Opinião

Banco Central, Proagro e legitimidade processual

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23 de setembro de 2021, 20h37

Para além da fiscalização do Sistema Financeiro Nacional e de suas funções no âmbito das políticas monetária e cambial, o Banco Central do Brasil (BCB), desde a edição da Lei nº 5.969, de 12/12/1973, desempenha atividades no contexto da política agrícola, como administrador do Programa de Garantia de Atividade Agropecuária, o Proagro. Apesar de tradicional essa competência, remanesce uma série de incompreensões jurídico-processuais sobre o instituto, notadamente no que tange à definição da legitimidade para atuar nas controvérsias judiciais sobre o tema.

Antes, porém, de discorrer sobre aspectos processuais relativos ao Proagro, faz-se necessário bem compreender sua natureza jurídica e o seu funcionamento básico. Afinal, há quase cem anos Carlos Maximiliano já nos alertava que a boa hermenêutica começava com a definição do caráter da matéria de que é objeto, e com a indicação precisa do ramo do Direito correspondente [1].

Criado pela Lei nº 5.969, de 1973, atualmente o Proagro é regido pela Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991. O programa destina-se a apoiar a produção rural ante fenômenos naturais danosos, como pragas, doenças ou secas que atinjam bens, rebanhos e plantações (artigo 59, I e II da Lei nº 8.171, de 1991). Ocorrendo perdas na produção, a proteção oferecida pelo Proagro assemelha-se por seus efeitos a seguro, podendo ter para produtor duas finalidades: a) exonerá-lo de obrigações financeiras decorrentes de operações de crédito destinadas a viabilizar a produção; b) indenizá-lo de recursos próprios utilizados no custeio.

É erro grave, porém, entender o Proagro como instrumento de mercado ou como mero seguro agrícola. Trata-se de política pública autorizada pelo artigo 174 da Constituição, que busca fomentar e proteger a atividade agropecuária, e fixar em boas condições de subsistência as famílias no campo. Sua administração foi atribuída ao BCB, segundo normas critérios e condições definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), conforme artigo 66-A da Lei nº 8.171, de 1991. Seu escopo, vale acentuar, transcende aos interesses individuais do produtor rural favorecido.

Ao CMN cabe regulamentar os termos pelos quais devem de se processar a apuração e o pagamento de coberturas (indenizações) afetas ao Proagro. O Manual do Crédito Rural [2] (MCR) é a compilação dessas normas do CMN. MCR dispõe também sobre os cuidados que o produtor rural precisa ter e demonstrar perante o agente financeiro durante todas as fases do empreendimento, que envolvem questões como: planejamento; orçamento; tecnologia correta; recomendações de insumos; execução do orçamento proposto; respeito ao zoneamento agrícola; observação do momento certo do plantio e da colheita etc.

O Proagro não tem personalidade jurídica, sendo um conjunto de procedimentos e recursos afetos à proteção e fomento da produção agropecuária. O Proagro não tem natureza contratual; nele não figuram as clássicas figuras do segurado, do segurador, da apólice e do prêmio, típicas dos contratos de seguro. O regime jurídico do Proagro é estatutário; isto é, suas normas de funcionamento são baixadas unilateralmente pelo Estado tendo em vista a concretização de bem coletivo.

Nos financiamentos rurais a participação dos produtores no Proagro é facultativa e dá-se por meio do chamado "enquadramento", e não por acordo de vontades. O enquadramento é formalizado por inclusão de cláusula específica no instrumento de crédito firmado com o agente financeiro, pela qual o beneficiário manifeste sua adesão ao Proagro (MCR, item 12-2-20). O BCB, em rigor, não participa da operação de crédito à qual se vincula a garantia do programa.

Ao aderir ao programa, o beneficiário obriga-se a pagar contribuição denominada "adicional" para custeá-lo e respeitar seus condicionantes. Nos termos do artigo 60 da Lei nº 171, de 1991, o Proagro é custeado também por recursos do orçamento da União e outros recursos que vierem a ser alocados, além de outras receitas auferidas da aplicação desses recursos.

O enquadramento no Proagro não faz surgir relação jurídica entre o BCB e o produtor rural. A legislação de regência do Proagro mantém a diretriz constante do artigo 12 da Lei nº 4.595, de 31/12/1964, de determinar que o BCB atue exclusivamente com instituições financeiras, sendo-lhe vedadas operações bancárias de qualquer natureza com outras pessoas de direito público ou privado. Como administrador, o BCB desempenha competências de fiscalização difusa, além de atuar como gestor/depositário dos recursos, não objetivando lucros.

