Opinião

Robin Hood, professor Nash e por que é melhor ninguém ir atrás da loira

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10 de setembro de 2021, 12h06

Está em constante discussão, na sociedade e no Congresso Nacional [1], a ideia de se regulamentar o artigo 153, VII, da Constituição da República (CRFB) e instituir um imposto sobre grandes fortunas.

Como no Brasil assuntos políticos velozmente se tornam discussões judiciais, existe até mesmo uma ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão — ADO 55/DF [2]  pendente de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, para se entender se a mora em legislar sobre o tema afronta a CRFB.

Eminentemente em um discurso político, no espectro de melhoria da distribuição de renda, em um plano superficial de estudo a ideia parece fazer sentido. O Robin Hood que vive em todos nós quase não se contém diante da perspectiva de tirar dos ricos e distribuir aos mais pobres.

Acontece que o mundo real é consideravelmente mais complexo do que a lenda sobre as tramas que se desenvolviam na floresta de Sherwood, na Nottingham do século 12, especialmente em um mundo globalizado e sem fronteiras para o capital.

Tomaremos como trampolim para nosso raciocínio um misto de ficção e realidade: o filme "Uma mente brilhante", vencedor do Oscar de melhor filme de 2002, retrata a vida do matemático John Nash, sua principal contribuição às dinâmicas de governo evoluindo a teoria de Adam Smith e sua luta contra a esquizofrenia [3].

A célebre cena que empresta o título a este artigo se desenrola com o matemático sentado a uma mesa de bar atrás de uma pilha de papéis, enquanto seus amigos se divertem.

Os amigos, percebendo a irredutibilidade de Nash em abandonar seus estudos mesmo diante das provocações mundanas, o provocam apontando a presença de uma moça loira que se destacava no bar por seus atributos físicos.

Na melhor versão misógina que a década permitia  e até hoje, infelizmente, parece nos acompanhar , os colegas se reúnem em torno de Nash para debater a ordem de quem irá abordar a moça.

Provocado sobre a premissa de Smith  até então, o pai da Economia moderna , apontada como "em um cenário de competição, a ambição individual serve ao bem comum", e a ideia de que cada um deve agir por si, Nash tem uma epifania e desenvolve uma teoria sobre a ineficiência na alocação de esforços.

Conclui Nash que, em resumo, se todos forem atrás da loira, eles se bloqueiam. Ela recusará todos e as amigas da loira não aceitarão ser segundas opções. Resultado: todos saem perdendo. O melhor resultado para o grupo é ninguém ir atrás da loira.

A versão resumida da teoria e da cena servem a exemplificar o chamado Equilíbrio de Nash e a elucidar o nosso propósito [4]: demonstrar que a persistência em tributar as grandes fortunas é ineficiente. Não que sejamos adeptos do consequencialismo cru ou tenhamos pretensão de submeter o Direito ao jugo da economia ou de teorias apenas econômicas, mas em se tratando de financiamento do Estado é imperativo focar no impacto secundário da ação nos cofres públicos.

O imposto sobre grandes fortunas tem previsão constitucional no artigo 153, VII, e foi retirado do ostracismo pela propositura da já citada ação no STF que contou com voto antecipado do ministro Marco Aurélio no sentido de estar configurada a mora legislativa.

A legitimidade da decisão da ação constitucional deixaremos para comentar em outra oportunidade  somente antecipamos que entendemos ser o caso de self restraint da Corte Constitucional, e não um mérito que mereça apreciação jurisdicional constitucional.

Limitar-nos-emos, pois, à análise da relação de ganho ou perda com a instituição desse tributo. Para isso, nos servimos da teoria dos jogos. Joseph Stigilitz aprimorou essa análise em sua obra acerca da economia do terceiro setor [5].

Chega a ser intuitivo, mas os estudiosos provam isso a evitar o efeito enganador da intuição de que nos fala Daniel Kahneman [6], que, ao instituir e exigir um tributo para o qual há uma saída mais barata e prática, aquele sujeito à sua incidência irá naturalmente buscar a não tributação. E aqui já se afasta o argumento quantitativo do potencial arrecadatório do IGF: as previsões de arrecadação partem da ingenuidade de que aquele que sofrerá a tributação não tomará nenhuma atitude e aguardará, tranquilamente, a "mordida do leão".

Temos os casos de mudança de nacionalidade do ator francês Gerard Depardieu e do empresário brasileiro Eduardo Saverin [7] [8]. Outros poderiam surgir caso as nações insistam em atribuir um valor de riqueza como limite e, a partir de tal ponto, exarar tributos pelo que se entenda como seu excedente.

Essa forma de tributar, que em primeiro momento pode soar tentadora (calma, Hood!), motiva em primeiro momento uma alta de arrecadação e, em segundo, a retirada de capital do país. Ao fim, não será nada surpreendente verificar que o IGF acabaria por reduzir a quantidade de capital no Brasil e a própria arrecadação que, ao final, é o resultado do amálgama que sustenta o estado de bem-estar que a Constituição nos legou (e que insistimos em negligenciar).

