Público x privado

Advogados, paridade, armas e violência

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13 de setembro de 2021, 15h44

No último dia 2, o Conselho Seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil resolveu agendar uma audiência pública e promover uma consulta aos Advogados quanto ao apoio a iniciativas legislativas que permitam aos advogados portarem armas. Particularmente, o Grupo de Estudo constituído pelo Conselho Seccional do DF apresentou relatório em que recomenda o apoio ao Projeto de Lei 2.734, do dia 11 de agosto de 2021, de autoria do senador Flávio Bolsonaro (RJ).

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Legenda

O tema não é novo e já o debati aqui. Porém, pelas suas implicações no nosso contexto brasileiro, particularmente no contexto da advocacia brasileira, decidi retomar esta discussão.

A temática armamentista tem ganhado corpo no Brasil, após o Estatuto do Desarmamento. O ponto central dos argumentos em favor do porte de arma está no direito à autodefesa do indivíduo. Argumenta-se que o mero porte de arma coíbe, pelo risco inerente da reação a um atacante, os potenciais atos de violência. Em suma, a difusão do uso à arma, nesta perspectiva, promoveria a redução a violência.

No caso da advocacia, um argumento adicional é apresentado: a necessidade de paridade entre Advogados, Ministério Público e Juízes, as duas últimas carreiras detentoras do direito de porte de arma nos termos de legislação própria.

Partindo do segundo ponto, reitero o que já disse anteriormente aqui e na sustentação oral que fiz perante o Conselho Seccional da OAB DF: o direito ao porte de arma como decorrência da paridade entre carreiras é artificial, pois os operadores jurídicos atuam no ambiente estatal, em que a resolução dos conflitos dá-se pela argumentação racional da lei. A violência ou a projeção da violência dada pelo porte de arma são deixados de lado, pois não tem lugar no ambiente jurídico.

Paridade de armas, usando o termo em seu sentido figurado, está no tratamento igualitário entre as partes perante o Judiciário e a administração pública. É a atenção dada, de forma igual e impessoal, aos pleitos que são encaminhados à decisão de uma autoridade pública, garantindo, mediante um juízo de razoabilidade e proporcionalidade, uma solução que atenda aos preceitos da lei e da constituição.

Para além disso, olhando a pretensão do direito ao porte de armas em geral, temos que ele não funciona como um elemento de equalização entre os indivíduos, capaz de reduzir a violência pela projeção de força. Isto porque toda a projeção de força corresponde a uma espécie de blefe (como no pôquer) em que alguém aposta alto na expectativa de assustar o adversário e fazer com que ele desista de jogar. Da mesma forma, o uso da arma como intimidação de potenciais agressores esquece que muitas vezes, como no blefe, paga-se para ver (no caso do jogo, as cartas de quem blefou; no caso das armas, a capacidade de quem as porta de usa-las).

Em suma, a arma dá ao seu usuário uma sensação de poder que testa os limites do mesmo na resolução dos conflitos que surgem, sejam eles reais, sejam imaginários. Não é incomum que disputas de transito sejam resolvidas de forma violenta e, caso um dos participes do conflito esteja armado, com o uso do revolver ou pistola. Nos conflitos familiares, particularmente entre casais o mesmo ocorre. É o que vemos recorrentemente nos casos de feminicídios. Não funciona aqui a ideia de que a mulher deve armar-se para enfrentar o homem que a ameaça, pois a violência e a solução pela força é uma característica eminentemente masculina.

Basta ver onde estão as principais vítimas da violência no Brasil, consoante estudo conjunto do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN). Examinando infográfico deste estudo verifica-se que, mesmo tendo o índice de homicídio ter decrescido no Brasil, ele aumentou em 21,6% em 2021 em relação a comunidade indígena.

No casos de homicídio, 77% são negros. No caso das mulheres, mesmo tendo o número de homicídios caído em 28,1%, em 2021, em ambientes fora da residência, eles aumentaram em 6,1% dentro da residência. E, na perspectiva racial, o número de mulheres brancas assassinadas reduziu em 28,1%, mas cresceu 6,1% se considerarmos apenas as mulheres negras. Se considerarmos o critério de deficiência mental ou física da vítima, 58,5% são frutos da violência doméstica, sendo a grande maioria mulheres.

Em suma, a violência no Brasil tem foco: são os setores e comunidades mais vulneráveis e discriminados na sociedade. São negros, índios, mulheres e portadores de deficiência.

Portanto, a ideia da arma como um elemento de equalização não faz sentido, Em primeiro lugar tem como seu destinatário o homem branco, detentor de capacidade financeira para adquirir e manter tal equipamento; É um poder baseado na capacidade econômica de quem porta arma.

Segundo, são relevantes os apontamentos feitos no relatório conjunto do Ipea, do FBSP e do IJSN relativos às teses a favor do porte de arma, pois desmitificam muitos dos argumentos recorrentemente apresentados:

"A tese da liberdade de decisão do cidadão desconsidera que todo direito é relativizado ante o direito de terceiros e o direito à saúde e à segurança coletiva; (…)

A segunda tese, de que o Estatuto do Desarmamento diminui a proteção da população ao desarmar os “cidadãos de bem”, reduz o problema da vitimização violenta a uma “guerra” entre os “cidadãos de bem” e os criminosos. Apesar da ausência de dados sobre as motivações dos homicídios, alguns estudos apontam que uma parcela considerável dessas mortes ocorre por motivação interpessoal e passional (MORAES; ARAÚJO; TOMAZ; OTTONI; SOARES, 2017; LIMA, 2020), em que o cidadão que não era criminoso contumaz, em um momento de fúria ou desequilíbrio, termina por acabar com a vida do semelhante, apenas porque naquela situação possuía uma arma de fogo em mãos.

O terceiro argumento versa sobre o uso defensivo da arma de fogo. No ambiente urbano, o efeito surpresa do ataque faz com que a vítima mesmo armada tenha chances ínfimas de resposta, uma vez que o criminoso não apenas estudou o melhor momento de vulnerabilidade da vítima, possui uma maior disposição para o uso da arma de fogo, mas ainda porque muitas vezes a ação é empreendida por vários comparsas. De fato, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) de São Paulo mostrou que uma vítima de assalto quando armada possui chances 56% maiores de sofrer o latrocínio do que a vítima quando desarmada  (Lima; Pietrocolla; Sinhoretto, 2000).

O quarto argumento, por sua vez, não se sustenta, porque inúmeras mortes ocorrem com o uso de armas que em algum momento foram legais, mas foram roubadas e extraviadas e terminaram sendo reutilizadas para tirar a vida de alguém no curso de atividades criminosas. (grifei)

Por fim, a ideia de paridade entre carreiras, como justificativa para conceder o porte de armas aos advogados, não possui qualquer sentido jurídico ou prático, já que a igualdade entre  as carreiras jurídicas dá-se no Tribunal e não nas ruas.

Portanto, apontar o porte e uso da arma como instrumento de defesa ou de paridade é falso. A pretensão patrocinada no âmbito da OAB-DF de promover a alteração do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei 8.906, de 1994, conforme propõe o senador Flávio Bolsonaro através do PL 2.734, corresponde apenas a uma infeliz distração daqueles que são os principais problemas dos advogados: proletarização e perda de capacidade de defender os seus clientes.

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