Opinião

Improbidade administrativa e assédio sexual

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29 de setembro de 2021, 15h06

Tramita no Senado Federal o PL 2.505, de 2021, oriundo da Câmara dos Deputados, que altera a Lei da Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), que é o código da moralidade e da ética dos agentes públicos do Brasil e os pune por desvios e disfunções como enriquecimento ilícito, prejuízo ao patrimônio público e atentado aos princípios da Administração Pública.

O projeto de lei enfraquece a luta contra a improbidade, como muitos já apontaram, o que é assaz preocupante em face de estruturas de poder arquitetadas sobre bases historicamente patrimonialistas.

Um dos tópicos a despertar atenção é a limitação da incidência do artigo 11, que pune os atentados aos princípios da Administração Pública, em que o agente público não precisa enriquecer financeiramente, nem lesar os cofres públicos, mas dolosamente age contra os cânones da ética pública, usando seu poder para prejudicar ou beneficiar outrem de maneira contrária ao Direito, à Justiça e à ética, como ocorre nos casos de desvio de finalidade, prevaricação, divulgação de inside information, contratação de servidores sem concurso ou por nepotismo etc.

A fórmula normativa que se pretende adotar é a taxatividade do rol dessas situações, desalinhando de seu vigente caráter exemplificativo, e que gera várias condenações judiciais à perda da função pública, à suspensão temporária de direitos políticos, à multa, entre outras. Se é certo que mera irregularidade ou simples ilegalidade não constitui improbidade por demandar esta desonestidade, a solução projetada não é a mais adequada — bastaria explicitar essa óbvia premissa.

A consequência disso é que vários atos gravemente imorais se tornarão impunes. Chamamos a atenção sobre o ponto porque um deles é a prática de assédio no exercício de função pública.

O assédio sexual representa uma das manifestações mais evidentes da desigualdade de gênero no nosso país, vitimando, na imensa maioria dos casos, mulheres. Traz na essência a relação de poder de dominação do homem e subordinação da mulher, criada e reforçada a partir da construção histórica de uma pretensa inferioridade feminina, sedimentada por discursos, práticas e normas discriminatórias. Trata-se, portanto, de verdadeiro fenômeno social, de proporções epidêmicas, porque ainda hoje persiste o desequilíbrio dos papéis e lugares sociais atribuídos a homens e mulheres na sociedade, que cria condições para a violência de gênero.

O comportamento do assediador viola a dignidade, a liberdade sexual, a saúde e a intimidade das mulheres, direitos assegurados constitucionalmente e nos tratados e convenções internacionais sobre os Direitos Humanos. No âmbito das relações de trabalho, a intimidação costuma exprimir também ameaça à manutenção do emprego da vítima e, portanto, à sua própria subsistência ou de sua família, daí seu caráter ainda mais corrosivo.

O assédio sexual pode compreender diferentes manifestações, das mais escancaradas às mais sutis, que constrangem, causam temor, silenciam, impondo limites ao pleno desenvolvimento do potencial de trabalho das mulheres, acarretando queda de rendimento profissional, perda da autoconfiança ou do próprio interesse no exercício da atividade, além de ser causa de danos psíquicos e emocionais.

É fundamental abandonar de uma vez por todas noções equivocadas e até romantizadas sobre abordagens masculinas grosseiras ou grotescas no ambiente de trabalho para compreender que o assédio não se define pela noção de desejo sexual, constituindo, mais propriamente, manifestação de poder.

Mulheres que já foram vítimas de assédio no âmbito das relações de trabalho costumam relatar sentimentos de medo, vergonha, culpa, temor de exposição e, principalmente, de retaliação. Até porque não é incomum que, diante da recusa de adesão à sua investida de caráter sensual ou sexual, o assediador passe à prática também de assédio moral contra a vítima, por meio do qual promove perseguições, humilhações e desqualificações públicas.

Também nessa modalidade a origem está no abuso de poder. E as manifestações podem ocorrer por palavras, gestos, atos, omissões e até por comportamentos insidiosos, de hostilidade ou indiferença, que minam a capacidade de reação da vítima.

Chama a atenção que mulheres que foram vítimas de assédio também descreveram sensação de isolamento, desamparo, descrédito e dificuldades de encontrar canais seguros para denúncia em seus locais de trabalho.

De fato, não há como negar que o assédio sexual sempre contou com o estímulo da indiferença da sociedade, omissão das próprias instituições e impunidade por parte da Justiça, o que contribuiu para a inaceitável banalização da prática no âmbito das relações de trabalho.

Nesse aspecto, a legislação adequada tem papel fundamental. Não há como sociedade e instituições se posicionarem firmemente pelo fim do assédio sexual no ambiente de trabalho quando a lei caminha no sentido inverso. Igualmente não há possibilidade de engajamento efetivo e conscientização social sobre as graves consequências do assédio nas relações de trabalho, para a vítima e toda a sociedade, sem a adoção de políticas eficazes de responsabilização, como estratégia para prevenção. 

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o assédio sexual exercido por agente público no exercício da função é considerado ato de improbidade administrativa que viola os princípios da Administração Pública, punindo a conduta com base no artigo 11 da Lei 8.429 (REsp 1.255.120/SC, 2ª Turma, relator ministro Humberto Martins, 21/5/2013; REsp 1.219.915/MG, 2ª Turma, relatora ministra Eliana Calmon, 19/11/2013), também dispensando esse entendimento ao assédio moral (REsp 1.286.466/ RS, 2ª Turma, relatora ministra Eliana Calmon, 3/9/2013; AgInt no REsp 1.804.136/SE, 2ª Turma, relator ministro Francisco Falcão, 3/3/2020) porque ambos retratam o abuso de poder.

A adoção de rol taxativo significa a exclusão da perspectiva de responsabilização de casos graves de mau uso do poder, em detrimento de outros servidores públicos ou do público em geral, desconsiderando que a lei pune aqueles que demonstrem caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida, como ocorre nos casos de assédio sexual.

Urge, portanto, que o Parlamento evite esse retrocesso que afeta sobretudo mulheres.

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