Improbidade em debate

Por uma Lei de Improbidade que traga maior segurança jurídica

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17 de setembro de 2021, 13h53

Temos a alegria de retomar esta coluna — cuja receptividade positiva muito nos comove e orgulha — divulgando, em primeiro lugar, um primeiro produto dela originado: "Comentários à Lei de Improbidade e ao Projeto de sua Reforma", recentissimamente lançado por nós por meio da Editora Lumen Juris.

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Congregando escritos inéditos com textos publicados nos últimos dois anos neste honroso espaço que nos é concedido pela revista Consultor Jurídico, na obra expomos nossas visões sobre o rico tema da improbidade administrativa a partir da atual Lei nº 8.429/1992 e do projeto de lei que busca substituí-la, atualmente em trâmite no Senado Federal.

Enfrentando o que há de mais atual sobre o assunto, nossa ideia é que o livro se conserve um projeto vivo e contínuo, sendo aprimorado e atualizado não somente a partir da evolução da proposição legislativa, mas também na esteira dos textos que voltarão a ser produzidos e veiculados por aqui a partir desta semana.

Agradecendo sempre os estímulos e os retornos sempre recebidos, convidamos todos à leitura da obra e a que sigam nos prestigiando semanalmente por este meio eletrônico. Sem dúvida, é isso que nos motiva. Dados os recados, ao texto desta semana!

No dia 17 de junho, foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 10.887/2018, que se propõe a alterar sensivelmente a Lei de Improbidade (n° 8.429/1992).

Fruto originalmente do trabalho de comissão de juristas, a referida proposição legislativa tramitou por quase três anos perante comissão especial na qual foram realizadas diversas audiências públicas e ouvidos mais de 60 especialistas, entre advogados públicos e privados, professores e membros do Ministério Público. Ainda ilustrativo da oxigenação e amplitude com que o assunto foi tratado, apenas da parte dos autores deste texto foram produzidos quase 70 escritos endereçando aspectos importantes da proposta, todos eles recebendo boa e saudável difusão e crítica.

Após todo esse debate, com dois pareceres substitutivos apresentados pelo relator, deputado Carlos Zarattini, e com duas emendas aprovadas em Plenário, a proposição, aprovada, foi encaminhada ao Senado Federal, inaugurando nova etapa de esperados aprimoramentos, não somente por aquela casa revisora, mas, certamente, pela sociedade e pela doutrina.

Exatamente de modo a contribuir para este momento, em que o tema volta à pauta, cremos pertinente colocar algumas premissas para evitar desvirtuamentos sobre a proposta de alteração. A primeira delas, já antecipada acima, está em que o texto aprovado pela Câmara dos Deputados foi, sim, alvo de intensas discussões, que de modo algum se encerraram e que podem e devem seguir de forma a contribuir para melhoramentos e para um ainda maior amadurecimento de tão importante diploma. Mas há mais.

Não é de hoje que temos defendido que a Lei n° 8.429/1992 apresenta grande abertura, num sentido mais conceitual. Dito de outro modo, a complexa gradação da culpa grave, a (falta de) distinção entre dolo direto e eventual, o dano presumido e tipos excessivamente abertos patrocinaram, sob o signo de um pretenso combate à corrupção, situações de franca injustiça e de dissuasão de bons quadros. É falar que a referida lei, que inegavelmente prestou e presta excelentes serviços ao Brasil, não raramente sofria uma desfiguração capaz de alcançar com seus longos, longuíssimos tentáculos punitivos agentes que não se houveram com a má-fé verdadeiramente destinatária da citada legislação.

A bem da lembrança, improbidade é ilícito consubstanciado em imoralidade gravíssima, legalmente qualificada, que aproxime a conduta típica a um desonestidade latente e de alto grau de censura. Seu âmbito de vigência material não há (ou não haveria) de contemplar erros formais ou, mesmo, equívocos, muito embora o tenha feito com alguma frequência ao longo dos últimos quase trinta anos. Daí a importância de um ajustamento da mencionada lei para calibrá-la mais adequadamente ao seu escopo: decerto que erros, negligência, imperícia e imprudência hão de merecer censura, mas pela via de procedimentos disciplinares, criminais ou puramente cíveis, que não se confundem com as sanções extremamente onerosas da Lei de Improbidade.