Esse argumento, vale dizer, se baseia em experiências vivenciadas em outras nações. Com efeito, de um total de 12 países da OCDE que instituíram o IGF em 1990, apenas três o mantêm até hoje (Suíça, Noruega e Espanha) [9]. O caso mais notável foi o da França, local em que o tributo foi revogado em 2018 [10]. O professor Eric Pichet, estudando o IGF francês (ISF, ou Impôt de Solidarité sur la Fortune), chegou a assustadoras conclusões, entre as quais destacamos que "o ISF causa um déficit fiscal anual de 7 bilhões de euros, ou cerca de duas vezes o que produz" [11].

E não é difícil imaginar, ainda mais em um país como o Brasil, sobre quem recairia eventual necessidade de se equalizar esse déficit fiscal…

Nota-se, portanto, que a defesa dessa tese não se dá, absolutamente, em razão da proteção das grandes fortunas, mas por saber  especialmente na terceira década do terceiro milênio  que não gerará arrecadação e moverá a riqueza para outro país.

Existem aqui, em nosso ver, dois pontos caríssimos a tratar caso se deseje resolver a problemática do taxation without representation.

O primeiro deles, na porta de entrada, é realmente migrar a tributação nuclear, hoje concentrada no consumo básico e na receita simples, para o lucro, a herança e a propriedade.

Defendemos, pois, que tal qual ocorre na progressividade extrafiscal do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o que deve haver é a tributação da renda excessiva não estruturante, especulativa (capital carimbado pela pura efeméride), isto é, a riqueza própria que não gera riqueza alheia.

Pode-se citar, também, a inclusão de veículos automotores, como jet-ski, iates e jatos executivos na hipótese de incidência do  Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).

Ainda, e especificamente sobre a herança, o Brasil tem um dos tributos mais baixos do mundo. Se no Japão a alíquota é 55%, nos EUA, 40% e Alemanha, 30% [12], em nosso país a alíquota máxima do ITCMD é de 8%, nos termos da Resolução n° 09/1992 do Senado Federal.

Dessa forma, se a ideia é elevar a tributação incidente sobre o grupo mais rico de uma população e alcançar uma condição de vida mais isonômica para um povo, existem caminhos viáveis a se seguir. Não é com carnaval de palanque que chegaremos lá, mas tributando com moderação e seriedade as reais riquezas, e promovendo as contraprestações à população menos abastada.

A riqueza de um que serve ao fomento do enriquecimento alheio deve ser protegida, já que representa progresso e distribuição de renda.

Consabido, inclusive, que toda tributação que recaia sobre fatos econômicos que possam facilmente ser evitados com simples mudanças nas ações daquele que sofre sua incidência são inúteis. Entram os conceitos de elisão fiscal e o debate volta a um cenário meramente ideológico e nada pragmático.

Tributação progressiva e distribuição de renda passam por tributação inteligente e programas de governo, e não por medidas eleitoreiras sem estudos de impacto, sem compromisso de longo prazo e com potencial lesivo à arrecadação.

O segundo ponto, por fim, é a racionalidade orçamentária e a destinação das verbas públicas. E o começo, principal passo de qualquer jornada, não demanda nenhum esforço normativo, mas apenas fiscalização no cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/00).

Em suma, foco no resultado: se o objetivo é que todos saiam com alguém do bar, importante buscar uma parceira e não focar na loira, pois a loira vai escolher somente um e os outros ficarão sozinhos.

Analogias cinematográficas à parte, se o foco é melhorar arrecadação e respeitar princípios constitucionais, é preciso pensar num modelo de tributação para os dias atuais, e não fixar em uma forma de enxergar a tributação que não previu, e nem poderia, os caminhos que a economia mundial e, talvez, principalmente a política migratória mundial seguiu.

As fronteiras ruíram (antes da Covid-19) e o fluxo de pessoas e bens é incentivado por acordos multilaterais que pretendem, cada vez mais, facilitar esse tráfego. Tal realidade impõe que a tributação de grandes fortunas seja objeto de acordos de tributação (a exemplo do que ocorre com imposto de renda) para evitar a fuga de capitais, ou deve ser esquecida e substituída por um modelo tributário que realmente atenda às necessidades orçamentárias do Estado brasileiro e permita o desenvolvimento econômico.

Em vez de flertarmos com o caminho politicamente atraente (tal qual o desafio ao xerife de Nottingham ou a conversa com uma dama em Princeton)  mas fugaz e, na melhor das hipóteses, apenas ineficaz  de um IGF, o resultado ótimo provavelmente estará em uma revisão geral e nuclear do sistema tributário e orçamentário atual.

Ouçamos, nesse particular, o conselho de Friedman, que há muito já avisou que "um dos maiores erros que existem é julgar os programas e as políticas públicas pelas intenções e não pelos resultados".


[5] In Chapter 19, we shall see that distortionary taxes are inefficient in the sense that if the government could replace them with a lump-sum tax, it could raise more revenue, with the same effect on the welfare of individuals; or equivalently, the government could raise the same revenue and increase the welfare of individuals.

[6] Kahneman, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Tradução: Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

[9] Vale mencionar que na Suíça e na Noruega o tributo é regional, de modo que, quando há modificação de alíquotas, ocorre "fuga de capital" entre regiões do mesmo país. Se isso é importante para não acarretar perda de riqueza para a nação, pode gerar uma "guerra fiscal" entre as unidades federativas, cuja experiência no Brasil, com o ICMS, é desastrosa.

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