Caso o empreendimento rural enquadrado seja acolhido por fenômenos danosos, a cobertura não é automática. O beneficiário deve elaborar comunicação de perdas e submetê-la ao agente financeiro (MCR, item 12-4-1). Em seguida, cabe ao agente solicitar os serviços de comprovação de perdas, com os objetivos de: apurar as causas e extensão das perdas; identificar os itens do orçamento não realizados, total ou parcialmente; estimar a produção a ser colhida após a visita do técnico; aferir a tecnologia utilizada na condução do empreendimento (MCR, item 12-4-4).

A decisão sobre o pedido de cobertura não é da alçada do BCB, mas do agente financeiro, a partir de análise do relatório de comprovação de perdas. Vários motivos podem levar ao indeferimento total ou parcial. Dispõe o MCR, por exemplo, que não são cobertas pelo Proagro as perdas decorrentes de plantio extemporâneo ou de falta de controle adequado de pragas e doenças endêmicas (MCR, item 12-5-3). A indenização só chegará a 100% do limite de cobertura se a perda for integral e se o beneficiário houver empregado as melhores técnicas — situação que não ocorre frequentemente. O mais provável é que, se concedida, a indenização fique abaixo dos 100% do limite de cobertura.

Se o beneficiário não concordar com o julgamento feito pelo agente financeiro, assiste-lhe o direito de recorrer no prazo de 30 dias à Comissão Especial de Recursos (CER), órgão colegiado vinculado ao Ministério da Agricultura e Abastecimento (Mapa), integrante da estrutura da União (MCR, item 12-6-1). O recurso deve ser entregue ao agente, o qual pode reexaminar a decisão denegatória, se forem apresentados fatos novos, ou revê-la, no caso de equívocos, fundamentando em parecer sua posição, quando mantido o indeferimento (MCR, item 12-6-6). Decidido o recurso pela CER, cabe ao agente a comunicação ao beneficiário, informando-lhe as razões do novo indeferimento, se for o caso (MCR 12-6-10).

Em caso de deferimento de cobertura, cabe ao BCB efetuar o pagamento das despesas imputáveis ao programa, mediante liberação por lançamento na conta reservas bancárias de cada agente (MCR, item 12-7-18). É dizer: não existe hipótese de o BCB transferir recursos do Proagro diretamente para os empreendedores rurais. Uma vez sensibilizada a conta reservas bancárias, o agente deve providenciar: a) a transferência ao beneficiário de valores referentes às coberturas de recursos próprios e de garantia de renda mínima; b) a amortização do saldo devedor do financiamento de investimento contratado, para valores referentes à cobertura de parcelas de investimentos (MCR, item 12-7-19).

Permanecendo inconformismo ante o tratamento administrativo do pedido de cobertura, assiste ao beneficiário o direito de buscar tutela jurisdicional. Nesse caso, como o BCB não participa da operacionalização concreta do programa, não intervindo na análise do pedido de cobertura, seria de se esperar que essas demandas judiciais não o incluíssem no polo passivo.

Em caso de indeferimento de cobertura, o normal seria que o empreendedor acionasse judicialmente o causador da violação do direito, o qual, na generalidade dos casos, pode ser apontado como sendo o agente financeiro do Proagro, que é sujeito de direito capaz de responder por seus próprios atos.

Não importa que o agente possa vir a ser ressarcido pelos recursos do Proagro administrados pelo BCB na hipótese de ser condenado judicialmente. Essa hipótese não exclui a legitimidade do agente; apenas autoriza que denuncie a lide ao BCB nos termos do artigo 125, II [3], do CPC, ou que o BCB atue, querendo, como seu assistente simples nos termos do artigo 119 [4] do CPC.

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça inclinou-se em torno da afirmação da legitimidade do BCB para responder à generalidade das causas sobre Proagro. A gênese desse entendimento encontra-se no julgamento, em 13 de dezembro de 1994, do REsp 23.104/RS, pela 4ª Turma do STJ (especializada em Direito Privado), tendo como relator o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, no qual se estipulou que "(n)os termos da Lei 5.969/73, em relação ao Proagro, o seguro é contratado com o Banco Central, figurando o Banco do Brasil como mero operador do programa administrado pela referida Autarquia. Daí a ilegitimidade passiva ad causam do Banco do Brasil (…)". O recorrente era o Banco do Brasil S.A.; o BCB não era parte.

Além de referir-se atecnicamente ao BCB como "contratante" do "seguro" do Proagro (tecnicamente não há contrato, nem há seguro), no voto do relator no REsp 23.104/RS constou a assertiva de que o Banco do Brasil S.A., "ao inserir na cédula cláusula mediante a qual o mutuário manifesta expressa adesão ao programa, o faz em nome do Banco Central", sem indicar em qual lei estaria disposta essa figura de mandato ou preposição. Em seguida, o relator aplicou ao Proagro, por analogia, normas pertinentes ao Direito Civil para justificar a colocação do BCB no polo passivo, verbis:

"Aliás, no acórdão estadual restou reconhecido que o banco recorrente figura como 'mero operador do programa' e que age 'por determinação do Banco Central'.
Se assim é, ao Banco do Brasil, na qualidade de simples mandatário, cumpria atender as determinações ditadas pelo Banco Central (mandante), no que tange ao valor e a forma de pagamento do prêmio do seguro. Caso desse modo não procedesse poderia ser responsabilizado, a teor do que preceituam os arts. 1307 e 1313, CC.
Em outras palavras, à instituição bancária recorrente, porque não agia em nome próprio ao efetuar a cobrança do aludido prêmio, não era dado recusar o cumprimento às orientações emanadas do ente autárquico, que, repisa-se, administra o programa 'segundo normas aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional' (artigo 3º)".

