mais adequado para preservar essa licitude é justamente verificando o momento a partir do qual, pela moldura fática dos autos, passará a autoridade a integrar o escopo de investigação, já que é isso que afasta a casualidade do posterior encontro. E, tendo em vista se tratar de teoria limitadora de direito fundamental, o método de interpretação deverá ser restritivo, isto é, na dúvida, deve-se declinar a competência.

Essa mudança de olhar produz severos impactos, pois é possível que os indícios sejam bem embrionários (como em uma notícia-crime) ou que as menções nem façam acusações diretas contra a autoridade, mas, se o seu conteúdo indicar que os trabalhos investigativos naturalmente — como uma consequência lógica e até obrigatória — passarão pela apuração do envolvimento dessa autoridade, não mais haverá fortuidade. E, portanto, a partir daí, não mais será preservada a licitude das provas, caso não haja declínio.

Mantermos o foco apenas na robustez dos elementos de prova, autorizando que o primeiro grau de jurisdição apure o quanto achar suficiente até atingir, a seu critério, o standard de indícios de participação é o que torna o campo fértil para investigações reflexas de autoridades detentoras de foro, em violação ao juiz natural. E essa anomalia foi enfrentada e coibida no acórdão do HC 189.115/BA, ao observar que “buscavam as autoridades provas efetivas do envolvimento do paciente”.

Com esse recente acórdão, então, o STF deu mais um passo importante na coibição de investigações reflexas a autoridades detentoras de foro especial, focando mais na casualidade do encontro do que na robustez das provas, o que, a nosso ver, resguarda de maneira mais eficiente o juízo natural e a prerrogativa de foro.


[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. — Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. p. 699

[2] STF, RCL nº 2.101/DF-AgR, Rel. Ministra Ellen Gracie, Plenário do STF, DJ de 20/9/2002; HC 82.647, relator ministro Carlos Velloso, Segunda Turma, julgado em 18/3/2003, DJ 25/4/2003.

[3] STJ, APn 675/GO, relator ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 17/12/2012, DJe 21/2/2013; HC 315.670/RS, relator ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 02/10/2018, DJe 15/10/2018; AgRg no RHC 123.846/PR, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 19/05/2020, DJe 27/05/2020.

[4] STF, INQ 3305, relator ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 12/08/2014, acórdão DJe publicado em 02-10-2014.

[5] STF, RHC 135.683, relator Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 25/10/2016, Public. 03/04/2017.

[6] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14 ed. — São Paulo: Saraiva, 2017. p 125

[7] “(…) enquanto não existam indícios concretos que confirmem os ‘rumores’ de suposta participação  de  detentor  de  prerrogativa de  foro nos delitos investigados, e autorizem a instauração de Inquérito contra ele, não há motivo idôneo para a declinação da competência” (STF, ministro Luiz Fux, voto no Inq. 3305/STF, DJe 01-10-2014).

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