Opinião

Os critérios de fixação do novo aluguel em ação renovatória

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28 de setembro de 2021, 6h37

A atividade econômica desempenhada por empresário proporciona a conjugação de diversos bens corpóreos e incorpóreos que, no seu conjunto, compõem o fundo de comércio ou estabelecimento empresarial, destacando-se, entre os incorpóreos, o ponto empresarial que é o espaço físico eleito para que nele seja exercida a atividade econômica.

Quando se tratar de imóvel locado para finalidade comercial, a Lei de Locação dispõe que é direito do locatário renovar a locação, sob a teleologia da proteção ao fundo de comércio que se presume ter sido criado e construído pelo inquilino durante o período de vigência da locação, com a natural expectativa da renovação do negócio jurídico que vem a integrar o seu próprio patrimônio. 

São requisitos previstos na Lei de Locação, em seu artigo 51, para que o locatário de imóvel comercial tenha direito à renovação do contrato, a saber: 1) contrato a renovar tenha celebrado por escrito e com prazo determinado; 2) o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos seja de cinco anos; e 3) o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos.

A finalidade principal da ação renovatória é, pois, a proteção do fundo de comércio desenvolvido pelo locatário no período da ocupação do imóvel, com a possibilidade de extensão pelo prazo de cinco anos, desde que preenchidos os requisitos legais (REsp 1.323.410, relator ministro Nancy Andrighi).

Uma das hipóteses que motivam o ajuizamento pelo locatário de ação renovatória é a ausência de consenso das partes em relação ao valor do novo aluguel, com vistas à continuidade da locação. É cediço que, após a expiração de vigência do contrato de locação, as cláusulas ajustadas continuam a disciplinar a locação, se o negócio ainda persistir, à exceção do justo preço do aluguel que demanda em tese a sua adequação ao valor de mercado (REsp 285.948, relator ministro Hamilton Carvalhido).

A petição inicial da ação renovatória deve ser instruída com a indicação clara e precisa pelo locatário das condições econômicas para a renovação da locação, o que inclui o valor do novo aluguel, a teor do artigo 71, IV, da Lei de Locação. Por observância da simetria e da sua natureza dúplice, pode o locador, em sua defesa, insurgindo-se contra o pedido formulado pelo locatário, postular a modificação do valor do aluguel (cf. J. Nascimento Franco. Ação Renovatória. São Paulo: Malheiros, p. 162; e REsp 285.472, relator ministro Fernando Gonçalves).

Resta examinar qual o critério de que se pode valer o juiz para o julgamento da demanda renovatória fundada na divergência no valor do aluguel, a saber: deve prevalecer o valor do aluguel anteriormente pactuado na locação ou deve ser fixado um novo valor consentâneo pura e simplesmente com o de mercado?

A orientação tradicional extraída da doutrina e da jurisprudência revela que deve o juiz determinar a realização de prova pericial com vistas à fixação do valor do novo aluguel adequado às condições de mercado, eis que o aluguel de mercado é devido não em razão da existência de uma locação que se expirou, e, sim, em decorrência da utilização de coisa alheia, evitando-se o enriquecimento sem causa (cf. Sylvio Capanema de Souza Da Locação do Imóvel Urbano. Rio de Janeiro: Forense, p. 635; e REsp 327.022, relator ministro José Arnaldo da Fonseca).

Nesse contexto há, inclusive, orientação jurisprudencial no sentido de que a quantia requerida pelo autor, a título de revisão de aluguel, afigura-se meramente estimativa, a depender de laudo pericial e da fixação pelo juiz, não configurando julgamento ultra petita estabelecer valor superior ao postulado com remissão ao chamado preço de mercado (AgInt nos EDcl no AREsp 623.076, relator Marco Buzzi), o que não se coaduna, a nosso sentir, com os princípios dispositivo e da congruência previstos nos artigos 141 e 492 do CPC, segundo os quais, respectivamente, o juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, e a sentença deve ser proferida nos termos da postulação, sendo vedado proferir decisão em quantidade acima do pleiteado.

De outro lado, há a orientação jurisprudencial fundada na prevalência da autonomia privada de que a cláusula contratual em que se prevê o valor do aluguel não pode ser desprezada unicamente com fundamento na situação de mercado, sem a demonstração de fato superveniente que tenha alterado a equação financeira inicial da locação, especialmente quando não há lastro suficientemente apto a demonstrar os motivos pelos quais a autonomia das partes não poderia prevalecer (cf. voto-vista da ministra Maria Isabel Gallotti no EDcl no AgInt no AREsp 1.149.602).

Afigura-se admissível que, no bojo do contrato de locação, as partes ajustem os critérios específicos que devem nortear a eventual renovação do contrato, devendo tais critérios ser observados na demanda renovatória, sob pena de flagrante violação ao princípio da autonomia privada. A noção de autonomia privada revela o poder reconhecido pela ordem jurídica aos particulares para disporem acerca dos seus interesses, especialmente os econômicos (autonomia negocial), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivos efeitos, na lição de Ana Prata ("A tutela constitucional da autonomia privada". Coimbra: Almedina, p. 11).

