Opinião

Bolsonaro pode prestar depoimento por escrito?

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

28 de setembro de 2021, 6h04

Nesta semana será julgado agravo interno interposto contra decisão do então ministro Celso de Mello, que indeferiu pedido feito pela Advocacia-Geral da União para que o presidente Bolsonaro prestasse depoimento (ou fosse interrogado) por escrito no inquérito policial que apura sua suposta interferência na Polícia Federal para beneficiar-se e a seus familiares.

A investigação foi instaurada em razão de requerimento do procurador-geral da República por conta de entrevista concedida por Sérgio Moro, depois de pedir exoneração do cargo de ministro da Justiça e da Segurança Pública, em que deu a entender que Bolsonaro tentou interferir na Polícia Federal.

Argumentou a Advocacia-Geral da União que a prerrogativa de ser inquirido por escrito em procedimento investigatório foi concedida a Michel Temer enquanto no cargo de presidente da República e investigado pela Polícia Federal.

A questão se mostra interessante e de fácil resolução, bastando bom senso.

Defendo ser prerrogativa de o presidente da República e outros chefes de Poder serem inquiridos e responderem por escrito às perguntas formuladas em interrogatório ou depoimento, quando investigados em inquérito policial ou procedimento investigatório criminal.

Ao que consta, pelo menos o que li, até o presente momento o presidente Bolsonaro não foi indiciado e tampouco denunciado no referido inquérito policial. Figura tão somente como investigado pela prática de infração penal.

O Código de Processo Penal, da década de 40, não prevê essa hipótese. Dele consta a prerrogativa de prestar depoimento por escrito, na qualidade de testemunha, a várias autoridades, entre elas o presidente da República. Diz o §1º do artigo 221 do Código de Processo Penal:

"(…) §1º. O presidente e o Vice-presidente da República, os presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal poderão optar pela prestação de depoimento por escrito, caso em que as perguntas, formuladas pelas partes e deferidas pelo juiz, lhes serão transmitidas por ofício".

Interpretando-se gramaticalmente o dispositivo, ou seja, ao pé-da-letra, somente em se tratando de depoimento na qualidade de testemunha é que as perguntas poderiam ser formuladas e respondidas por escrito.

É regra básica de hermenêutica que a norma deve ser interpretada à luz de todo sistema jurídico. A mera interpretação gramatical, muitas vezes, leva a equívocos.

Ora, sabidamente o investigado ou acusado pela prática de delito pode até mesmo se reservar no direito de nada dizer, sem que isso possa ser interpretado em seu desfavor, como corolário do direito à não autoincriminação (nemo tenetur se detegere). Não cabe, assim, sequer ser conduzido coercitivamente para ser formalmente interrogado ou para prestar depoimento, já que pode simplesmente se calar e nada dizer, o que, aliás, foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal:

"Arguição julgada procedente, para declarar a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, tendo em vista que o imputado não é legalmente obrigado a participar do ato, e pronunciar a não recepção da expressão 'para o interrogatório', constante do artigo 260 do CPP" (ADPF 345 e 444).

Foge à razoabilidade, até por questão de respeito que o cargo merece, sujeitar o presidente da República a se deslocar até o prédio da Polícia Federal ou outro local designado para ser ouvido por delegado de polícia (ou mesmo por procurador da República), ocasião em que, caso queira, poderá se calar.

Toda norma deve ser interpretada com razoabilidade, notadamente quando há lacuna normativa, como no caso em apreço.

No campo prático, pergunto: qual a utilidade de o presidente da República ser obrigado a se dirigir a local para ser inquirido pela autoridade policial, quando pode responder a todas as perguntas por escrito? No caso de serem necessários maiores esclarecimentos outras perguntas podem ser encaminhadas, lembrando que, como já disse, Bolsonaro, na condição de investigado, pode se calar ou até mesmo mentir sem que possa ser processado por perjúrio.

Por isso, acredito que a decisão seguirá no sentido de poder o presidente da República, seja ele quem for, na qualidade de investigado ou indiciado, responder por escrito às perguntas que lhe forem encaminhadas, aplicando-se analogicamente o disposto no artigo 221, §1º, do Código de Processo Penal, direito que foi concedido a Michel Temer no seu mandato como presidente.

Autores

  • é procurador de Justiça do MP-SP, professor, mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Penal pela ESMP-SP, palestrante e autor de diversas obras jurídicas, entre elas "Comentários à Lei de Execução Penal", "Manual de Direito Penal", "Lei de Drogas Comentada", "Estatuto do Desarmamento", "Provas Ilícitas" e "Tutela Penal da Intimidade", publicadas pela Editora Juruá.

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