Limite Penal

No cumprimento de mandado de prisão, policiais podem vasculhar tudo

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

1 de abril de 2022, 11h08

1) Não pode: O título é compatível com o regime autoritário que vivenciamos no período pós golpe de 1964, comemorado por alguns na data de ontem. Mas, sendo sexta-feira, 1º de abril, é mentira.

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2) Conhecer o Código de Processo e o comportamento dos Tribunais Superiores: É clássica a afirmação de Gian Domenico Pisapia (Compendio di Procedura Penale. Padova: Cedam, 1985) de que o grau de civilidade e democracia de um povo pode ser medido a partir da observância, ou não, das regras processuais penais, no sentido de que para se conhecer um país, deve-se verificar o grau de eficácia das normas de proteção aos direitos fundamentais. Daí a importância das posições assumidas pelos Tribunais Superiores, dado que direito sem garantia é o que Luigi Ferrajoli aponta como "falácia garantista" (Direito e Razão, São Paulo: RT, 2012).

3. Hipóteses de penetração na Casa: A polícia ou qualquer um do povo (CPP, artigo 301) está autorizado a adentrar na casa (asilo inviolável, CR, artigo 5º, XI) em três hipóteses: a) flagrante delito (CPP, artigo 302 e 303); b) desastre ou socorro; ou, c) por determinação legal.

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4. Cumprimento de Mandado: Na hipótese de cumprimento de mandado expedido por autoridade judiciária, a restrição do direito fundamental está vinculada a uma "finalidade" determinada e, necessariamente, constante do mandado. As alternativas, em geral, serão: a) prisão preventiva; b) prisão temporária; e, c) busca e apreensão.

5. Limites e Finalidade previamente delimitados: Em qualquer das hipóteses, a função do agente público é a de cumprir o "objeto do mandado" em seus exatos termos. Nem mais, nem menos. Aliás, orienta-se constantemente o uso de câmeras para comprovação da conformidade da ação com a finalidade de mitigar o risco de todos (agentes da lei, alvos e terceiros inocentes). A não utilização de câmeras, se disponíveis, opera em desfavor dos agentes da lei.

6. Extrapolamento do Mandado: Considere a hipótese de mandado de prisão (preventiva ou temporária). O agente da lei está autorizado somente a penetrar na casa do alvo para o fim de realizar a captura. Efetivada, a "causa" da autorização estará finalizada. Dito de outro modo, obtida a finalidade, a autorização para penetração está cessada. Por isso, a prática de "vasculhar" a casa, realizar "busca pessoal" nos demais ocupantes ou recolher bens e documentos significa o extrapolamento da finalidade do mandado. É da ordem do excesso.

7. Configura Abuso de Autoridade: Se ninguém pode alegar desconhecimento da Lei (LINDB, artigo 3º), muito menos os agentes da lei. Por isso, o artigo 25 da Lei de Abuso de Autoridade estabelece:

"Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito. […] Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude".

A exigência do artigo 1º, §1º da LAA, decorre do conhecimento legal e da pretensão de prejudicar o alvo, porque favorecer agride a lógica.

8. Modalidade de Fishing Expedition: A procura por elementos para além do objeto do mandado é modalidade de "fishing expedition", em que o agente da lei procura "pescar" alguma coisa que possa prejudicar o alvo, sem que tenha prévia autorização para tanto. O tema foi tratado nos nossos cursos (aqui Aury; aqui Alexandre) e, também, no livro "Fishing Expedition", publicado por Viviani Ghizoni da Silva, Philipe Benoni Melo e Silva e Alexandre Morais da Rosa (aqui)   

9. STJ e o Habeas Corpus nº 663.055, relator ministro Rogério Schietti Cruz: Julgado em março de 2022, o robusto voto do ministro Rogério Schietti Cruz afirmou:

"5. Por se tratar de medida invasiva e que restringe sobremaneira o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se circunscrever apenas ao estritamente necessário para cumprir a finalidade da diligência, conforme se extrai da exegese do artigo 248 do CPP, segundo o qual, 'Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência'".

6. É ilícita a prova colhida em caso de desvio de finalidade após o ingresso em domicílio, seja no cumprimento de mandado de prisão ou de busca e apreensão expedido pelo Poder Judiciário, seja na hipótese de ingresso sem prévia autorização judicial, como ocorre em situação de flagrante delito. O agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites do escopo — vinculado à justa causa — para o qual excepcionalmente se restringiu o direito fundamental à intimidade, ressalvada a possibilidade de encontro fortuito de provas.

7. Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade.

8. Segundo Alexandre Morais da Rosa, "Fishing Expedition ou Pescaria Probatória é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem 'causa provável', alvo definido, finalidade tangível ou para além dos expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade" (ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390).