Eis, pois, o ponto que merece ficar claro: se se diz que a diferença entre o antídoto e o veneno muitas vezes está na dose, jamais se poderia placitar uma conversão da Lei de Improbidade em plataforma de práticas capazes de produzir efeitos colaterais tão ruins ou até piores que a própria chaga enfrentada. A quem interessa uma evasão de bons agentes da esfera pública? Que proveito gera um engessamento da máquina, fruto de um temor reverencial normativo? Qual o benefício de uma criminalização açodada dos gestores? Que vantagem há em ocupar a administração com atividades-meio que mais se ocupem de blindar e prevenir qualquer sorte de posicionamento que de executar e planejar suas atividades-fim? O Direito é pródigo de exemplos que renegam uma cooptação de institutos nele previstos para atingimento de fins contrários ao próprio Direito…

Sob as luzes desse racional é que parece ter sido gestada a versão final do Projeto de Lei n° 8.429/1992, que se, por um lado: 1) torna a lei mais segura no sentido de abarcar quem deva e quem não deva por ela ser atingido, garantindo-lhes a presunção de inocência e demais direitos fundamentais; por outro, 2) no que toca aos legítimos candidatos às suas sanções, os onera ainda mais pesadamente.

No que diz respeito ao que sumariado no item um no parágrafo anterior, isto é, à melhor discriminação dos sujeitos ativos da improbidade, digna de destaque a eliminação da modalidade culposa. Pudera! Se a improbidade há de dirigir-se contra o desonesto, soa um truísmo que a ideia de desonestidade seja infensa à ideia de culpa ou, mesmo, de uma conduta voluntária (dolo genérico) que não voltada para o resultado danoso punível.

Também merecedor de destaque o maior fechamento dos tipos, tendo-se em mente que as condutas descritas como puníveis não devem se prestar a funcionar como tarrafa que alcance o máximo possível de pessoas, mas sim, antes, como uma orientação geral, objetiva e compreensível sobre que condutas e práticas devem ser evitadas.

Igualmente bem-vindas a submissão de bloqueios patrimoniais à demonstração de risco e a rejeição à execução provisória de sanções. Quanto à contrição, que vinha sendo encarada como verdadeira tutela de evidência, era frequente que funcionasse ela como uma antecipação de pena, desnaturando seu propósito cautelar para minar a própria subsistência e dignidade de quem (ao menos ainda) inocente. Sobre a execução provisória, de sua vez, e ressalva feita à inelegibilidade decorrente de condenação em ato ímprobo doloso desde a condenação colegiada, de fato não há falar, em consonância com o entendimento mais recente do Supremo Tribunal Federal, em antecipação de pena (pesadas como o são na Lei de Improbidade) quando ausente trânsito em julgado.

A proposição aprovada ainda anda bem quando onera argumentativamente o Ministério Público com uma descrição mais pormenorizada e respaldada de fatos e condutas na inicial — desestimulando o ajuizar por ajuizar, sempre presente que ser réu em ação já punição suficiente para aquele que é honesto — e com prazos (prescricional incluído, inclusive na modalidade intercorrente) para conclusão de inquérito civil e aviamento da ação.

O respeito ao contraditório também foi marca da proposta aprovada, garantindo-se ao réu o direito de não ser condenado sem que se lhe assegure o direito de produzir provas em seu favor e devendo a sentença punitiva lançar mão de fundamentação exauriente, detalhando conduta, elemento subjetivo e fatos ensejadores da apenação.

Lado outro, no que concerne ao que sumariado no item dois amiúde, ou seja, ao recrudescimento do diploma no que diz respeito àqueles a quem verdadeiramente a lei se destina, foi ampliado o prazo prescricional geral de cinco para oito anos (ficando naturalmente ressalvada a sanção de ressarcimento ao erário em razão de ato doloso, imprescritível).

As penas também se tornaram mais severas, podendo excepcionalmente a proibição de contratação com o poder público ultrapassar territorialmente a esfera do ente lesado e a perda da função pública alcançar mesmo vínculo diverso daquele em razão do qual praticado o ato ímprobo, temas que observavam algum ruído na jurisprudência.

Ainda além, os prazos máximos de suspensão de direitos políticos, de vedação ao recebimento de benefícios e de contratação com o poder público foram amplamente majorados, podendo em alguns casos chegar a até 20 anos na hipótese de infrações continuadas.

Enfim, e resumidamente, é claro que é possível que a versão do Projeto de Lei n° 10.887/2018 aprovada pela Câmara dos Deputados inspire opiniões sobre uma aparente leniência normativa com agente ímprobos. Essa visão, contudo, padece do mesmo erro de perspectiva que se buscou combater com a mudança: a de que todo réu em improbidade seria presumidamente culpado.

Por tudo o que dito — e por tudo mais que certamente frequentará a retomada de nossos escritos sobre o assunto —, o que observamos com a proposição em questão não foi, de modo algum, uma flexibilização do combate à improbidade, mas, sim, o reequilíbrio do instituto e seu resgate, menos como plataforma para exercício de um desmedido poder punitivo e mais como uma proteção a direitos e garantias individuais capaz de evitar uma confusão entre honestos e desonestos, isso sem impedir que condutas ímprobas mereçam a devida (e pesada) reprovação.

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