Direito Eleitoral

Disparos em massa de fake news e o novo normal das campanhas eleitorais

Autor

  • Renato Ribeiro de Almeida

    é coordenador acadêmico da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e conselheiro do Instituto Luiz Gama. É doutor em direito do estado pela USP e mestre em direito político e econômico pela Mackenzie. Autor de Direito Eleitoral da editora Quartier Latin e coautor de Participe! Eleições Partidos Políticos e Ideologias de A a Z da editora Liquet.

20 de setembro de 2021, 10h07

Com publicações, impulsionamento de conteúdo, disparos em massa de mensagens pelas redes sociais e aplicativos de mensagem, chegou-se a uma realidade da qual é impossível fugir: as campanhas políticas tornaram-se digitais. Políticos que não entenderam essa nova condição ficaram para trás.

Trata-se da terceira fase das campanhas. Antes, os cabos eleitorais eram imprescindíveis. Eram eles quem iam com o candidato cedinho à entrada das fábricas e percorriam comunidades atrás de apoio e votos. Quando a TV finalmente chegou aos domicílios brasileiros, o cabo eleitoral perdeu espaço para o marqueteiro. Esse profissional, capaz de compreender e captar emoções das massas e sintetizá-las com linguajar meticulosamente planejado em poucos minutos de programa, tornou-se o pilar das campanhas vencedoras. A produção de sucesso exigia qualidade de som e imagem típicos das telenovelas.

Até que surgiram as redes sociais, os aplicativos de mensagens e a possibilidade de o candidato selecionar o público que receberá cada conteúdo, do eleitor (em tese) falar direto com o político, doas notícias chegarem aos cidadãos por meios diversos, inclusive mediante encaminhamento de um parente no grupo da família. São três momentos. Três estágios em que a forma de fazer política mudou radicalmente.

E o Direito, ciência da convivência humana, meteu-se no mundo eleitoral para regulamentá-lo e torná-lo menos caótico. Seria impossível imaginar um cenário eleitoral sem regras, em que cada candidato financiasse do jeito que quisesse sua campanha e fizesse suas propagandas sem nenhum freio.

Mas o problema é a velocidade. O Direito não acompanha a dinâmica criativa dos marqueteiros digitais. A Lei 9.504, quando editada em 1997, pretendia-se definitiva. Finalmente o Brasil tinha uma lei eleitoral para reger os pleitos no país. De lá para cá, em todo ano ímpar, não eleitoral, fez-se pelo menos uma adição à lei de 1997. No momento atual, discute-se no Senado o projeto do novo Código Eleitoral, já aprovado pela Câmara dos Deputados.

Contudo, as dificuldades, especialmente em matéria de propaganda, não cessarão com a provável aprovação do novo código.

Atualmente a Lei 9.504/97 prevê que em 24 horas da veiculação de um conteúdo o candidato ou partido que entender que aquele material publicitário é ilegal pode promover representação na Justiça Eleitoral. Cabe ao juiz eleitoral decidir pela remoção do conteúdo (inclusive em sede de liminar), aplicar multa em caso de descumprimento e, em determinados casos, estabelecer direito de resposta.

A tutela jurisdicional vai bem quando estamos tratando das mídias tradicionais. Determinada a retirada, emissoras de TV e rádio imediatamente cessam a veiculação. Nas eleições de 2018 e 2020, grandes redes como Facebook, Twitter e Instagram também retiraram conteúdos assim que acionadas pela Justiça Eleitoral. O mesmo ocorreu com o buscador Google, que retira das pesquisas conteúdo vetado judicialmente e impede a visualização dos vídeos no YouTube, também pertencente a ele.

E, então, voltamos à velocidade e aos subterfúgios que o Direito dificilmente consegue contornar. Reportagem do site UOL neste domingo (19/9) revelou possível tentativa de utilização de VPN (rede privada virtual) para veiculação de propaganda eleitoral por parte da equipe do presidente Bolsonaro. Segundo a reportagem, a estratégia seria comandada especialmente pelos filhos do presidente Carlos e Eduardo. E contariam com o auxílio de ex-coordenadores da campanha digital de Donald Trump.

VPN é uma forma atual e relativamente simples de despistar tráfego na internet e esconder a própria identidade online. Ao conectar-se a um servidor VPN, o tráfego passa por um túnel criptografado, que dificulta a identificação do IP de onde as mensagens vieram. Mais do que isso, permitem que conteúdo produzido no Brasil consiga ser veiculado por IP estrangeiro, sob regras jurídicas de seus respectivos países. Em outras palavras, sua utilização favorece o anonimato e potencializa a disseminação descontrolada de conteúdos com fake news.

No cenário regido pela lei brasileira, a ordem emanada pela Justiça Eleitoral faz sites e provedores com sede no Brasil retirarem o conteúdo tido por ilegal. Ordem judicial se cumpre e as empresas sérias sempre o fazem.

O problema ocorre quando o material supostamente está sendo veiculado em outro país, em site com domínio estrangeiro. Suponhamos que um candidato utilize uma rede de VPN para abastecer esse site estrangeiro. Imagine um exemplo em que, após investigação, fossem descobertas publicações vindas da Hungria, país que vive atualmente sob a liderança de controverso governo. Identificada a ilegalidade à luz das leis brasileiras, a Justiça Eleitoral acionaria o Superior Tribunal de Justiça para promover a comunicação, com tradução juramentada, da decisão brasileira ao tribunal estrangeiro equivalente, desde que haja tratado de cooperação entre os países. Lá, após tramitação local, caso haja interesse do Judiciário, que avaliará a questão conforme o olhar das suas próprias leis, o país poderá retirar o conteúdo. Qual a velocidade disso tudo? Possivelmente, se tudo ocorrer bem, alguns anos.

Enquanto isso, o prazo oficial de campanhas é de apenas 45 dias. E o tio do grupo da família no WhatsApp ou Telegram terá caminho livre para compartilhar quantas fake news e propagandas inverídicas quiser. Em 45 dias o candidato que se valeu do expediente espúrio estará eleito e a continuidade da veiculação do conteúdo vai se tornar irrelevante.

Será necessário tentar anular a eleição por meio das famosas ação de investigação judicial eleitoral (Aije) e ação de impugnação de mandato eletivo (Aime). É perfeitamente possível conseguir êxito. O próprio ministro Luiz Fux, atual presidente do STF, dizia, quando exerceu a presidência do TSE, que disparos em massa de fake news são passíveis de anular uma eleição e cassar mandatos.

O problema volta a ser o tempo. O sujeito que fizer o exposto acima começará o mandato até perdê-lo por força de decisão irrecorrível da Justiça Eleitoral. Portanto, o Direito segue não acompanhando a dinâmica e criatividade dos marqueteiros digitais da política brasileira. Uma questão de velocidade.

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