Opinião

Seguridade social e fundos de pensão na jurisprudência da Corte Suprema dos EUA

Autores

  • Wagner Balera

    é professor titular na Faculdade de Direito da PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo e livre-docente e doutor em Direito Previdenciário pela mesma universidade.

  • Juliano Barra

    é doutor em Direito pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne professor assistente (2016/18) na École de Droit de la Sorbonne e professor na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie São Paulo.

18 de setembro de 2021, 7h12

Os fundos de pensão foram desenvolvidos com melhor estrutura primeiramente nos países anglo-saxões de origem beveridgiano. Isso se deu visto que benefícios previdenciários básicos, lineares e mais modestos, criavam clima mais propício para a implementação de regimes complementares. Os fundos de pensão e os trust foram as estruturas jurídicas escolhidas precipuamente para cumprir este papel. Nossa intenção, ao examinar a jurisprudência da Suprema Corte americana, consiste em pôr em evidência a influência no mundo jurídico que tais julgados representam. Ademais, é inegável que os Estados Unidos representam o nascedouro dos fundos de pensão com mercado e modelo bastante desenvolvido e que opera como paradigma para todos os outros países que houveram por bem estruturar planos de previdência privada.

Para entender como a Corte Suprema americana interpreta o regime de previdência privada nesse país, é necessário, inicialmente, entender a exata natureza jurídica conferida pela Corte à Social Security Act, lei de 14 de agosto de 1935 que inaugurou formalmente o uso do termo "seguridade social" em todo o mundo. Assim, é a partir do judgment trilogy, ou seja, da trilogia de casos julgados em 24 de maio de 1937 questionando a constitucionalidade da lei de 1935, que poderemos extrair os elementos iniciais da presente demonstração [1].

De tal modo, nos acórdãos Carmichael v. Southern Coal & Co. [2], Steward Machine Co. v. Davis [3] e Helvering v. Davis[4], a Suprema Corte americana julgou constitucional a referida Social Security Act de 1935. Em breves palavras, os dois primeiros casos eram oriundos do Alabama e diziam respeito ao questionamento das contribuições por empresas cujo objetivo era financiar os benefícios de seguro-desemprego. No caso Helvering v. Davis, originalmente de Boston, os dispositivos questionados eram as contribuições sociais para financiar o regime de aposentadorias. O móvel principal de todas as decisões teve como primado o artigo 1º da seção 8º da Constituição Americana, que afirma: "The Congress shall have Power To lay and collect Taxes, Duties, Imposts and Excises, to pay the Debts and provide for the common Defence and general Welfare of the United States; but all Duties, Imposts and Excises shall be uniform throughout the United States". A constitucionalidade do sistema de seguridade social americano baseia-se no poder fiscal do Estado de estabelecer contribuições sociais e demais contribuições com o objetivo de proteger o bem-estar social (welfare) geral [5].

Com efeito, podemos questionar se entre o conceito constitucional de seguridade social nos Estados Unidos e o previsto na Constituição do Brasil, para além dos 200 anos que lhes separam, pairam diferenças. A resposta é, por certo, positiva.

Todavia, quanto à natureza da relação jurídica previdenciária pública em particular, podemos dizer que são bastante próximas. Trata-se de direito de estrita configuração legal, não contratual, e que somente em certos casos é de se dizer que haveria a criação de direitos subjetivos. É o caso do regime de aposentadorias. Quando alguém passa a contribuir para o sistema público, não se pode afirmar que tal sujeito já se ache investido da qualidade de titular de direitos adquiridos. Pelo contrário. O legislador, diante das mudanças na sociedade, é competente para modificar a legislação e adaptá-la aos desafios de seu tempo. Mesmo após a concessão da prestação o direito adquirido não é absoluto. Outros elementos podem influenciar, como por exemplo a crise real entre as gerações no sistema de repartição que autorizaria a aplicação de nova contribuição social tendo como base de cálculo a própria prestação de aposentadoria.