Sendo assim, verifica-se que, por ocasião do julgamento da ação renovatória, há de ser ter atenção especial se houve fato superveniente ao contrato que, alterando a equilíbrio econômico-financeiro da locação, justifique o afastamento da autonomia da vontade livremente contratada, de modo que o novo aluguel não pode ser fixado, única e exclusivamente, de acordo com as condições de mercado, sob pena de haver interferência indevida do Poder Judiciário no campo da autonomia negocial.

Na ação renovatória fundada na divergência de valor do aluguel, aos locador e locatário incumbe a demonstração de que houve fato superveniente à locação que justifique a modificação do valor anteriormente pactuado de modo livre e espontâneo, isto é, deve haver a demonstração da ocorrência de fato superveniente que configure a oscilação do mercado capaz de justificar a readequação do valor do aluguel anteriormente ajustado pelas partes.

Vale dizer, o princípio da autonomia negocial tem em tese predomínio em contratos civis e empresariais, em que as partes detêm condições de discussão com vistas à definição do conteúdo do negócio jurídico, sendo excepcionais e pontuais as hipóteses de intervenção do Poder Judiciário. Os contratos de Direito Civil e Empresarial são caracterizados pela maior extensão no exercício da liberdade contratual, sob a premissa da paridade entre as partes, de sorte que as intervenções da lei do contrato devem ser excepcionais e pontuais (cf. Judith Martins Costa. "A boa-fé no direito privado". 2ª ed., São Paulo: Saraiva, p. 626).

Assim, as hipóteses de revisão contratual em negócios jurídicos civis e empresariais pressupõem a ocorrência de alteração superveniente das circunstâncias econômico-jurídicas existentes ao tempo da celebração do negócio jurídico, pois pensar o contrário equivaleria a permitir uma intervenção indevida na autonomia privada manifestada pelos particulares.

A rigor, à luz do princípio da autonomia privada, as hipóteses previstas na Lei de Locação, em que se permite a revisão judicial do valor do aluguel, ajustando-o ao valor de mercado, visam à proteção, a rigor, da manutenção do equilíbrio econômico inicialmente ajustado no contrato pelas partes, eis que a intervenção do Poder Judiciário no contrato de locação, regido pela autonomia da vontade, não tem a simplista e única finalidade de adequar o acordo legitimamente firmado aos padrões e valores de mercado, mas, sim, preservar a equação econômica definida pelas partes à vista de eventuais alterações econômicas supervenientes (AgRg no REsp 1206723, relator ministro Jorge Mussi).

No mesmo sentido, afigura-se possível a majoração do valor do aluguel, em sede de ação renovatória, se o laudo pericial atesta que as condições atuais do empreendimento onde se localiza o imóvel locado são diversas daquelas existentes à época inicial da locação, sendo a elevação do valor da locação medida razoável para propiciar a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro na relação locatícia (AgInt no AREsp 1644552, relator ministro Raul Araújo).

Por sua vez, para efeito de majoração do valor do novo aluguel nada impede que o fato superveniente tenha sido realizado por uma das partes, como se dá, por exemplo, com a realização de benfeitorias ou acessões que se incorporam ao imóvel. Assim, em sede de demanda renovatória, o novo aluguel deve considerar a oscilação ou o reflexo patrimonial do imóvel locado, inclusive decorrente de benfeitorias ou acessões nele realizadas, eis que estas se incorporam ao domínio do locador (REsp 203.200, relator ministro Felix Fischer). Registre-se que essa orientação jurisprudencial afigura-se assentada, inclusive, em relação à pretensão de revisão do aluguel, quer na demanda renovatória, quer na demanda de revisão propriamente dita, isto é, ausente consenso entre as partes, em sede de revisional de locação comercial, o novo aluguel deve refletir o valor patrimonial do imóvel locado, inclusive decorrente de benfeitorias e acessões nele realizadas pelo locatário, pois estas incorporam-se ao domínio do locador, proprietário do bem (EREsp 1411420, relatora ministra Nancy Andrighi).

Reafirmando a diretriz da autonomia privada no campo negocial, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.947.694, no último dia 14, em voto da relatoria da ministra Nancy Andrighi, decidiu que a revisão judicial do valor do aluguel, em sede de ação renovatória de locação, afigura-se viável, caso demonstrado — pelo locatário ou locador — o desequilíbrio econômico-financeiro em razão de fato superveniente, vale dizer, a dissonância entre o aluguel contratado e o valor de mercado não autoriza, por si só, a alteração judicial do aluguel, sob pena de o juiz se imiscuir na economia do contrato.

Portanto, para que haja a modificação do valor do aluguel em sede de ação renovatória, a prova produzida no processo deve evidenciar a ocorrência de fato superveniente à locação que tenha o condão de alterar a equação econômico-financeira do negócio jurídico locatício existente à época da sua celebração, de sorte que a modificação do valor do aluguel funda-se na preservação do equilíbrio econômico-financeira do negócio jurídico, evitando-se o enriquecimento sem causa.

Em outros termos, se não houver a ocorrência de fato superveniente que tenha aptidão de alterar a base econômica do contrato de locação ajustado por ocasião da sua celebração, deve ser prestigiada a autonomia privada das partes que legitimamente elegeram anteriormente a equação financeira da locação.

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