Opinião

A PEC da Relevância e seu impacto na Justiça

Autores

1 de abril de 2022, 18h07

De tempos em tempos, matérias de suma importância ao mundo jurídico avançam no Congresso cercadas de controvérsias. Dentre os exemplos mais relevantes, está a PEC nº 10/2017, conhecida como a "PEC da Relevância". Proposta em 2012 pela então deputada federal Rose de Freitas, seu objetivo é nobre: reduzir a massiva quantidade de processos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). O fenômeno da (hiper) judicialização no Brasil, atestado pelos mais de 70 milhões de processos judiciais em tramitação em 2021, atinge em especial os tribunais superiores, onde se afunilam grande parte dos processos do país. Alterando o artigo 105 da Constituição Federal, a PEC pretende condicionar o conhecimento do recurso especial  à semelhança do que já ocorre no recurso extraordinário com o requisito de repercussão geral  à demonstração pelo recorrente da "relevância" de sua pretensão recursal. 

À época da proposta, os esforços legislativos de operadores do Poder Judiciário estavam concentrados principalmente na elaboração de um novo Código de Processo Civil, motivo pelo qual a PEC restou estacionada nos escaninhos da Câmara dos Deputados. Contudo, em 2017, após forte pressão de integrantes de tribunais superiores — receosos de que as disposições do CPC/15 não seriam suficientes para conter o aumento do número de recursos  a proposta foi colocada em votação e aprovada por larga maioria, nos termos do parecer do relator Deputado Federal Sandro Mabel. Recentemente, em 3 novembro de 2021, o projeto foi aprovado pelo Senado Federal com ajustes, retornando à Câmara dos Deputados para nova (e última) votação. 

Não causa surpresa que iniciativas bem-intencionadas sejam propostas no Congresso. É também natural se esperar manifestações favoráveis a tal mudança por parte de integrantes do STJ, que julgam mais de um milhão de processos no período de ano. Portanto, diante desse kafkiano contexto, é compreensível a afirmativa do ministro-presidente do STJ, Humberto Martins, um dos grandes fiadores da proposta, no sentido de que é "O objetivo central da proposta () fazer com que o STJ deixe de atuar como terceira instância — revisora de processos cujo interesse muitas vezes está restrito às partes — e exerça de forma mais efetiva o seu papel constitucional".  

Com o devido respeito aos esforços dos idealizadores da PEC da Relevância, em vista do tema guardar enorme impacto no trabalho de advogados, magistrados e jurisdicionados, é seguro afirmar que a mudança pretendida, em nome de um pretenso aumento de eficiência no sistema recursal, impactará negativamente a prestação jurisdicional. 

A PEC já foi objeto de justas críticas, em especial por parte de Lênio Streck, as quais não podem ser esquecidas. Como bem colocado pelo ilustre professor, verifica-se na proposta uma "supressão de direitos em nome da eficiência", que poderia muito bem ser aprimorada com outras medidas não sacrificadoras de garantias constitucionais, tais como o aumento do número de integrantes do STJ. Afinal, se há mais trabalho, decorrente da expressiva demanda, por qual motivo não se deve aumentar o efetivo?    

Há outros pontos que necessitam de atenção. 

O primeiro é uma das hipóteses de relevância presumida. Embora o novo §1º do artigo 105 incumba à legislação infraconstitucional definir exatamente no que consistirá a "relevância"  tal qual a Lei nº 11.418 de 2006 introduziu no antigo Código de Processo Civil o conceito de "repercussão geral" , o §2º a ser criado pela PEC dispõe situações nas quais a existência de relevância será presumida. Esse dispositivo não constava no projeto original, mas foi proposto pela Ordem dos Advogados do Brasil e acatado pelo Senado Federal. A redação de ambos os parágrafos é a seguinte: 

"§1º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo não o conhecer por esse motivo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento.
§2º Haverá a relevância de que trata o §1º nos seguintes casos: 
— ações penais; 
— ações de improbidade administrativa; 
— ações cujo valor ultrapasse 500 salários-mínimos; 
— ações que possam gerar inelegibilidade; 
— hipóteses em que o acórdão recorrido contraria jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça; 
— outras hipóteses previstas em lei".

A introdução desse §2º, sem dúvida, constitui avanço na redação da PEC e servirá para reduzir a insegurança jurídica em casos especialmente delicados nos quais direitos fundamentais estão em jogo, como de fato ocorre em toda ação penal, por exemplo. Entretanto, a previsão constitucional de que ações cujos valores ultrapassem quinhentos salários-mínimos possuem relevância presumida é deveras problemática. 

Partindo do pressuposto de que um processo é relevante quando extrapola os interesses pessoais das partes, por que razão o valor da causa consistiria em critério adequado para ser verificada a sua presença? O prognóstico a ser feito caso mantida a redação será a transformação do STJ, o Tribunal da Cidadania, em um tribunal dos cidadãos mais abastados, cujos processos gozarão de relevância presumida por força da própria Constituição apenas por envolverem quantias bastante elevadas. Tal previsão é a constitucionalização da desigualdade no acesso à Justiça. 

Ademais, a redação do §1º da PEC, ao determinar que a falta de relevância não pode ser reconhecida sem manifestação de 2/3 do órgão julgador, apresenta-se como mais uma etapa que atrasará o julgamento dos recursos, demandando a reunião do colegiado apenas para decidir a ausência de relevância. Como se sabe, na prática, a grande maioria das decisões de inadmissão de recursos especiais é feita monocraticamente, seja pela presidência do Tribunal ordinário, do próprio STJ ou pelo relator do recurso. As pautas das sessões ficarão congestionadas com a fila de recursos especiais cuja relevância precisará ser analisada pelos órgãos colegiados. 

Por fim, ao aprovar PEC idealizada anteriormente à introdução do CPC/15, o Congresso Nacional acabou por ignorar as disposições do novo sistema processual que ele próprio instituiu. Isso porque o texto referido desconsidera a existência dos institutos do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), recursos repetitivos, e o Incidente de Assunção de Competência (IAC), instrumentos previstos no CPC/15 para aprimorar a prestação jurisdicional e reduzir o volume de recursos que desaguam nos tribunais. Tais institutos, recentemente introduzidos, ainda se encontram em fase de maturação e estão demonstrando seus efeitos concretos, não havendo razão para criar mais um filtro apenas seis anos depois da vigência do Novo Código. 

Essas são apenas algumas das discussões que deveriam ter sido travadas ao longo da tramitação da relevante proposta, mas provavelmente só receberão o devido aprofundamento após a sua aprovação. Enquanto isso não ocorrer, como sempre, serão os jurisdicionados  em especial os hipossuficientes  que sofrerão com os obstáculos criados pela PEC da Relevância e as incertezas em sua aplicação.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!