Nos Estados Unidos, a natureza jurídica da relação entre o segurado e o sistema de seguridade social foi apreciada no case Flemming v. Nestor, de 20 de junho de 1960 [6]. Ephram Nestor, migrante búlgaro que chegou aos Estados Unidos em 1913 e lá viveu até 1956, quando foi expulso do país. Na época os Estados Unidos viviam a era do "macarthismo" e Ephram Nestor, segundo as evidências do julgamento, teria sido membro do Partido Comunista entre 1933 e 1939. Esse mesmo Ephram Nestor vivera 43 anos na América e entre 1936 e 1955 pagou contribuições sociais para constituição de sua aposentadoria (Federal Insurance Contributions). Em 1954, o Congresso dos Estados Unidos aprovou lei determinando que qualquer pessoa que fosse expulsa do país por causa de seu relacionamento com o Partido Comunista teria seu direito aos benefícios retirados, mesmo que tivesse base contributiva.

Em 1956, o governo notificou a esposa de Ephram Nestor, que permaneceu no país, informando-a de que não teria mais direito às prestações pagas pela seguridade social. O Tribunal Federal do Distrito de Colúmbia foi então acionado e considerou inconstitucional a alteração feita em 1954. Para essa instância, a reforma legislativa teria violado a 5ª Emenda, que dispôs: "No person shall be (…) deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation"» e que portanto essa alteração deveria ser declarada "(…) unconstitutional under the Due Process Clause of the Fifth Amendment in that it deprived appellee of an accrued property right. (…)" [7]O raciocínio considerou que os benefícios pagos pela previdência social americana criavam espécie de "direito de propriedade adquirido" aos beneficiários.

A Suprema Corte foi acionada pelo governo e a decisão da Corte de Columbia foi anulada por cinco votos a quatro para confirmar a constitucionalidade da reforma de 1954 e a anulação da aposentadoria de Eprham Nestor. O ponto-chave do acórdão é a afirmação de que a relação jurídica de seguridade social é relação jurídica legal e não contratual, que não se caracteriza como direito de propriedade. O legislador fica assim autorizado a alterá-lo. Essa decisão, que teve como relator o juiz John Harlan, aproveita os precedentes da "trilogia" de julgamentos sobre a constitucionalidade da lei de seguridade social de 1935 para fazer descrição exemplar do verdadeiro conceito de seguridade social e de inexistência de direitos subjetivos, isto é, direito adquirido.

A corte considerou, destarte: 1) que a natureza do regime de seguridade social impede a sua analogia ao criar direitos de propriedade adquiridos; 2) que o regime de previdência social é legal e não contratual [8]. Ademais, que a seguridade social é constituída por regimes caracterizados como seguros sociais e não como regimes privados. Para os juízes americanos, o seguro social não pode ser considerado da mesma natureza que as annuitys, que são formas contratuais privadas, enquanto os benefícios da previdência social são de natureza legal e variam de acordo com a vontade da sociedade, representada pelo Parlamento [9].

Em outro caso histórico, United States v. Cleveland Indians Baseball Co.  [10], de 17 de abril de 2001, a Corte Suprema decidiu claramente que o conceito de benefícios previdenciários da seguridade social não deve ser confundido com a natureza jurídica dos benefícios pagos pelos planos de previdência privada, principalmente pelo fato daqueles não produzirem direito de propriedade sobre os benefícios. : "Although Social Security taxes are used to pay for Social Security benefits in the aggregate, there is no direct relation between taxes and benefits at the level of an individual employee. As the Company itself acknowledges, 'Social Security tax 'contributions,' unlike private pension contributions, do not create in the contributor a property right to benefits against the government, and wages rather than [tax] contributions are the statutory basis for calculating an individual's benefits.' Brief for Respondent" [11].

Sob a perspectiva jurídica, os fundos de pensão e a previdência complementar no Estados Unidos não podem ser qualificados como componentes do sistema de seguridade social. Nesse país, o regime de previdência privada, regulado pela ERISA, é, no limite, classificado como programs related to social sécurity. Não são elementos que integram ou são regidos pelos princípios da seguridade social. A relação de fato dos fundos de pensão com a previdência social seria bastante indireta [12]. A legislação norte-americana andou bem em separá-los claramente.