9. Sobre o desvio de finalidade no Direito Administrativo, Celso Antonio Bandeira de Mello ensina: "Em rigor, o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la; é burlar a lei sob pretexto de cumpri-la. Daí por que os atos incursos neste vício denominado 'desvio de poder' ou 'desvio de finalidade' são nulos. Quem desatende ao fim legal desatende à própria lei" (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo, 27 ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 106).

10. A conformidade procedimental: As restrições ao exercício do poder decorrem da construção civilizatória, em que as limitações aos direitos fundamentais devem sempre ser interpretadas de modo restritivo. Por isso, o comportamento oportunista dos agentes da lei, além de levar à declaração da ilicitude do material apreendido, submete o agente à responsabilização penal e administrativa.

11. A justificativa dos "Campos Abertos": A duvidosa invocação da "Teoria dos Campos Abertos" (plain view doctrine) pressupõe a filmagem da ação, demonstrando-se a evidência da situação sem cortes, montagens ou jeitinhos, aliás, como consta no voto do ministro Rogério Schietti Cruz. Segue-se que Ricardo Jacobsen Gloeckner (Nulidades no Processo Penal: Introdução principiológica à teoria do ato processual irregular. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 501-503) esclarece:

"Em suma, a limitação da teoria dos campos abertos trata basicamente da possibilidade de o agente apreender elementos de convicção que se encontram em poder do investigado quando tais coisas se encontram à vista do agente policial que realiza a diligência. Desta forma, a omissão do mandado de busca e apreensão quanto ao objeto da busca encontrado à vista pelo agente policial é suplantada por esta limitação, que trata de validar a apreensão do objeto pela autoridade. O leading case nesta limitação é o caso US vc Carty, em que houve a apreensão de arma de fogo equipada com silenciador encontrada no domicílio do acusado, muito embora o mandado não fizesse menção a ela. Pela aplicação da doutrina dos campos abertos, esta omissão do mandado foi suprida pelo objeto apreendido se encontrar à mostra da autoridade, sendo, portanto, considerada legítima. Algumas exceções são colocadas quanto à aplicação da doutrina dos campos abertos. A primeira delas reside na circunstância de não se aplica a plain view doctrine quando o agente policial já executou o objeto do mandado e a prova surge após a consumação daquele objeto. Num segundo momento, torna-se objetável a referida limitação no momento em que o agente policial revista lugares nos quais o objeto do mandado jamais poderia se encontrar".

A ausência de "filmagem" de toda a ação impede, de qualquer modo, o argumento dos "campos abertos". Até porque abre espaço incontrolável para a ação de agentes da lei oportunistas, como a experiência do "golpe de 64 nos mostrou", especialmente pela "síndrome do pequeno poder" (tendência autoritária de quem exerce posição de vantagem em contextos limitados: porteiro, segurança de aeroporto, policial, MP, juiz, estagiário etc., em tese, todos que extrapolam os limites).

12. STJ, Habeas Corpus 695.457, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro: No mesmo sentido e o voto:

"3. O cumprimento de mandado de prisão não justifica a realização de busca na residência do agente, procedimento que demanda autorização judicial expressa ou a autorização explícita e espontânea do réu, o que não ocorreu in casu, como consignado corretamente na sentença absolutória.

4. Na mesma linha a manifestação da Procuradoria-Geral da República, para quem, "diante da ilegalidade no ingresso dos policiais na residência do paciente, deve ser reconhecida a invalidade das provas obtidas mediante violação domiciliar, bem como restabelecida a absolvição aplicada pelo juízo sentenciante".

5. Habeas Corpus concedido para anular as provas decorrentes do ingresso forçado no domicílio, com o consequente restabelecimento da sentença absolutória, acolhido o parecer ministerial.

(HC nº 695.457/SP, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª T., DJe, 11/3/2022)

Retomando o voto do ministro Rogério Schietti para finalizar:

"10.3 Mesmo se admitida a possibilidade de ingresso no domicílio para captura do acusado — em cumprimento ao mandado de prisão ou até por eventual flagrante do crime de falsa identidade —, a partir das premissas teóricas acima fundadas, nota-se, com clareza, a ocorrência de desvirtuamento da finalidade no cumprimento do ato. Isso porque os objetos ilícitos (drogas e uma munição calibre .32) foram apreendidos no chão de um dos quartos, dentro de uma caixa de papelão, a evidenciar que não houve mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo réu — certamente portador de dimensões físicas muito superiores às do referido recipiente —, mas sim verdadeira pescaria probatória dentro do lar, totalmente desvinculada da finalidade de apenas capturar o paciente. […]

10.5 A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação da norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela derivados, porque decorrentes diretamente dessa diligência policial. É preciso ressalvar, contudo, que a condenação pelo crime do art. 307 do CP (falsa identidade) não é atingida pela declaração de ilicitude das provas colhidas a partir da invasão de domicílio, eis que a prática do delito, ao que consta, foi anterior ao ingresso dos agentes no lar do acusado".  

