Opinião

Reflexos tributários da colaboração premiada e do acordo de leniência

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16 de setembro de 2021, 14h03

A tributação do ato ilícito sempre foi objeto de sérias reflexões da doutrina brasileira, debatendo-se a legitimidade e o alcance da regra veiculada pelo artigo 118, inciso I, do Código Tributário Nacional ("A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se: I — da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos").

Com a multiplicação de colaborações (ou delações) premiadas e acordos de leniência, o tema acerca dos reflexos tributários da conduta ilegal volta a despertar grande interesse e a provocar intensa discussão, especialmente quanto à exigência tributária sobre o produto ou sobre o proveito das infrações penais do delator ou do colaborador, parcial ou integralmente recuperados.

Assim, impende definir a repercussão de tais negócios jurídicos e, mais especificamente, da recuperação parcial ou total do resultado do ilícito sobre o fenômeno da incidência tributária e sobre a relação jurídica tributária.

Embora a regra disposta pelo artigo 118, inciso I, do CTN (que consagra no ordenamento jurídico brasileiro o princípio — ou a regra — do non-olet) admita a abstração da "validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros", não se autoriza a tributação irrestrita do ato ilícito, tendo em vista que não se pode ignorar a restituição do produto do ilícito ou de qualquer bem ou valor que tenha decorrido da conduta delituosa.

A colaboração premiada e o acordo de leniência são importantes meios de prova para a persecução penal e para a apuração de improbidade administrativa, revelando-se, especialmente nos últimos anos, a sua induvidosa utilidade para a identificação de organizações criminosas e de suas condutas ilícitas, além da recuperação do produto ou do proveito das infrações cometidas.

A aplicação da regra do non olet, impondo a tributação mesmo quando o colaborador devolver o produto do ilícito, ofende o princípio da segurança jurídica e o princípio da boa-fé (também assegurados àqueles que cometem atos ilícitos), afrontando também os princípios da capacidade contributiva e do não confisco.

Entretanto, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tem se posicionado no sentido de que:

"Os rendimentos derivados de atividades ou transações ilícitas, ou percebidos com infração à lei, são sujeitos à tributação. A legislação tributária não prevê a possibilidade de anistia para o imposto de renda decorrente de rendimentos ilícitos devolvidos ao erário. (…) A perda de recursos em colaboração premiada é evento posterior ao fato gerador do imposto de renda, e que não se confunde com pagamento de tributo" (Carf, 1ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção, número do processo: 18470.728708/2016-23, relator conselheiro Matheus Soares Leite).

"Não há na Lei nº 12.850, de 2013, que define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, ou em qualquer outro diploma normativo, dispositivo permitindo que, em caso de colaboração premiada, o colaborador seja dispensado ou atenuado de sua responsabilidade tributária pelos fatos por ele, ou conjuntamente com ele, perpetrados" (Carf, 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção, Número do processo: 10314.720059/2018-75, relator conselheiro Charles Mayer de Castro Souza).

A despeito da ausência de regra legal específica "permitindo que, em caso de colaboração premiada, o colaborador seja dispensado ou atenuado de sua responsabilidade tributária pelos fatos por ele, ou conjuntamente com ele, perpetrados", não se pode ignorar os princípios e as regras constitucionais que moldam o sistema tributário nacional, especialmente a proibição de utilizar tributo com efeito de confisco (CF, artigo 150, inciso IV).

Decerto, ilegítima é a pretensão tributária sobre riqueza não mais disponível para o infrator-colaborador em virtude de acordo celebrado com o poder público, caracterizando inegável confisco a tributação do ilícito quando todo o seu produto já foi devolvido pelo infrator em decorrência de colaboração premiada ou acordo de leniência.

O ordenamento jurídico brasileiro contempla mecanismos normativos que viabilizam a recuperação integral do produto ou do proveito da conduta ilícita, não devendo o Estado se contentar com a exigência de parcela (tributo) dessa riqueza maculada.

Ao contrário, cobrar tributo sobre a riqueza ilícita devolvida pelo infrator-colaborador pode servir como desestímulo para a celebração do acordo de leniência ou da colaboração premiada, ao submetê-lo a obrigações outras não estipuladas na transação.

Assim, muito embora se entenda que o sistema normativo atual — à vista das regras e princípios constitucionais — já afasta a tributação sobre o ilícito cujo proveito econômico foi integralmente recuperado, convêm o advento de norma legal específica e expressa afastando a pretensão fiscal sobre o produto da conduta ilícita recuperado pelo poder público, assegurando-se, destarte, mais segurança e estabilidade para negócios jurídicos tão relevantes para a sociedade como a delação premiada e o acordo de leniência.

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