[1] Consultar A. ARUFE VARELA, El derecho de la seguridad social en la jurisprudencia de la Corte Suprema de los Estados Unidos, Atelier libros jurídicos, 2014, p. 43/55.

[2] 301 U.S. 494.

[3] 301 U.S. 548.

[4] 301 U.S. 619.

[5] "Congress may spend money in aid of the 'general welfare.' Constitution, Art. I, section 8; United States v. Butler, 297 U. S. 1, 297 U. S. 65; Steward Machine Co. v. Davis, supra. There have been great statesmen in our history who have stood for other views. We will not resurrect the contest. It is now settled by decision. United States v. Butler, supra. The conception of the spending power advocated by Hamilton and strongly reinforced by Story has prevailed over that of Madison, which has not been lacking in adherents. Yet difficulties are left when the power is conceded. The line must still be drawn between one welfare and another, between particular and general. Where this shall be placed cannot be known through a formula in advance of the event. There is a middle ground, or certainly a penumbra, in which discretion is at large. The discretion, however, is not confided to the courts. The discretion belongs to Congress, unless the choice is clearly wrong, a display of arbitrary power, not an exercise of judgment. This is now familiar law". Cf. Helvering v. Davis, 301 U.S. 619, p. 640. Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/301/619/case.html. Acesso em 16/05/16.

[6] 363 U.S. 603.

[7] Flemming v. Nestor, 20 junho 1960. 363 U.S. 603, p 606. Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/363/603/case.html#T1. Acesso em 16/05/2016.

[8] "We think that the District Court erred in holding that § 202(n) deprived appellee of an 'accrued property right.' 169 F.Supp. at 934. Appellee's right to Social Security benefits cannot properly be considered to have been of that order". Flemming v. Nestor, 20 juin 1960. 363 U.S. 603, p 608. Disponible en https://supreme.justia.com/cases/federal/us/363/603/case.html#T1. Accès en 16/05/2016.

[9] "The Social Security system may be accurately described as a form of social insurance, enacted pursuant to Congress' power to "spend money in aid of the general welfare,'" Helvering v. Davis, supra, at 301 U. S. 640, whereby persons gainfully employed, and those who employ them, are taxed to permit the payment of benefits to the retired and disabled, and their dependents. Plainly the expectation is that many members of the present productive work force will in turn become beneficiaries rather than supporters of the program. But each worker's benefits, though flowing from the contributions he made to the ational economy while actively employed, are not dependent on the degree to which he was called upon to support the system by taxation. It is apparent that the noncontractual interest of an employee covered by the Act cannot be soundly analogized to that of the holder of an annuity, whose right to benefits is bottomed on his contractual premium payments. (…)
To engraft upon the Social Security system a concept of 'accrued property rights' would deprive it of the flexibility and boldness in adjustment to ever-changing conditions which it demands". Flemming v. Nestor, 20 junho 1960. 363 U.S. 603, p. 609/10. Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/363/603/case.html#T1. Acesso em 16/05/2016.

[10] United States v. Cleveland Indians Baseball Co., 17 abril 2001, 532 U.S. 200.

[11] United States v. Cleveland Indians Baseball Co., 17 abril 2001, 532 U.S. 200, p. 212/13. Disponible en https://supreme.justia.com/cases/federal/us/532/200/case.html. Accès en 16/05/16.

[12] "(…) y en otros, en fin, como el de los planes y fondos privados de pensiones, la relación – si es que existe – es totalmente indirecta. Esto último ocurre en España, también; y a pesar de ello, parece razonable afirmar que no existe manual español de Derecho de la Seguridad Social que omita tratar lo que nosotros denominamos, arrimando interesadamente el ascua a nuestra sardina de laboralistas 'seguridad social complementaria'". A. ARUFE VARELA, op. cit., p. 122.

Autores

  • é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.

  • é membro do Departamento de Direito Social do Institute de Recherche Juridique de la Sorbonne – IRJS e do Réseau Académique Européen sur la Charte Sociale et les Droits Sociaux - RACSE. Integrou o grupo de trabalho de experts para a formulação do “Documento de Bruxelas”.

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