13. STF, Habeas Corpus nº 209.896, relator ministro Gilmar Mendes: Em contexto similar, diante do cumprimento de mandado de prisão, os agentes vasculharam a casa do alvo, ocasionando a declaração da ilicitude das provas:

"… a existência de mandado de prisão temporária não autorizava as indevidas buscas e apreensões promovidas pelas autoridades policiais na residência dos acusados e que as provas decorrentes dessa medida deveriam ser anuladas em virtude desse vício de origem. Destaque-se que houve a preclusão do acórdão que reconheceu a ilicitude das provas obtidas a partir da invasão do domicílio da corré e ex-namorada do impetrante, de modo que não se revela juridicamente possível a reintrodução desse material ilícito em processo conexo que trata do crime de associação criminosa".

14. Conformidade Procedimental: Rômulo Moreira (aqui) diz que "não vale tudo no processo penal" e as regras existem com finalidades especificas. A condenação de alguém deve se valer de prova idônea, vedando-se atividade probatória ilegal/ilícita. A Constituição, em seu artigo 5º, LVI, fixa que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". A Lei de Abuso de Autoridade pune quem "produz" e quem "usa" a prova ilícita (artigos 22 e 25). Os agentes públicos, no exercício do poder estatal, não podem abusar dos poderes conferidos.

O ministro Sebastião Reis Júnior (STJ), no julgamento do Habeas Corpus nº 191.378, foi preciso:

"Por isso mesmo, inicio com as seguintes reflexões: Qual o 'valor mais nobre': o valor de proteção à intimidade das pessoas ou o da busca da verdade nos processos? Qual o limite da relativização dos direitos fundamentais? Quais 'os limites' do direito à prova? O 'modo de agir' pode valer mais do que o 'resultado'? Como devem ser vistas as regras probatórias? De um lado, busca-se a preservação da intimidade, da privacidade e de seus consectários (inviolabilidade de sigilo de dados e das comunicações telefônicas, bancário e fiscal); de outro, temos a segurança da coletividade e o poder-dever do Estado de reprimir práticas delitivas. (…) E é exatamente no processo penal, onde avulta a liberdade do indivíduo, que se torna mais nítida a necessidade de se colocarem limites à atividade instrutória. A dicotomia defesa social/direitos de liberdade assume frequentemente conotações dramáticas no juízo penal; e a obrigação de o Estado sacrificar na medida menor possível os direitos de personalidade do acusado transforma-se na pedra de toque de um sistema de liberdades públicas".

Aprendemos com Jacinto Coutinho, Janaína Matida, Rachel Herdy, Marcella Nardelli, Flaviane Barros, Luciano Góes, Luis Guilherme Vieira, Leonardo Halah, Ana Claudia Pinho, Nereu Giacomolli, Vinícius Vasconcellos, Leonardo Marinho, Simone Schreiber, Leonardo de Paula, dentre outros tantos, que as regras de garantia servem de modo universal (para todos), motivo pelo  qual é vedada a consideração do material obtido de modo irregular. As condições e os pressupostos formais são garantias democráticas e não favores concedidos aos imputados, até porque a inobservância das regras probatórias tende a ser utilizada por agentes oportunistas, além de fomentar erros judiciários, como aponta Luiz Eduardo Cani (aqui). Aliás, Geraldo Prado e Juarez Tavares reafirmam a orientação.

Por isso a importância de conhecer as regras e, também, o comportamento dos julgadores dos Tribunais na garantia da eficácia das "regras do jogo", sob o risco de se transformarem, como dizia Luis Alberto Warat, em "promessas de amor" (La garantia soy yo). A exigência de que os agentes procedimentais se orientem pelo dever de conformidade (Compliance Processual Penal) implica na vedação da obtenção, inclusão e utilização da prova ilícita. E não pode alegar boa-fé ou ausência de dolo quem está ciente da prática ilícita, salvo se a audiência for no dia 1º de abril.

PS 1. Parabéns: Luize Cristina de Oliveira Alves, Isabela Ferrari, Juliana Goulart, Camilin Marcie de Poli pela aprovação das dissertações e teses durante a semana.

PS 2. Parabéns ao Instituto Baiano de Processo Penal (IBADPP), na pessoa do nosso presidente Vinicius Vasconcellos, que completa 11 anos de luta. Axé!

PS 3. A Lei 14.321 instituiu nova tipificação na Lei de Abuso de Autoridade, denominada de "Violência Institucional", com a seguinte redação: artigo 15-A: "Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: I – a situação de violência; ou II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. §1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3. §2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro".

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