A partir do REsp 23.104/RS, a 4ª Turma reafirmou a legitimidade passiva BCB ao longo da década de 1990 nos seguintes casos: REsp 73.513/PR, relator Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 16/9/1996; REsp 118.468-DF, relator Ruy Rosado de Aguiar, DJ 18/8/1997; REsp 188.395, relator ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 15/3/1999; REsp  84.332/DF, relator Sálvio De Figueiredo Teixeira, DJ 12/4/1999; REsp 52.195-RS, relator Aldir Passarinho Junior, DJ 25/10/1999.

É digno de nota que nunca se indicou esse ou aquele contrato de mandato, por meio do qual o BCB seria o mandante e o agente financeiro o mandatário. Nem se notou que tanto as instituições financeiras como o BCB desenvolvem atividades próprias e distintas, outorgadas diretamente pela lei. É a lei, e não um acordo de vontades, que determina, por exemplo, que as instituições financeiras promovam, em nome próprio, a comprovação das perdas (artigo 65-B da Lei nº 8.171, de 1991). E não há na lei nenhuma linha que diga que o agente do Proagro atue na condição de algo como "mandatário do Banco Central". Aliás, as alusões bastante encontradiças no discurso de juristas em torno de figuras como "mandato ex lege" não passam de atecnicas que muito embotam o raciocínio jurídico.

Seja como for, à luz do entendimento da 4ª Turma, na década que se seguiu, a 3ª Turma do STJ, também especializada em Direito Privado, voltou a reconhecer que o agente financeiro não tem legitimidade processual no julgamento do AgRg no REsp 346.883/MS, relator Ari Pargendler, DJ 8/10/2007. O voto relator não contempla, porém, fundamento normativo tendente à conclusão de que o BCB teria a atribuição de responder por tudo no âmbito do Proagro. Senão, vejamos:

"Nada importa que o procedimento interno de apuração do sinistro seja responsabilidade da instituição financeira (1º grau) e do Ministério da Agricultura (2º grau); externamente, quem responde pelo Proagro é o Banco Central do Brasil. Daí a sua legitimidade para figurar no pólo passivo da ação.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o Banco Central do Brasil é parte legítima para figurar no pólo passivo das ações envolvendo o Proagro.
Nesse sentido: AgRg no Ag nº 159.650, DF, relator Ministro Barros Monteiro, DJ de 18.12.2000; Resp nº 84.332, DF, relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 12.04.1999; AgRg no Ag nº 110.071, DF, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 29.09.1997; e Resp nº 118.468, DF, relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 18.08.1997.
Voto, por isso, no sentido de negar provimento ao agravo regimental".

Note-se bem: no voto condutor do acórdão foram mencionadas apenas circunstâncias que levariam à conclusão de que o BCB seria parte ilegítima para responder a demandas do Proagro (apuração do sinistro diligenciada pela instituição financeira e, em grau de recurso, por órgão do Ministério da Agricultura), mas ilogicamente se concluiu pela legitimidade. Não se considerou que as turmas de Direito Privado não seriam competentes para apreciar controvérsias sobre uma política pública. E não se percebeu que não existe relação de derivação entre as competências desempenhadas pelo BCB e aquelas atividades concretas desenvolvidas pelos agentes financeiros, que podem, em tese, frustrar as expectativas dos beneficiários.

Errou-se na identificação do ramo de Direito pertinente e o resultado foi a inconsistente afirmação da legitimidade passiva genérica do BCB para responder a demandas sobre Proagro. A conclusão não surpreende, pois quando se erra nos primeiros passos da atividade interpretativa, só por acaso se chega a resultados acertados.

 


[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 246.

[2] Disponível para consulta em: https://www3.bcb.gov.br/mcr.

[3] "Artigo 125 – É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes: […] II – àquele que estiver obrigado, por lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo de quem for vencido no processo".

[4] "Artigo 119 – Pendendo causa entre duas ou mais pessoas, o terceiro juridicamente interessado em que a sentença seja favorável a uma delas poderá intervir no processo para assisti-la. Parágrafo único. A assistência será admitida em qualquer procedimento e em todos os graus de jurisdição, recebendo o assistente o processo no estado em que se encontre."

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